Sérgio Buarque de Holanda tem obras reeditadas em ‘Essencial’


Antologia reúne ensaios do antropólogo, autor de ‘Raízes do Brasil’, e suas reflexões sobre história, literatura e sociedade brasileira

Por André Jobim Martins
Atualização:

Autor festejado como poucos, Sérgio Buarque de Holanda é o objeto de uma nova seleção de textos, a mais recente das que vêm sendo lançadas, sob o título de Essencial. Com isso, o intelectual paulista se junta a Joaquim Nabuco, Jorge Amado, Celso Furtado e Antônio Vieira, reforçando a vocação da coleção como introdução, voltada a um público geral, a autores amplamente canonizados. Este Essencial Sérgio Buarque de Holanda, organizado por Lilia Schwarcz e Pedro Meira Monteiro, não é o primeiro empreendimento desse tipo dedicado à obra do autor. O volume Sérgio Buarque de Holanda (1985, ed. Ática), seleção de excertos escolhidos por Maria Odila da Silva Dias, historiadora e aluna de Sérgio, representou um marco na fixação da imagem do autor como uma espécie de herói civilizador da historiografia brasileira. Ainda que repetindo algumas das escolhas da coletânea de 1985, a de 2023 parece sugerir ao público uma imagem bastante diversa do autor, que reflete bem a evolução dos estudos em torno da obra buarquiana, assim como os debates mais amplos sobre a interpretação da cultura brasileira.

Em 1985, o que se apresentava ao público eram recortes dos grandes êxitos de Sérgio Buarque como historiador (da civilização material, das formações mentais e da política, sobretudo), acompanhados de uma interpretação da obra, lançada no perspicaz ensaio introdutório da organizadora, que convertia a produção não estritamente historiográfica em esteio “formativo” de uma brilhante trajetória profissional e universitária na área de História. No livro ora resenhado, as coisas mudam bastante de figura. Sem que saiam de cena o erudito analista das formações mentais de Visão do Paraíso, o inventivo analista dos fenômenos culturais de Raízes do Brasil e Monções ou o austero e um pouco prolixo intérprete da história política do Segundo Reinado, entra, por exemplo, o agitador cultural do modernismo e o mordaz polemista, com a inclusão de O Lado Oposto e Outros Lados, artigo no qual Sérgio Buarque defende determinado programa para a cultura brasileira, ou melhor, certa ausência de programa, desferindo cortantes ataques a Tristão de Athayde, a Mário de Andrade, a quem associa a “panaceia abominável da construção”, isto é, certa visão dirigista e artificiosa da cultura nacional.

O antropólogo Sérgio Buarque de Holanda, autor de 'Raízes do Brasil' e outros clássicos sobre o povo brasileiro  Foto: Domício Pinheiro/Estadão – 22/8/1975
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Já em O Mito Americano, há o brilhante historiador da literatura que só se deu a conhecer depois da publicação de Capítulos de Literatura Colonial (Brasiliense, 1991) – hoje fora de catálogo, um contraponto à interpretação da Formação da Literatura Brasileira de Antonio Candido, aliás seu dedicado organizador e prefaciador. No capítulo que aparece no Essencial, Sérgio faz o pequeno milagre de tornar altamente estimulante uma minuciosa arqueologia das fontes estilísticas e ideológicas de um poema de qualidade (a seu ver, pelo menos) mediana, o Caramuru de Santa Rita Durão, em hábil equilíbrio entre história literária e intelectual. Insólito pioneiro da exaltação poética da paisagem brasileira (e precursor de certo “sentimento nacional”), Durão, que provavelmente mal se lembrava de sua terra natal ao escrever, idoso, do outro lado do Atlântico, o seu Caramuru, revela em sua epopeia e em sua surpreendente biografia o difícil equilíbrio de múltiplos antagonismos – o cultivo simultâneo e contraditório das tradições poéticas portuguesas, clássicas e italianas, a efervescência do Iluminismo em meio ao arcaico mundo luso-brasileiro, o imperativo da sobrevivência em meio às intrigas político-eclesiásticas do período pombalino.

É uma pena que tenha faltado neste volume o penetrante crítico literário da maturidade, dos ensaios sobre Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, incontornáveis para quem se interesse por qualquer um dos três poetas. Presente, por outro lado, está o estimulante texto programático Missão e Profissão, que representa bem a trajetória do autor como militante por um ideal de cultura ao qual resistiam, por uma espécie de atavismo maligno, as elites letradas brasileiras. Sempre insatisfeito com o estado da literatura nacional, que considerava perpassada por uma compreensão preguiçosa e autocomplacente do ideal romântico de gênio artístico, Sérgio Buarque se encaixava bem na imagem com que outro crítico, Mário Pedrosa, ilustrava o próprio ofício: a de um “grilo chato que não para, num canto da sala grande social, de dar sinal de sua presença”. É interessante ver aqui os desdobramentos de análises que aparecem pela primeira vez nos capítulos finais de Raízes do Brasil – aqui preteridos em favor do belo O Semeador e o Ladrilhador – num texto de intervenção que não deixa de ser uma espécie de exame de consciência sobre a atuação do próprio autor no movimento modernista.

