“A vida, tão limitada e concreta para quem procura indícios do além, sempre pode nos envolver em pesadelos desagradavelmente sobrenaturais”, diz a si mesmo Isidoro Vidal, ou don Isidro, um homem em crise de meia-idade que protagoniza o Diário da Guerra do Porco, de Adolfo Bioy Casares (1914-1999). Completando 50 anos, o romance faz parte do segundo de três volumes das Obras Completas do autor, que a editora Biblioteca Azul publica em março. O pensamento de Isidro é um bom ponto de partida para se compreender a obra desse que é um dos maiores nomes da literatura argentina, latino-americana e universal.
O Volume B da coleção reúne a produção de Bioy entre 1959 e 1971, incluindo fragmentos, argumentos de contos, textos nunca traduzidos para o português e escritos inéditos em livro. O lançamento soma-se ao primeiro tomo, publicado no Brasil em 2014, no centenário do autor, e que contempla as obras entre 1940 e 1958. Se no Volume A estão três dos livros mais celebrados do escritor – A Invenção de Morel (1940), Plano de Fuga (1945) e O Sonho dos Heróis (1954) –, o Volume B contém um único romance, Diário da Guerra do Porco (1969). No entanto, a evolução de sua prosa ao longo desse período pode ser percebida por meio da profusão de narrativas espalhadas nos sete livros de contos presentes nos dois volumes.
Até 1958, a influência de autores como Arthur Conan Doyle, Mary Shelley, Edgar Allan Poe e Júlio Verne se faz presente no tom detetivesco, nas invenções mirabolantes, por vezes no clima de horror gótico e nos mistérios lógicos a serem solucionados. Entretanto, com os contos de Grinalda de Amores (1959), o autor passa a conferir cada vez mais relevância à psicologia de suas personagens. As motivações começam a ser tão ou mais importantes que a resolução dos quebra-cabeças construídos em seus argumentos. Ainda prevalece o elemento fantástico ou insólito, mas a reação das personagens a essa ruptura na realidade passa a ser o foco de suas obras, e não a explicação lógica do fenômeno em questão – é nesse aspecto que Bioy se reflete em diversos nomes mais recentes na literatura, como a americana Carmen Maria Machado (O Corpo Dela e Outras Farras), a argentina Samanta Schweblin (Pássaros na Boca) e o brasileiro Luiz Bras (sua novela Anacrônicos, de 2017, é inspirada pela Invenção de Morel, que, por sua vez, presta tributo à Ilha do Dr. Moreau, de H.G. Wells).
Em Diário da Guerra do Porco (1969), Bioy refina sua literatura até encontrar a essência dessa fórmula. Se em seus romances anteriores o elemento fantástico está escancarado, aqui não há nada essencialmente impossível acontecendo, embora toda a premissa do livro seja completamente absurda. Em uma Argentina cujo governo sofre para pagar as aposentadorias de seus idosos, uma guerra civil estoura opondo jovens e velhos – o conflito, na verdade, é praticamente unilateral, já que apenas os mais novos atacam suas presas, sem sofrer represálias. O protagonista, don Isidro, não sabe de que lado está nessa trincheira. Já passou da idade de ser jovem, mas ainda não se considera idoso. A princípio, não sabe se deve incluir-se entre as vítimas: “Não há lugar para os velhos, porque nada está previsto para eles. Para nós”.
Tão profética quanto metafórica à luz da reforma da Previdência no Brasil e do elevado índice de suicídios de idosos no Chile, a obra reflete sobre o lugar dos indivíduos teoricamente “improdutivos” na sociedade. “Nesta guerra, os rapazes matam por ódio contra os velhos que serão”, vaticina Arévalo, um dos amigos de Isidro, que pensa: “Chega um momento na vida em que, não importa o que se faça, a gente só perturba”.
Primeiros livros
Essa ênfase na psicologia dos personagens já havia sido vislumbrada no romance anterior, O Sonho dos Heróis. No livro, Emilio Gauna, funcionário de uma oficina automotiva, ganha mil pesos no jóquei e decide torrar o dinheiro com os amigos no carnaval de 1927. A bebedeira transforma-se em uma verdadeira odisseia por uma Buenos Aires onírica, mas após a procissão de bar em bar, o encontro supostamente mágico com uma mulher mascarada em um baile se esvai de sua memória com a ressaca do dia seguinte.
