Sequestro inspirou Vladimir Nabokov a escrever 'Lolita', sugere livro


Em 'The Real Lolita', Sarah Weinman investiga o caso de Sally Horner, que pode ter influenciado o romance

Por Sérgio Augusto

O mais popular romance de Vladimir Nabokov quase não foi escrito, quase não foi publicado, quase não pôde ser lido. A concepção decisiva de Lolita demorou a interromper o longo jejum criativo que o escritor atravessou no fim da década de 1940. Cinco grandes editoras americanas se recusaram a publicá-lo. Mesmo na França, onde saiu pela primeira vez em 1955, com o selo da Olympia Press, a censura retirou-o das livrarias, perseguição que se estendeu ao Reino Unido e à alfândega americana. Lolita vendeu 5 mil exemplares antes de cair no índex, acusado de mórbido, pornográfico e pedófilo. Um succès de escandale, que a elite cultural transatlântica transformou em triunfo literário. 

Sue Lyon interpretou a protagonista de 'Lolita' (1962), de Stanley Kubrick Foto: Warner Home Video

Nabokov revela, no posfácio ao romance, que a “primeira palpitação” do que seria Lolita ele a teve em fins de 1939 ou começo de 1940, quando, acamado por uma séria crise de nevralgia intercostal, leu um artigo na imprensa parisiense sobre um macaco do Jardin des Plantes, que, após ser persuadido durante meses por um cientista, produziu o primeiro desenho feito por um animal. Nele só apareciam as grades da jaula em que era mantido. 

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Dali, por ilações misteriosas até para Nabokov, sairia o protótipo de Lolita, protagonista de um conto de 30 páginas. 

Mais coisas aconteceram nos oito anos seguintes, mas só depois de definida a ideia central do romance, Nabokov começou a escrever Lolita, concluído em dezembro de 1953. Sigilosamente, ofereceu dois capítulos à revista The New Yorker, que embromou e não os publicou. Uma cópia do manuscrito foi emprestada ao crítico Edmund Wilson, grande amigo e confidente do autor. Wilson adorou. Consta que ele falou, muito por alto, do romance com Dorothy Parker. Imagine o susto de Nabokov ao abrir uma New Yorker de agosto de 1955 e deparar com um conto de Parker intitulado Lolita. Superficiais semelhanças à parte, não configurava plágio. 

Depois de finalmente editado na América, pela Putnam, em agosto de 1958 – e elogiado por Dorothy Parker no suplemento de livros do New York Times – Lolita só conheceu a glória: best seller mundial, duas adaptações ao cinema (considerem apenas a primeira, de Stanley Kubrick, em 1962), inspiração para duas óperas, dois balés, um musical – e um neologismo: ninfeta. 

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Exagerei no advérbio. Junto com a glória vieram alguns percalços. Em 1963, a revista masculina Nugget insinuou que Nabokov, ao contrário do que dissera meses antes à BBC, não extraíra de sua imaginação os personagens de Humbert-Humbert e Dolores “Lolita” Haze, mas de um fait divers policial envolvendo o sumiço de uma garota sequestrada em Camden, Nova Jersey, por um homem com idade para ser seu avô. 

Em 2004, um crítico literário alemão desencavou uma Lolita espanhola do início do século, inventada por Von Lichberg, pseudônimo do jornalista (e futuro nazista) Heinz von Eschwege, sem convencer ninguém sério de que Nabokov havia bebido naquela fonte. Lolita é nome bastante comum na Espanha e é muito pouco provável que Nabokov, fluente em russo, inglês e francês, mas que lia alemão com dificuldade, fosse perder tempo com um livro tão inexpressivo.

O folclore em torno da Lolita nabokoviana ganhou novo capítulo com o lançamento, há duas semanas, de The Real Lolita. Sua autora, Sarah Weinman, recicla as velhas insinuações da revista Nugget e as especulações no mesmo sentido do russo Alexander Dolinin, estudioso de Nabokov, feitas em 2005. Dolores “Lolita” Haze teria sido inspirada numa garota de 11 anos chamada Florence “Sally” Horner, raptada em 1948 pelo pedófilo Frank La Salle, mecânico cinquentão, que a manteve em cativeiro durante quase dois anos.  O caso, amplamente explorado na imprensa, dada a frequência com que tarados molestavam e sequestravam meninas em toda a América no final dos anos 40 (uma a cada 43 minutos, segundo o FBI), teve desfecho feliz: Sally logrou fugir e La Salle foi preso e condenado. Feliz em termos. Sally morreria num acidente de carro, aos 15 anos de idade. 