Mesmo sem acesso a uma amostra do olhar crítico do autor em seus maiores êxitos, o fato é que esse volume projeta uma imagem renovada da obra de Sérgio Buarque: altivamente alheio ao sempre insepulto “homem cordial”, ele destaca, com a abrangência possível em semelhante empreendimento, a construção de um olhar sobre a formação brasileira numa gama textual capaz de suscitar as mais diversificadas experiências. É particularmente fascinante notar o trânsito da prosa de Sérgio em diferentes modalidades e momentos – o autor de O Lado Oposto e Outros Lados, que ali parece, apesar de si mesmo, seduzido por uma afetação de oralidade à maneira do então rival Mário de Andrade, vai tomando gosto, ao longo do tempo, por períodos longos e sinuosos, mas sempre rigorosamente obedientes à sintaxe e à lógica, fazendo da compreensão de seus argumentos um requintado e cerebral exercício de resultados surpreendentes no que revelam de sutil visão da história e rara intimidade com os mecanismos da língua.

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Volume renova a imagem do autor, tido como uma espécie de herói civilizador da historiografia brasileira

Essa arte atinge seu zênite em Visão do Paraíso, livro que fascina pela estranheza de sua estrutura e pela ambição de investigar as fronteiras entre realidade e fantasia na forma mental luso-brasileira, do qual se reproduz aqui um dos mais contundentes capítulos. Laura de Mello e Souza o denominou, com justa ousadia, uma das maiores expressões da cultura brasileira. Aqui, a virtude do escritor está em tornar quase imperceptível a diferença entre a sua voz e a dos documentos investigados, produzindo uma simulação de português arcaico que facilita o trânsito de nossa imaginação para o mundo que tenta descrever. Trata-se de elaborado ilusionismo – nenhum documento de época fala realmente essa língua, que é uma singular invenção do historiador.

Pai e filho, Sergio e Chico Buarque de Holanda em 1979 Foto: Madalena Schwartz/ Instituto Moreira Salles
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O Transporte Fluvial, capítulo de Monções aqui recolhido, mostra um Sérgio Buarque empenhado (até que ponto bem-sucedido é uma questão em aberto) na construção de uma narrativa não celebratória do mundo dos bandeirantes paulistas. Malgrado o incômodo que poderá nascer, hoje, da linguagem do historiador, perpassada pela discreta, mas reiterada desqualificação do modo de vida dos povos originários do sertão e pelo que Alfredo Bosi denominou uma “sutil sublimação do bandeirismo”, é certo que qualquer um interessado em compreender a expansão, a partir de São Paulo, desde o início da povoação portuguesa até fins do século 18, de uma civilização híbrida – de traços culturais e técnicas amplamente apropriadas dos povos indígenas – poderá tirar grande proveito desse texto.

Já o complexo de capítulos dedicados à história política do Segundo Reinado apresenta uma crítica dura ao sistema político do Império, despida das idealizações em torno da monarquia que mal ou bem ainda vicejavam em Raízes do Brasil. Certa visão trágica do ocaso dos Bragança, que revela, no livro de 1936, alguma fidelidade do autor às suas origens familiares nas classes senhoriais do Império, dá lugar, em A Crise do Regime e O Pássaro e a Sombra, a uma denúncia quase rancorosa da nulidade moral e intelectual da classe política e de seu líder, incapazes de responder ao iminente desmoronamento de um sistema edificado sobre a escravidão. Especialmente saboroso é o emprego que Sérgio faz da expressão “o poder irresponsável” em referência ao monarca – termo técnico do bizarro constitucionalismo monárquico brasileiro, teoricamente neutro, mas que na voz do narrador se reveste de clara tonalidade polêmica.

Especialmente saboroso é o emprego que Sérgio faz da expressão “o poder irresponsável” em referência ao monarca

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A escolha de O Semeador e o Ladrilhador como representante de Raízes do Brasil – livro renegado pelo autor, mas inegavelmente o mais sugestivo de sua obra – parece estrategicamente destinada a deslocar o foco sobre o livro da noção de “homem cordial” (ideia que, pelo nome, se não pelo sentido que encontra em Raízes, não é criação original de Sérgio Buarque), bem como da discussão sobre a posição política do livro, na direção de uma imagem mais representativa da argumentação histórico-sociológica do ensaio, que atribui ao caráter rural e patriarcal da formação dos grupos dominantes da sociedade brasileira anterior à emancipação política um papel determinante na definição de aspectos importantes da vida nacional a partir de 1822, incluindo das formas de educar as crianças à política partidária e às manifestações poéticas.

Aliando as interpretações sociológicas que identificavam as origens culturais da “ética econômica” e da conformação social das diferentes populações (como as de Max Weber e Werner Sombart) à aguda análise de documentos da mais variada natureza, mostra-se aqui o melhor da parte da obra buarquiana ainda indecisa entre a história e a sociologia. O texto atribui certo estilo de vida e pensamento passivo, quase vegetativo, aos colonizadores portugueses, que teriam praticado, ao deitarem raízes no novo mundo, uma colonização de ânimo acomodatício, avesso a grandes desafios à ordem da natureza, com um ethos parasitário que se refletirá posteriormente numa escassa aptidão para a organização social e para o pensamento original.

