Até agora a enxurrada de imagens terríveis do flagelo climático no Rio Grande do Sul só não me provocou pesadelos porque dormir não é meu forte. Persisto, pois, a sofrer acordado, de olhos abertos e com a consciência culpada por me deixar agastar com facilidade por contratempos comparativamente miúdos e desprezíveis. Para me preservar de emoções tóxicas, parei de acompanhar as tentativas de socorro a bichos e idosos. Ainda assim, algumas imagens aflitivas burlaram minha vigilância.
De repente, uma senhorinha, escapada das águas como o Boudu de Jean Renoir, sequestra minha atenção. Oh!, se não é minha avó materna esculpida em Carrara, à beira do Guaíba! Minha avó mais próxima e querida.
Dona Arminda (tive duas avós com esse nome, ambas portuguesas) era a soberana da casa, a mater familias. A exemplo de tantas avós e mães, foi quem celebrizou em nosso reduto o bordão “Vocês pensam que eu sou sócia da Light?”, infalível toda vez que via acesa uma lâmpada que deveria estar apagada, para não aumentar a conta da luz. Parecia viver movida a máximas, provérbios e adágios, uns de sua lavra, vários emprestados à Bíblia, outros enigmáticos e mesmo inalcançáveis por meu cérebro mirim.
Fiquei intrigado ao ouvi-la dizer pela primeira vez que fulano era “mais surdo que um portão de cemitério”. Surdo à súplica do defunto para “não entrar ali”, deduzi com razoável margem de acerto. Levei bem mais tempo para perceber que vovó não resmungava “o que no mato engorda...” e, sim, “o que não mata engorda” (sem os reticentes três pontinhos) – e só então, definitivamente liberado do supersticioso caveat imposto à mistura, fui tomar outro copo de vitamina de manga com leite.
Não tive paciência para explicar à vovó Arminda que a frase correta (ou original) é “Quem tem boca vaia Roma”, e não “vai a Roma”, embora esta faça muito, se não até mais, sentido para quem nunca viveu sob o jugo romano.
Este é um caso clássico de expressão corrompida, bastante comum no florilégio de provérbios, axiomas, anexins e afins. Do mesmo nível, por exemplo, de “quem não tem cão, caça com gato” (a versão que se difundiu de “quem não tem cão, caça como gato”) e também de “cor de burro quando foge”, que sempre quis dizer “corro de burro quando foge”. No império romano, a expressão “esculpida em Carrara” era sinônimo de cópia fiel, igualzinha, sem tirar nem pôr; ou seja, o carbono ou a xerox de um tempo em que as pessoas posavam para artistas que mais fielmente as reproduziam no mármore de Carrara. Restou-nos apenas a malsonante e nojenta “cuspida e escarrada”.
Ora, se fizeram isso com o reputado mármore de Carrara, quem sou eu para sugerir que a expressão “Abre-te, sésamo!” vire, entre os lusófonos, “Abre-te, gergelim!”?
(Se fiz o prezado leitor esquecer um pouco a tragédia nos pampas, cumpri minha missão.) l