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Sally era morena, praticamente da mesma idade de Lolita, e também filha de mãe viúva e chantageada com uma ameaça de internamento numa escola correcional. Seu sequestro seguiu o mesmo modus operandi que Nabokov desenvolve em seu romance. Weinman encontrou anotações e recortes de jornais sobre o caso nos arquivos do escritor, e até mesmo um registro da morte de Sally, em agosto de 1952. 

Há claras – e, às vezes, diretas – referências ao drama de Sally e a La Salle em Lolita. No capítulo final, atormentado pela culpa, Humbert-Humbert se compara a La Salle e confessa sua desconfiança de que também possa ser condenado a 35 anos por estupro.  Qual a importância real de todas essas especulações e todos esses paralelismos? Do ponto de vista literário, nenhuma. Nabokov talvez nem precisasse de Sally Horner para criar sua paradigmática ninfeta, pois já localizaram referências à sexualidade precoce de meninas pré-púberes em pelo menos seis de suas criações ficcionais, entre contos, novelas e romances. Sete anos atrás, Martin Amis publicou um ensaio no Times Literary Supplement em que aludia a uma “infestação de ninfas” nas obras de Nabokov e as identificava uma a uma. 

O mais popular romance de Vladimir Nabokov quase não foi escrito, quase não foi publicado, quase não pôde ser lido. A concepção decisiva de Lolita demorou a interromper o longo jejum criativo que o escritor atravessou no fim da década de 1940. Cinco grandes editoras americanas se recusaram a publicá-lo. Mesmo na França, onde saiu pela primeira vez em 1955, com o selo da Olympia Press, a censura retirou-o das livrarias, perseguição que se estendeu ao Reino Unido e à alfândega americana. Lolita vendeu 5 mil exemplares antes de cair no índex, acusado de mórbido, pornográfico e pedófilo. Um succès de escandale, que a elite cultural transatlântica transformou em triunfo literário. 

Sue Lyon interpretou a protagonista de 'Lolita' (1962), de Stanley Kubrick Foto: Warner Home Video

Nabokov revela, no posfácio ao romance, que a “primeira palpitação” do que seria Lolita ele a teve em fins de 1939 ou começo de 1940, quando, acamado por uma séria crise de nevralgia intercostal, leu um artigo na imprensa parisiense sobre um macaco do Jardin des Plantes, que, após ser persuadido durante meses por um cientista, produziu o primeiro desenho feito por um animal. Nele só apareciam as grades da jaula em que era mantido. 

Dali, por ilações misteriosas até para Nabokov, sairia o protótipo de Lolita, protagonista de um conto de 30 páginas. 

Mais coisas aconteceram nos oito anos seguintes, mas só depois de definida a ideia central do romance, Nabokov começou a escrever Lolita, concluído em dezembro de 1953. Sigilosamente, ofereceu dois capítulos à revista The New Yorker, que embromou e não os publicou. Uma cópia do manuscrito foi emprestada ao crítico Edmund Wilson, grande amigo e confidente do autor. Wilson adorou. Consta que ele falou, muito por alto, do romance com Dorothy Parker. Imagine o susto de Nabokov ao abrir uma New Yorker de agosto de 1955 e deparar com um conto de Parker intitulado Lolita. Superficiais semelhanças à parte, não configurava plágio. 

Depois de finalmente editado na América, pela Putnam, em agosto de 1958 – e elogiado por Dorothy Parker no suplemento de livros do New York Times – Lolita só conheceu a glória: best seller mundial, duas adaptações ao cinema (considerem apenas a primeira, de Stanley Kubrick, em 1962), inspiração para duas óperas, dois balés, um musical – e um neologismo: ninfeta. 