Carteirinha de Buarque da Associação Brasileira de Escritores  Foto: Unicamp
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Essa forma de vida “semeadora” ganha contornos próprios pelo seu confronto com aquela mais sistemática e industriosa dos espanhóis, os “ladrilhadores” cuja vocação racionalista se deixa ver no traçado retilíneo e gradeado das cidades hispano-americanas, mesmo aquelas edificadas sobre terreno acidentado, quase sem correspondente no Brasil colonial – compare-se o mapa do centro de La Paz ou Cusco com o de Ouro Preto.

Bela vitrine dos dotes intelectuais e artísticos do extraordinário Sérgio Buarque de Holanda, este Essencial parece bem preparado para a tarefa de atrair leitores sensíveis para uma das obras mais versáteis da literatura brasileira.

ESSENCIAL

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SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

OGANIZAÇÃO DE LILIA SCHWARCZ E PEDRO MEIRA MONTEIRO

EDITORA.: PENGUIN/COMPANHIA

392 PÁGINAS. R$ 69,90 OU R$ 39,90

Autor festejado como poucos, Sérgio Buarque de Holanda é o objeto de uma nova seleção de textos, a mais recente das que vêm sendo lançadas, sob o título de Essencial. Com isso, o intelectual paulista se junta a Joaquim Nabuco, Jorge Amado, Celso Furtado e Antônio Vieira, reforçando a vocação da coleção como introdução, voltada a um público geral, a autores amplamente canonizados. Este Essencial Sérgio Buarque de Holanda, organizado por Lilia Schwarcz e Pedro Meira Monteiro, não é o primeiro empreendimento desse tipo dedicado à obra do autor. O volume Sérgio Buarque de Holanda (1985, ed. Ática), seleção de excertos escolhidos por Maria Odila da Silva Dias, historiadora e aluna de Sérgio, representou um marco na fixação da imagem do autor como uma espécie de herói civilizador da historiografia brasileira. Ainda que repetindo algumas das escolhas da coletânea de 1985, a de 2023 parece sugerir ao público uma imagem bastante diversa do autor, que reflete bem a evolução dos estudos em torno da obra buarquiana, assim como os debates mais amplos sobre a interpretação da cultura brasileira.

Em 1985, o que se apresentava ao público eram recortes dos grandes êxitos de Sérgio Buarque como historiador (da civilização material, das formações mentais e da política, sobretudo), acompanhados de uma interpretação da obra, lançada no perspicaz ensaio introdutório da organizadora, que convertia a produção não estritamente historiográfica em esteio “formativo” de uma brilhante trajetória profissional e universitária na área de História. No livro ora resenhado, as coisas mudam bastante de figura. Sem que saiam de cena o erudito analista das formações mentais de Visão do Paraíso, o inventivo analista dos fenômenos culturais de Raízes do Brasil e Monções ou o austero e um pouco prolixo intérprete da história política do Segundo Reinado, entra, por exemplo, o agitador cultural do modernismo e o mordaz polemista, com a inclusão de O Lado Oposto e Outros Lados, artigo no qual Sérgio Buarque defende determinado programa para a cultura brasileira, ou melhor, certa ausência de programa, desferindo cortantes ataques a Tristão de Athayde, a Mário de Andrade, a quem associa a “panaceia abominável da construção”, isto é, certa visão dirigista e artificiosa da cultura nacional.

O antropólogo Sérgio Buarque de Holanda, autor de 'Raízes do Brasil' e outros clássicos sobre o povo brasileiro  Foto: Domício Pinheiro/Estadão – 22/8/1975

Já em O Mito Americano, há o brilhante historiador da literatura que só se deu a conhecer depois da publicação de Capítulos de Literatura Colonial (Brasiliense, 1991) – hoje fora de catálogo, um contraponto à interpretação da Formação da Literatura Brasileira de Antonio Candido, aliás seu dedicado organizador e prefaciador. No capítulo que aparece no Essencial, Sérgio faz o pequeno milagre de tornar altamente estimulante uma minuciosa arqueologia das fontes estilísticas e ideológicas de um poema de qualidade (a seu ver, pelo menos) mediana, o Caramuru de Santa Rita Durão, em hábil equilíbrio entre história literária e intelectual. Insólito pioneiro da exaltação poética da paisagem brasileira (e precursor de certo “sentimento nacional”), Durão, que provavelmente mal se lembrava de sua terra natal ao escrever, idoso, do outro lado do Atlântico, o seu Caramuru, revela em sua epopeia e em sua surpreendente biografia o difícil equilíbrio de múltiplos antagonismos – o cultivo simultâneo e contraditório das tradições poéticas portuguesas, clássicas e italianas, a efervescência do Iluminismo em meio ao arcaico mundo luso-brasileiro, o imperativo da sobrevivência em meio às intrigas político-eclesiásticas do período pombalino.

É uma pena que tenha faltado neste volume o penetrante crítico literário da maturidade, dos ensaios sobre Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, incontornáveis para quem se interesse por qualquer um dos três poetas. Presente, por outro lado, está o estimulante texto programático Missão e Profissão, que representa bem a trajetória do autor como militante por um ideal de cultura ao qual resistiam, por uma espécie de atavismo maligno, as elites letradas brasileiras. Sempre insatisfeito com o estado da literatura nacional, que considerava perpassada por uma compreensão preguiçosa e autocomplacente do ideal romântico de gênio artístico, Sérgio Buarque se encaixava bem na imagem com que outro crítico, Mário Pedrosa, ilustrava o próprio ofício: a de um “grilo chato que não para, num canto da sala grande social, de dar sinal de sua presença”. É interessante ver aqui os desdobramentos de análises que aparecem pela primeira vez nos capítulos finais de Raízes do Brasil – aqui preteridos em favor do belo O Semeador e o Ladrilhador – num texto de intervenção que não deixa de ser uma espécie de exame de consciência sobre a atuação do próprio autor no movimento modernista.