Gauna passa anos remoendo aquelas lembranças fugidias, sonhando revivê-las, até que, às vésperas do carnaval de 1930, ganha outra bolada e tenta retraçar seus passos perdidos de três anos antes. “Agora começa a parte mágica deste relato; ou talvez todo ele fosse mágico e só nós não tenhamos percebido sua verdadeira natureza. O tom de Buenos Aires, cético e vulgar, talvez tenha nos enganado”, escreve Bioy, sem nunca revelar se a trama tem ou não matizes sobrenaturais. “Certamente isto não se parece com a descrição de um fato mágico, e sim com a descrição de um fato psicológico; parece a descrição de algo que teria ocorrido apenas no ânimo de Gauna, e cujas origens teriam de ser buscadas no cansaço e no álcool.”
O Sonho dos Heróis remete ao filme O Ano Passado em Marienbad (1961), clássico do cineasta francês Alain Resnais, em que um homem sem nome interpretado por Giorgio Albertazzi perturba uma mulher também anônima (Delphine Seyrig), com quem ele se depara em uma ocasião social em um castelo ou hotel. Ele insiste que a conhece do ano anterior, quando estiveram juntos, ao passo que ela o refuta recorrentemente. A atmosfera surrealista que permeia ambas as narrativas, o (des)encontro mágico dos casais e a dúvida que persiste quanto à natureza da realidade, tanto no livro quanto no filme, não são coincidências: o crítico de cinema Thomas Beltzer defende em um ensaio que o longa de Resnais é diretamente inspirado em A Invenção de Morel.
Estreia literária e mais conhecido romance de Bioy – o argentino chegou a escrever diversos livros antes de seu primeiro clássico, mas toda a sua obra anterior a 1940 foi renegada por ele –, A Invenção de Morel antecipa tecnologias que ainda hoje estão engatinhando. O livro consiste no relato de um fugitivo que vive em uma ilha deserta e encontra ali misteriosos turistas. À medida que investiga esses visitantes improváveis de uma paragem tão remota, chegando inclusive a nutrir uma paixão platônica por Faustine, que aparece entre os intrusos, o protagonista percebe que todas aquelas figuras não passam de hologramas. Assim como A Invenção de Morel imagina uma tecnologia nova, Plano de Fuga tem uma narrativa bastante semelhante: é narrado de maneira epistolar e se passa em uma prisão numa ilha, mas imagina um aparato equivalente à realidade virtual, mas muito mais imersivo. Esses livros sintetizam o etos básico da obra de Bioy: fatos misteriosos assolam o mundo, mas eles são perfeitamente explicáveis por meio da lógica.
Irrealismo
Quando recebeu, nos anos 1990, o prêmio Más Allá, honraria concedida por Horacio Moreno, presidente do Círculo Argentino de Ficção Científica e Fantasia, Bioy brincou: “Muito obrigado, já faz 60 anos que eu vinha suspeitando que faço ficção científica”. Aliás, a coletânea Más Allá, que reúne todos os ganhadores entre 1986 e 1994, tem um conto satírico primoroso de Bioy. Em Una Puerta se Abre, de 1972, um homem, enfastiado com uma mulher obcecada por ele, descobre uma clínica que oferece uma espécie de congelamento criogênico. Ele adormece no presente e acorda muitos anos mais tarde, apenas para descobrir que sua amante insistente se submeteu ao mesmo processo para acompanhá-lo no futuro.
Com tamanha verve fantástica, não é por acaso que Bioy tenha nutrido tão duradoura amizade com Jorge Luis Borges. Ambos chegaram a escrever a quatro mãos sob o pseudônimo de H. Bustos Domecq e desenvolveram-se intelectualmente no âmbito da revista Sur – criada por Victoria Ocampo, agitadora cultural portenha e irmã de Silvina, grande contista que seria casada com Bioy de 1940 até morrer, em 1993. Silvina, Borges e Bioy organizaram a Antologia de Literatura Fantástica, obra de referência no gênero – cuja reedição a Companhia das Letras publica em abril – que reúne contos de autores que vão de Kafka, Cortázar e Maupassant ao chinês Tzu Chuang.
Em um dos ensaios de The Language of the Night, Ursula K. Le Guin escreve: “Nesse momento, o realismo é talvez o modo menos adequado de compreender ou retratar as incríveis realidades de nossa existência”. Ao aliar elementos fantásticos ao melhor da tradição literária, Bioy soube recriar a realidade para captar a essência de nosso mundo. Como ele arremata em O Sonho dos Heróis: “Eis o secreto horror do maravilhoso: ele maravilha”.