Antes de conhecer Homero, o menestrel cego que na Grécia inventou sua própria arte, apresentaram-me ao adjetivo “homérico”, exclamado pelo ator Barry Fitzgerald num dos momentos mais engraçados do filme Depois do Vendaval. Homérico como sinônimo de espantoso, inacreditável.
Só fui ler Ilíada e Odisseia após degustá-los nos propedêuticos quadrinhos da revista Edição Maravilhosa e na tela, com Kirk Douglas (Ulisses), Silvana Mangano (Penélope e Circe) e Rossana Podestà (Nausicaa e Helena de Troia). Muitos se satisfizeram com essas banalizações.
Bricolagens de sagas e relatos diversos, os dois violentos poemas épicos de Homero, inspiração de inúmeros romancistas (Cervantes, Joyce, Faulkner, Tolkien), não são leitura permanentemente sedutora, talvez porque forjados para ser ouvidos e porque seu autor, dizem, necessitasse esticar o tempo da recitação para cobrar mais dracmas dos ouvintes.
Lord Byron anteviu que jamais conseguiríamos nos livrar dos gregos. Nascemos, vivemos e morremos cercados de palavras, expressões, ideias e míticas figuras herdadas da cultura helênica. O próprio Byron não se livrou; há dois séculos aventurou-se na guerra de independência da Grécia e morreu em Missolóngi, não ferido em batalha, mas de doenças contraídas no calor da luta.
Somos bem servidos de traduções de Homero, uma das quais destinada ao público infantojuvenil, assinada por Ruth Rocha. Os adultos têm as que Haroldo de Campos e Carlos Alberto Nunes fizeram, e se apenas contássemos com a Odisseia do classicista lisboeta Frederico Lourenço, aqui publicada em 2011, já me daria por satisfeito.
Lourenço, porém, não se deu e decidiu reescrevê-la e enriquecê-la à luz de novos estudos sobre Homero e sua obra. É esta incrementada tradução, luxuosamente editada em capa dura, cheia de anotações e ilustrações, que a Companhia das Letras acaba de lançar.
Já li que a Ilíada, favorecida pela preferência feminina, desde sempre desfrutou de maior popularidade que a Odisseia. A estimativa foi feita pelo número de cópias em papiro existentes na Biblioteca de Alexandria, no século 3.º a.C. Ambos os poemas, embora protagonizados por personagens masculinos, Aquiles e Ulisses, têm como destaques duas das personagens femininas mais poderosas da mitologia grega.
Mas não foi só pelo fato de as mulheres lerem mais que os homens que a poeta e classicista britânica Emily Wilson se sentiu motivada a traduzir a Odisseia com outros olhos, iluminando as experiências e injustiças que as “garotas”, em especial as escravas de Ítaca, enfrentaram sob o tacão patriarcal da época.
Emily Wilson faz parte de um pequeno grupo de autoras empenhadas em (re)contar as histórias épicas da antiga Grécia pela ótica feminista. Sua conterrânea Pat Barker, hábil na mistura de eventos reais e ficção, já escreveu sobre as mulheres de Troia e, em Silence of the Girls, deu voz e eco a deusas, musas e ninfas. Uma das “silenciadas” por Homero é Tétis, mãe de Aquiles e, segundo Barker, obsessão sexual do herói.
Assim como Margareth Atwood, em A Odisseia de Penélope, recriou a seu modo a astuciosa tecedura xerazadeana de Penépole, em Circe, a americana Madeline Miller retratou a feiticeira da ilha de Ea como uma justiceira generosa e valente, implacável com a tirania dos deuses e titãs. Silvana Mangano não pegou o papel só porque era casada com o produtor do filme.