Mesmo sem acesso a uma amostra do olhar crítico do autor em seus maiores êxitos, o fato é que esse volume projeta uma imagem renovada da obra de Sérgio Buarque: altivamente alheio ao sempre insepulto “homem cordial”, ele destaca, com a abrangência possível em semelhante empreendimento, a construção de um olhar sobre a formação brasileira numa gama textual capaz de suscitar as mais diversificadas experiências. É particularmente fascinante notar o trânsito da prosa de Sérgio em diferentes modalidades e momentos – o autor de O Lado Oposto e Outros Lados, que ali parece, apesar de si mesmo, seduzido por uma afetação de oralidade à maneira do então rival Mário de Andrade, vai tomando gosto, ao longo do tempo, por períodos longos e sinuosos, mas sempre rigorosamente obedientes à sintaxe e à lógica, fazendo da compreensão de seus argumentos um requintado e cerebral exercício de resultados surpreendentes no que revelam de sutil visão da história e rara intimidade com os mecanismos da língua.

Volume renova a imagem do autor, tido como uma espécie de herói civilizador da historiografia brasileira

Essa arte atinge seu zênite em Visão do Paraíso, livro que fascina pela estranheza de sua estrutura e pela ambição de investigar as fronteiras entre realidade e fantasia na forma mental luso-brasileira, do qual se reproduz aqui um dos mais contundentes capítulos. Laura de Mello e Souza o denominou, com justa ousadia, uma das maiores expressões da cultura brasileira. Aqui, a virtude do escritor está em tornar quase imperceptível a diferença entre a sua voz e a dos documentos investigados, produzindo uma simulação de português arcaico que facilita o trânsito de nossa imaginação para o mundo que tenta descrever. Trata-se de elaborado ilusionismo – nenhum documento de época fala realmente essa língua, que é uma singular invenção do historiador.

Pai e filho, Sergio e Chico Buarque de Holanda em 1979 Foto: Madalena Schwartz/ Instituto Moreira Salles

O Transporte Fluvial, capítulo de Monções aqui recolhido, mostra um Sérgio Buarque empenhado (até que ponto bem-sucedido é uma questão em aberto) na construção de uma narrativa não celebratória do mundo dos bandeirantes paulistas. Malgrado o incômodo que poderá nascer, hoje, da linguagem do historiador, perpassada pela discreta, mas reiterada desqualificação do modo de vida dos povos originários do sertão e pelo que Alfredo Bosi denominou uma “sutil sublimação do bandeirismo”, é certo que qualquer um interessado em compreender a expansão, a partir de São Paulo, desde o início da povoação portuguesa até fins do século 18, de uma civilização híbrida – de traços culturais e técnicas amplamente apropriadas dos povos indígenas – poderá tirar grande proveito desse texto.

Já o complexo de capítulos dedicados à história política do Segundo Reinado apresenta uma crítica dura ao sistema político do Império, despida das idealizações em torno da monarquia que mal ou bem ainda vicejavam em Raízes do Brasil. Certa visão trágica do ocaso dos Bragança, que revela, no livro de 1936, alguma fidelidade do autor às suas origens familiares nas classes senhoriais do Império, dá lugar, em A Crise do Regime e O Pássaro e a Sombra, a uma denúncia quase rancorosa da nulidade moral e intelectual da classe política e de seu líder, incapazes de responder ao iminente desmoronamento de um sistema edificado sobre a escravidão. Especialmente saboroso é o emprego que Sérgio faz da expressão “o poder irresponsável” em referência ao monarca – termo técnico do bizarro constitucionalismo monárquico brasileiro, teoricamente neutro, mas que na voz do narrador se reveste de clara tonalidade polêmica.

Especialmente saboroso é o emprego que Sérgio faz da expressão “o poder irresponsável” em referência ao monarca

A escolha de O Semeador e o Ladrilhador como representante de Raízes do Brasil – livro renegado pelo autor, mas inegavelmente o mais sugestivo de sua obra – parece estrategicamente destinada a deslocar o foco sobre o livro da noção de “homem cordial” (ideia que, pelo nome, se não pelo sentido que encontra em Raízes, não é criação original de Sérgio Buarque), bem como da discussão sobre a posição política do livro, na direção de uma imagem mais representativa da argumentação histórico-sociológica do ensaio, que atribui ao caráter rural e patriarcal da formação dos grupos dominantes da sociedade brasileira anterior à emancipação política um papel determinante na definição de aspectos importantes da vida nacional a partir de 1822, incluindo das formas de educar as crianças à política partidária e às manifestações poéticas.

Aliando as interpretações sociológicas que identificavam as origens culturais da “ética econômica” e da conformação social das diferentes populações (como as de Max Weber e Werner Sombart) à aguda análise de documentos da mais variada natureza, mostra-se aqui o melhor da parte da obra buarquiana ainda indecisa entre a história e a sociologia. O texto atribui certo estilo de vida e pensamento passivo, quase vegetativo, aos colonizadores portugueses, que teriam praticado, ao deitarem raízes no novo mundo, uma colonização de ânimo acomodatício, avesso a grandes desafios à ordem da natureza, com um ethos parasitário que se refletirá posteriormente numa escassa aptidão para a organização social e para o pensamento original.

