Um filósofo a menos no planeta. Domingo passado, sob o calorão da Califórnia, finou-se, aos 94 anos, a singular figura de Harry G. Frankfurt. De olhar perspicaz e malicioso, inclusive aqui ele se popularizou com suas reflexões sobre a vontade, o amor, a liberdade e a responsabilidade moral, até que em 2005 um ensaio de 80 páginas sobre o sinônimo alfa (em inglês) de asneira, bobagem e tolice transformou o professor de filosofia da Universidade Princeton num imprevisível, mas inevitável best seller.
Como resistir a um livrinho intitulado On Bullshit?
Antes mesmo de sua tradução pela Intrínseca (Sobre Falar Merda), comentei-o nesta coluna com a efusividade exigida pelo tema e o douto tratamento que lhe dispensou Frankfurt, o qual, em busca de maior amplidão analítica, foi até Sócrates, contemporâneo da retórica ou sofística, o bullshit da Grécia Antiga, com baldeações em Santo Agostinho (que repertoriou oito tipos de mentira), Wittgenstein, e no romancista policial Eric Ambler.
Por vezes, o que consideramos bullshit não passa de uma prosaica mentira ou uma acaciana asneira. Só mesmo um filósofo para esmiuçar suas menos palpáveis sutilezas.
O vigor semântico de “Bullshit” nos faz mais falta do que as dezenas de vocábulos que importamos do inglês, muitas vezes sem a menor necessidade, e mais vezes ainda de forma irremediavelmente patética. Por que não o adotamos?
Substantivo de origem, bullshit desdobrou-se em verbo: “Don’t bullshit me”, assaz conjugado em filmes americanos, uma das razões pelas quais o poeta e calejado tradutor Ivo Barroso me apontou “porra nenhuma” como a melhor tradução ao dispor da última flor do Lácio. Já havia um “don’t bullshit me” num dos Cantos de Ezra Pound, perfeitamente traduzível por “não me enrole”.
Publicado originalmente em 1986 na revista literária The Raritan Review, o ensaio de Frankfurt é sempre uma conversa iluminada sobre o fenômeno, que, apesar de pandêmico, universal, demorou a ser estudado como merecia justamente porque todo mundo se achava entendido no assunto e não apenas um mero praticante.
Bosta de touro – eis o que, literalmente, quer dizer “bullshit”. Derivou de “hot air”, ar quente, conversa fiada, possível origem do nosso “bafo de boca”. Se nem todo bullshit é uma mentira, nem toda mentira é um bullshit. Por ter mais partes com o blefe do que com a mentira tout court, salienta Frankfurt, o bullshit pode ser um inimigo da verdade mais perigoso que a mentira.
Já existem sites especializados nas categorias de bullshitismo (ou tauroscatologia) mais conhecidas. Um deles dedica-se a difundir a certeza de que todas as religiões enrolam seus crentes. Daí, por sinal, a suspeita de que no Sermão da Montanha se encontra o mais antigo bullshit que até nós chegou: “Os humildes herdarão a Terra”.
* É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE ‘ESSE MUNDO É UM PANDEIRO’, ENTRE OUTROS