Exagerei no advérbio. Junto com a glória vieram alguns percalços. Em 1963, a revista masculina Nugget insinuou que Nabokov, ao contrário do que dissera meses antes à BBC, não extraíra de sua imaginação os personagens de Humbert-Humbert e Dolores “Lolita” Haze, mas de um fait divers policial envolvendo o sumiço de uma garota sequestrada em Camden, Nova Jersey, por um homem com idade para ser seu avô. 

Em 2004, um crítico literário alemão desencavou uma Lolita espanhola do início do século, inventada por Von Lichberg, pseudônimo do jornalista (e futuro nazista) Heinz von Eschwege, sem convencer ninguém sério de que Nabokov havia bebido naquela fonte. Lolita é nome bastante comum na Espanha e é muito pouco provável que Nabokov, fluente em russo, inglês e francês, mas que lia alemão com dificuldade, fosse perder tempo com um livro tão inexpressivo.

O folclore em torno da Lolita nabokoviana ganhou novo capítulo com o lançamento, há duas semanas, de The Real Lolita. Sua autora, Sarah Weinman, recicla as velhas insinuações da revista Nugget e as especulações no mesmo sentido do russo Alexander Dolinin, estudioso de Nabokov, feitas em 2005. Dolores “Lolita” Haze teria sido inspirada numa garota de 11 anos chamada Florence “Sally” Horner, raptada em 1948 pelo pedófilo Frank La Salle, mecânico cinquentão, que a manteve em cativeiro durante quase dois anos.  O caso, amplamente explorado na imprensa, dada a frequência com que tarados molestavam e sequestravam meninas em toda a América no final dos anos 40 (uma a cada 43 minutos, segundo o FBI), teve desfecho feliz: Sally logrou fugir e La Salle foi preso e condenado. Feliz em termos. Sally morreria num acidente de carro, aos 15 anos de idade. 

Sally era morena, praticamente da mesma idade de Lolita, e também filha de mãe viúva e chantageada com uma ameaça de internamento numa escola correcional. Seu sequestro seguiu o mesmo modus operandi que Nabokov desenvolve em seu romance. Weinman encontrou anotações e recortes de jornais sobre o caso nos arquivos do escritor, e até mesmo um registro da morte de Sally, em agosto de 1952. 

Há claras – e, às vezes, diretas – referências ao drama de Sally e a La Salle em Lolita. No capítulo final, atormentado pela culpa, Humbert-Humbert se compara a La Salle e confessa sua desconfiança de que também possa ser condenado a 35 anos por estupro.  Qual a importância real de todas essas especulações e todos esses paralelismos? Do ponto de vista literário, nenhuma. Nabokov talvez nem precisasse de Sally Horner para criar sua paradigmática ninfeta, pois já localizaram referências à sexualidade precoce de meninas pré-púberes em pelo menos seis de suas criações ficcionais, entre contos, novelas e romances. Sete anos atrás, Martin Amis publicou um ensaio no Times Literary Supplement em que aludia a uma “infestação de ninfas” nas obras de Nabokov e as identificava uma a uma. 

O mais popular romance de Vladimir Nabokov quase não foi escrito, quase não foi publicado, quase não pôde ser lido. A concepção decisiva de Lolita demorou a interromper o longo jejum criativo que o escritor atravessou no fim da década de 1940. Cinco grandes editoras americanas se recusaram a publicá-lo. Mesmo na França, onde saiu pela primeira vez em 1955, com o selo da Olympia Press, a censura retirou-o das livrarias, perseguição que se estendeu ao Reino Unido e à alfândega americana. Lolita vendeu 5 mil exemplares antes de cair no índex, acusado de mórbido, pornográfico e pedófilo. Um succès de escandale, que a elite cultural transatlântica transformou em triunfo literário. 

Sue Lyon interpretou a protagonista de 'Lolita' (1962), de Stanley Kubrick Foto: Warner Home Video

Nabokov revela, no posfácio ao romance, que a “primeira palpitação” do que seria Lolita ele a teve em fins de 1939 ou começo de 1940, quando, acamado por uma séria crise de nevralgia intercostal, leu um artigo na imprensa parisiense sobre um macaco do Jardin des Plantes, que, após ser persuadido durante meses por um cientista, produziu o primeiro desenho feito por um animal. Nele só apareciam as grades da jaula em que era mantido. 