Carteirinha de Buarque da Associação Brasileira de Escritores  Foto: Unicamp

Essa forma de vida “semeadora” ganha contornos próprios pelo seu confronto com aquela mais sistemática e industriosa dos espanhóis, os “ladrilhadores” cuja vocação racionalista se deixa ver no traçado retilíneo e gradeado das cidades hispano-americanas, mesmo aquelas edificadas sobre terreno acidentado, quase sem correspondente no Brasil colonial – compare-se o mapa do centro de La Paz ou Cusco com o de Ouro Preto.

Bela vitrine dos dotes intelectuais e artísticos do extraordinário Sérgio Buarque de Holanda, este Essencial parece bem preparado para a tarefa de atrair leitores sensíveis para uma das obras mais versáteis da literatura brasileira.

ESSENCIAL

SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

OGANIZAÇÃO DE LILIA SCHWARCZ E PEDRO MEIRA MONTEIRO

EDITORA.: PENGUIN/COMPANHIA

392 PÁGINAS. R$ 69,90 OU R$ 39,90

Autor festejado como poucos, Sérgio Buarque de Holanda é o objeto de uma nova seleção de textos, a mais recente das que vêm sendo lançadas, sob o título de Essencial. Com isso, o intelectual paulista se junta a Joaquim Nabuco, Jorge Amado, Celso Furtado e Antônio Vieira, reforçando a vocação da coleção como introdução, voltada a um público geral, a autores amplamente canonizados. Este Essencial Sérgio Buarque de Holanda, organizado por Lilia Schwarcz e Pedro Meira Monteiro, não é o primeiro empreendimento desse tipo dedicado à obra do autor. O volume Sérgio Buarque de Holanda (1985, ed. Ática), seleção de excertos escolhidos por Maria Odila da Silva Dias, historiadora e aluna de Sérgio, representou um marco na fixação da imagem do autor como uma espécie de herói civilizador da historiografia brasileira. Ainda que repetindo algumas das escolhas da coletânea de 1985, a de 2023 parece sugerir ao público uma imagem bastante diversa do autor, que reflete bem a evolução dos estudos em torno da obra buarquiana, assim como os debates mais amplos sobre a interpretação da cultura brasileira.

Em 1985, o que se apresentava ao público eram recortes dos grandes êxitos de Sérgio Buarque como historiador (da civilização material, das formações mentais e da política, sobretudo), acompanhados de uma interpretação da obra, lançada no perspicaz ensaio introdutório da organizadora, que convertia a produção não estritamente historiográfica em esteio “formativo” de uma brilhante trajetória profissional e universitária na área de História. No livro ora resenhado, as coisas mudam bastante de figura. Sem que saiam de cena o erudito analista das formações mentais de Visão do Paraíso, o inventivo analista dos fenômenos culturais de Raízes do Brasil e Monções ou o austero e um pouco prolixo intérprete da história política do Segundo Reinado, entra, por exemplo, o agitador cultural do modernismo e o mordaz polemista, com a inclusão de O Lado Oposto e Outros Lados, artigo no qual Sérgio Buarque defende determinado programa para a cultura brasileira, ou melhor, certa ausência de programa, desferindo cortantes ataques a Tristão de Athayde, a Mário de Andrade, a quem associa a “panaceia abominável da construção”, isto é, certa visão dirigista e artificiosa da cultura nacional.

O antropólogo Sérgio Buarque de Holanda, autor de 'Raízes do Brasil' e outros clássicos sobre o povo brasileiro  Foto: Domício Pinheiro/Estadão – 22/8/1975

Já em O Mito Americano, há o brilhante historiador da literatura que só se deu a conhecer depois da publicação de Capítulos de Literatura Colonial (Brasiliense, 1991) – hoje fora de catálogo, um contraponto à interpretação da Formação da Literatura Brasileira de Antonio Candido, aliás seu dedicado organizador e prefaciador. No capítulo que aparece no Essencial, Sérgio faz o pequeno milagre de tornar altamente estimulante uma minuciosa arqueologia das fontes estilísticas e ideológicas de um poema de qualidade (a seu ver, pelo menos) mediana, o Caramuru de Santa Rita Durão, em hábil equilíbrio entre história literária e intelectual. Insólito pioneiro da exaltação poética da paisagem brasileira (e precursor de certo “sentimento nacional”), Durão, que provavelmente mal se lembrava de sua terra natal ao escrever, idoso, do outro lado do Atlântico, o seu Caramuru, revela em sua epopeia e em sua surpreendente biografia o difícil equilíbrio de múltiplos antagonismos – o cultivo simultâneo e contraditório das tradições poéticas portuguesas, clássicas e italianas, a efervescência do Iluminismo em meio ao arcaico mundo luso-brasileiro, o imperativo da sobrevivência em meio às intrigas político-eclesiásticas do período pombalino.

É uma pena que tenha faltado neste volume o penetrante crítico literário da maturidade, dos ensaios sobre Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, incontornáveis para quem se interesse por qualquer um dos três poetas. Presente, por outro lado, está o estimulante texto programático Missão e Profissão, que representa bem a trajetória do autor como militante por um ideal de cultura ao qual resistiam, por uma espécie de atavismo maligno, as elites letradas brasileiras. Sempre insatisfeito com o estado da literatura nacional, que considerava perpassada por uma compreensão preguiçosa e autocomplacente do ideal romântico de gênio artístico, Sérgio Buarque se encaixava bem na imagem com que outro crítico, Mário Pedrosa, ilustrava o próprio ofício: a de um “grilo chato que não para, num canto da sala grande social, de dar sinal de sua presença”. É interessante ver aqui os desdobramentos de análises que aparecem pela primeira vez nos capítulos finais de Raízes do Brasil – aqui preteridos em favor do belo O Semeador e o Ladrilhador – num texto de intervenção que não deixa de ser uma espécie de exame de consciência sobre a atuação do próprio autor no movimento modernista.

Mesmo sem acesso a uma amostra do olhar crítico do autor em seus maiores êxitos, o fato é que esse volume projeta uma imagem renovada da obra de Sérgio Buarque: altivamente alheio ao sempre insepulto “homem cordial”, ele destaca, com a abrangência possível em semelhante empreendimento, a construção de um olhar sobre a formação brasileira numa gama textual capaz de suscitar as mais diversificadas experiências. É particularmente fascinante notar o trânsito da prosa de Sérgio em diferentes modalidades e momentos – o autor de O Lado Oposto e Outros Lados, que ali parece, apesar de si mesmo, seduzido por uma afetação de oralidade à maneira do então rival Mário de Andrade, vai tomando gosto, ao longo do tempo, por períodos longos e sinuosos, mas sempre rigorosamente obedientes à sintaxe e à lógica, fazendo da compreensão de seus argumentos um requintado e cerebral exercício de resultados surpreendentes no que revelam de sutil visão da história e rara intimidade com os mecanismos da língua.

Volume renova a imagem do autor, tido como uma espécie de herói civilizador da historiografia brasileira

Essa arte atinge seu zênite em Visão do Paraíso, livro que fascina pela estranheza de sua estrutura e pela ambição de investigar as fronteiras entre realidade e fantasia na forma mental luso-brasileira, do qual se reproduz aqui um dos mais contundentes capítulos. Laura de Mello e Souza o denominou, com justa ousadia, uma das maiores expressões da cultura brasileira. Aqui, a virtude do escritor está em tornar quase imperceptível a diferença entre a sua voz e a dos documentos investigados, produzindo uma simulação de português arcaico que facilita o trânsito de nossa imaginação para o mundo que tenta descrever. Trata-se de elaborado ilusionismo – nenhum documento de época fala realmente essa língua, que é uma singular invenção do historiador.

Pai e filho, Sergio e Chico Buarque de Holanda em 1979 Foto: Madalena Schwartz/ Instituto Moreira Salles

O Transporte Fluvial, capítulo de Monções aqui recolhido, mostra um Sérgio Buarque empenhado (até que ponto bem-sucedido é uma questão em aberto) na construção de uma narrativa não celebratória do mundo dos bandeirantes paulistas. Malgrado o incômodo que poderá nascer, hoje, da linguagem do historiador, perpassada pela discreta, mas reiterada desqualificação do modo de vida dos povos originários do sertão e pelo que Alfredo Bosi denominou uma “sutil sublimação do bandeirismo”, é certo que qualquer um interessado em compreender a expansão, a partir de São Paulo, desde o início da povoação portuguesa até fins do século 18, de uma civilização híbrida – de traços culturais e técnicas amplamente apropriadas dos povos indígenas – poderá tirar grande proveito desse texto.

Já o complexo de capítulos dedicados à história política do Segundo Reinado apresenta uma crítica dura ao sistema político do Império, despida das idealizações em torno da monarquia que mal ou bem ainda vicejavam em Raízes do Brasil. Certa visão trágica do ocaso dos Bragança, que revela, no livro de 1936, alguma fidelidade do autor às suas origens familiares nas classes senhoriais do Império, dá lugar, em A Crise do Regime e O Pássaro e a Sombra, a uma denúncia quase rancorosa da nulidade moral e intelectual da classe política e de seu líder, incapazes de responder ao iminente desmoronamento de um sistema edificado sobre a escravidão. Especialmente saboroso é o emprego que Sérgio faz da expressão “o poder irresponsável” em referência ao monarca – termo técnico do bizarro constitucionalismo monárquico brasileiro, teoricamente neutro, mas que na voz do narrador se reveste de clara tonalidade polêmica.

Especialmente saboroso é o emprego que Sérgio faz da expressão “o poder irresponsável” em referência ao monarca

A escolha de O Semeador e o Ladrilhador como representante de Raízes do Brasil – livro renegado pelo autor, mas inegavelmente o mais sugestivo de sua obra – parece estrategicamente destinada a deslocar o foco sobre o livro da noção de “homem cordial” (ideia que, pelo nome, se não pelo sentido que encontra em Raízes, não é criação original de Sérgio Buarque), bem como da discussão sobre a posição política do livro, na direção de uma imagem mais representativa da argumentação histórico-sociológica do ensaio, que atribui ao caráter rural e patriarcal da formação dos grupos dominantes da sociedade brasileira anterior à emancipação política um papel determinante na definição de aspectos importantes da vida nacional a partir de 1822, incluindo das formas de educar as crianças à política partidária e às manifestações poéticas.