Dali, por ilações misteriosas até para Nabokov, sairia o protótipo de Lolita, protagonista de um conto de 30 páginas. 

Mais coisas aconteceram nos oito anos seguintes, mas só depois de definida a ideia central do romance, Nabokov começou a escrever Lolita, concluído em dezembro de 1953. Sigilosamente, ofereceu dois capítulos à revista The New Yorker, que embromou e não os publicou. Uma cópia do manuscrito foi emprestada ao crítico Edmund Wilson, grande amigo e confidente do autor. Wilson adorou. Consta que ele falou, muito por alto, do romance com Dorothy Parker. Imagine o susto de Nabokov ao abrir uma New Yorker de agosto de 1955 e deparar com um conto de Parker intitulado Lolita. Superficiais semelhanças à parte, não configurava plágio. 

Depois de finalmente editado na América, pela Putnam, em agosto de 1958 – e elogiado por Dorothy Parker no suplemento de livros do New York Times – Lolita só conheceu a glória: best seller mundial, duas adaptações ao cinema (considerem apenas a primeira, de Stanley Kubrick, em 1962), inspiração para duas óperas, dois balés, um musical – e um neologismo: ninfeta. 

Exagerei no advérbio. Junto com a glória vieram alguns percalços. Em 1963, a revista masculina Nugget insinuou que Nabokov, ao contrário do que dissera meses antes à BBC, não extraíra de sua imaginação os personagens de Humbert-Humbert e Dolores “Lolita” Haze, mas de um fait divers policial envolvendo o sumiço de uma garota sequestrada em Camden, Nova Jersey, por um homem com idade para ser seu avô. 

Em 2004, um crítico literário alemão desencavou uma Lolita espanhola do início do século, inventada por Von Lichberg, pseudônimo do jornalista (e futuro nazista) Heinz von Eschwege, sem convencer ninguém sério de que Nabokov havia bebido naquela fonte. Lolita é nome bastante comum na Espanha e é muito pouco provável que Nabokov, fluente em russo, inglês e francês, mas que lia alemão com dificuldade, fosse perder tempo com um livro tão inexpressivo.

O folclore em torno da Lolita nabokoviana ganhou novo capítulo com o lançamento, há duas semanas, de The Real Lolita. Sua autora, Sarah Weinman, recicla as velhas insinuações da revista Nugget e as especulações no mesmo sentido do russo Alexander Dolinin, estudioso de Nabokov, feitas em 2005. Dolores “Lolita” Haze teria sido inspirada numa garota de 11 anos chamada Florence “Sally” Horner, raptada em 1948 pelo pedófilo Frank La Salle, mecânico cinquentão, que a manteve em cativeiro durante quase dois anos.  O caso, amplamente explorado na imprensa, dada a frequência com que tarados molestavam e sequestravam meninas em toda a América no final dos anos 40 (uma a cada 43 minutos, segundo o FBI), teve desfecho feliz: Sally logrou fugir e La Salle foi preso e condenado. Feliz em termos. Sally morreria num acidente de carro, aos 15 anos de idade. 

Sally era morena, praticamente da mesma idade de Lolita, e também filha de mãe viúva e chantageada com uma ameaça de internamento numa escola correcional. Seu sequestro seguiu o mesmo modus operandi que Nabokov desenvolve em seu romance. Weinman encontrou anotações e recortes de jornais sobre o caso nos arquivos do escritor, e até mesmo um registro da morte de Sally, em agosto de 1952. 

Há claras – e, às vezes, diretas – referências ao drama de Sally e a La Salle em Lolita. No capítulo final, atormentado pela culpa, Humbert-Humbert se compara a La Salle e confessa sua desconfiança de que também possa ser condenado a 35 anos por estupro.  Qual a importância real de todas essas especulações e todos esses paralelismos? Do ponto de vista literário, nenhuma. Nabokov talvez nem precisasse de Sally Horner para criar sua paradigmática ninfeta, pois já localizaram referências à sexualidade precoce de meninas pré-púberes em pelo menos seis de suas criações ficcionais, entre contos, novelas e romances. Sete anos atrás, Martin Amis publicou um ensaio no Times Literary Supplement em que aludia a uma “infestação de ninfas” nas obras de Nabokov e as identificava uma a uma. 

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