Aliando as interpretações sociológicas que identificavam as origens culturais da “ética econômica” e da conformação social das diferentes populações (como as de Max Weber e Werner Sombart) à aguda análise de documentos da mais variada natureza, mostra-se aqui o melhor da parte da obra buarquiana ainda indecisa entre a história e a sociologia. O texto atribui certo estilo de vida e pensamento passivo, quase vegetativo, aos colonizadores portugueses, que teriam praticado, ao deitarem raízes no novo mundo, uma colonização de ânimo acomodatício, avesso a grandes desafios à ordem da natureza, com um ethos parasitário que se refletirá posteriormente numa escassa aptidão para a organização social e para o pensamento original.

Carteirinha de Buarque da Associação Brasileira de Escritores  Foto: Unicamp

Essa forma de vida “semeadora” ganha contornos próprios pelo seu confronto com aquela mais sistemática e industriosa dos espanhóis, os “ladrilhadores” cuja vocação racionalista se deixa ver no traçado retilíneo e gradeado das cidades hispano-americanas, mesmo aquelas edificadas sobre terreno acidentado, quase sem correspondente no Brasil colonial – compare-se o mapa do centro de La Paz ou Cusco com o de Ouro Preto.

Bela vitrine dos dotes intelectuais e artísticos do extraordinário Sérgio Buarque de Holanda, este Essencial parece bem preparado para a tarefa de atrair leitores sensíveis para uma das obras mais versáteis da literatura brasileira.

ESSENCIAL

SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

OGANIZAÇÃO DE LILIA SCHWARCZ E PEDRO MEIRA MONTEIRO

EDITORA.: PENGUIN/COMPANHIA

392 PÁGINAS. R$ 69,90 OU R$ 39,90

Autor festejado como poucos, Sérgio Buarque de Holanda é o objeto de uma nova seleção de textos, a mais recente das que vêm sendo lançadas, sob o título de Essencial. Com isso, o intelectual paulista se junta a Joaquim Nabuco, Jorge Amado, Celso Furtado e Antônio Vieira, reforçando a vocação da coleção como introdução, voltada a um público geral, a autores amplamente canonizados. Este Essencial Sérgio Buarque de Holanda, organizado por Lilia Schwarcz e Pedro Meira Monteiro, não é o primeiro empreendimento desse tipo dedicado à obra do autor. O volume Sérgio Buarque de Holanda (1985, ed. Ática), seleção de excertos escolhidos por Maria Odila da Silva Dias, historiadora e aluna de Sérgio, representou um marco na fixação da imagem do autor como uma espécie de herói civilizador da historiografia brasileira. Ainda que repetindo algumas das escolhas da coletânea de 1985, a de 2023 parece sugerir ao público uma imagem bastante diversa do autor, que reflete bem a evolução dos estudos em torno da obra buarquiana, assim como os debates mais amplos sobre a interpretação da cultura brasileira.

Em 1985, o que se apresentava ao público eram recortes dos grandes êxitos de Sérgio Buarque como historiador (da civilização material, das formações mentais e da política, sobretudo), acompanhados de uma interpretação da obra, lançada no perspicaz ensaio introdutório da organizadora, que convertia a produção não estritamente historiográfica em esteio “formativo” de uma brilhante trajetória profissional e universitária na área de História. No livro ora resenhado, as coisas mudam bastante de figura. Sem que saiam de cena o erudito analista das formações mentais de Visão do Paraíso, o inventivo analista dos fenômenos culturais de Raízes do Brasil e Monções ou o austero e um pouco prolixo intérprete da história política do Segundo Reinado, entra, por exemplo, o agitador cultural do modernismo e o mordaz polemista, com a inclusão de O Lado Oposto e Outros Lados, artigo no qual Sérgio Buarque defende determinado programa para a cultura brasileira, ou melhor, certa ausência de programa, desferindo cortantes ataques a Tristão de Athayde, a Mário de Andrade, a quem associa a “panaceia abominável da construção”, isto é, certa visão dirigista e artificiosa da cultura nacional.

O antropólogo Sérgio Buarque de Holanda, autor de 'Raízes do Brasil' e outros clássicos sobre o povo brasileiro  Foto: Domício Pinheiro/Estadão – 22/8/1975

Já em O Mito Americano, há o brilhante historiador da literatura que só se deu a conhecer depois da publicação de Capítulos de Literatura Colonial (Brasiliense, 1991) – hoje fora de catálogo, um contraponto à interpretação da Formação da Literatura Brasileira de Antonio Candido, aliás seu dedicado organizador e prefaciador. No capítulo que aparece no Essencial, Sérgio faz o pequeno milagre de tornar altamente estimulante uma minuciosa arqueologia das fontes estilísticas e ideológicas de um poema de qualidade (a seu ver, pelo menos) mediana, o Caramuru de Santa Rita Durão, em hábil equilíbrio entre história literária e intelectual. Insólito pioneiro da exaltação poética da paisagem brasileira (e precursor de certo “sentimento nacional”), Durão, que provavelmente mal se lembrava de sua terra natal ao escrever, idoso, do outro lado do Atlântico, o seu Caramuru, revela em sua epopeia e em sua surpreendente biografia o difícil equilíbrio de múltiplos antagonismos – o cultivo simultâneo e contraditório das tradições poéticas portuguesas, clássicas e italianas, a efervescência do Iluminismo em meio ao arcaico mundo luso-brasileiro, o imperativo da sobrevivência em meio às intrigas político-eclesiásticas do período pombalino.

É uma pena que tenha faltado neste volume o penetrante crítico literário da maturidade, dos ensaios sobre Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, incontornáveis para quem se interesse por qualquer um dos três poetas. Presente, por outro lado, está o estimulante texto programático Missão e Profissão, que representa bem a trajetória do autor como militante por um ideal de cultura ao qual resistiam, por uma espécie de atavismo maligno, as elites letradas brasileiras. Sempre insatisfeito com o estado da literatura nacional, que considerava perpassada por uma compreensão preguiçosa e autocomplacente do ideal romântico de gênio artístico, Sérgio Buarque se encaixava bem na imagem com que outro crítico, Mário Pedrosa, ilustrava o próprio ofício: a de um “grilo chato que não para, num canto da sala grande social, de dar sinal de sua presença”. É interessante ver aqui os desdobramentos de análises que aparecem pela primeira vez nos capítulos finais de Raízes do Brasil – aqui preteridos em favor do belo O Semeador e o Ladrilhador – num texto de intervenção que não deixa de ser uma espécie de exame de consciência sobre a atuação do próprio autor no movimento modernista.

Mesmo sem acesso a uma amostra do olhar crítico do autor em seus maiores êxitos, o fato é que esse volume projeta uma imagem renovada da obra de Sérgio Buarque: altivamente alheio ao sempre insepulto “homem cordial”, ele destaca, com a abrangência possível em semelhante empreendimento, a construção de um olhar sobre a formação brasileira numa gama textual capaz de suscitar as mais diversificadas experiências. É particularmente fascinante notar o trânsito da prosa de Sérgio em diferentes modalidades e momentos – o autor de O Lado Oposto e Outros Lados, que ali parece, apesar de si mesmo, seduzido por uma afetação de oralidade à maneira do então rival Mário de Andrade, vai tomando gosto, ao longo do tempo, por períodos longos e sinuosos, mas sempre rigorosamente obedientes à sintaxe e à lógica, fazendo da compreensão de seus argumentos um requintado e cerebral exercício de resultados surpreendentes no que revelam de sutil visão da história e rara intimidade com os mecanismos da língua.

Volume renova a imagem do autor, tido como uma espécie de herói civilizador da historiografia brasileira

Essa arte atinge seu zênite em Visão do Paraíso, livro que fascina pela estranheza de sua estrutura e pela ambição de investigar as fronteiras entre realidade e fantasia na forma mental luso-brasileira, do qual se reproduz aqui um dos mais contundentes capítulos. Laura de Mello e Souza o denominou, com justa ousadia, uma das maiores expressões da cultura brasileira. Aqui, a virtude do escritor está em tornar quase imperceptível a diferença entre a sua voz e a dos documentos investigados, produzindo uma simulação de português arcaico que facilita o trânsito de nossa imaginação para o mundo que tenta descrever. Trata-se de elaborado ilusionismo – nenhum documento de época fala realmente essa língua, que é uma singular invenção do historiador.

Pai e filho, Sergio e Chico Buarque de Holanda em 1979 Foto: Madalena Schwartz/ Instituto Moreira Salles

O Transporte Fluvial, capítulo de Monções aqui recolhido, mostra um Sérgio Buarque empenhado (até que ponto bem-sucedido é uma questão em aberto) na construção de uma narrativa não celebratória do mundo dos bandeirantes paulistas. Malgrado o incômodo que poderá nascer, hoje, da linguagem do historiador, perpassada pela discreta, mas reiterada desqualificação do modo de vida dos povos originários do sertão e pelo que Alfredo Bosi denominou uma “sutil sublimação do bandeirismo”, é certo que qualquer um interessado em compreender a expansão, a partir de São Paulo, desde o início da povoação portuguesa até fins do século 18, de uma civilização híbrida – de traços culturais e técnicas amplamente apropriadas dos povos indígenas – poderá tirar grande proveito desse texto.

Já o complexo de capítulos dedicados à história política do Segundo Reinado apresenta uma crítica dura ao sistema político do Império, despida das idealizações em torno da monarquia que mal ou bem ainda vicejavam em Raízes do Brasil. Certa visão trágica do ocaso dos Bragança, que revela, no livro de 1936, alguma fidelidade do autor às suas origens familiares nas classes senhoriais do Império, dá lugar, em A Crise do Regime e O Pássaro e a Sombra, a uma denúncia quase rancorosa da nulidade moral e intelectual da classe política e de seu líder, incapazes de responder ao iminente desmoronamento de um sistema edificado sobre a escravidão. Especialmente saboroso é o emprego que Sérgio faz da expressão “o poder irresponsável” em referência ao monarca – termo técnico do bizarro constitucionalismo monárquico brasileiro, teoricamente neutro, mas que na voz do narrador se reveste de clara tonalidade polêmica.

Especialmente saboroso é o emprego que Sérgio faz da expressão “o poder irresponsável” em referência ao monarca

A escolha de O Semeador e o Ladrilhador como representante de Raízes do Brasil – livro renegado pelo autor, mas inegavelmente o mais sugestivo de sua obra – parece estrategicamente destinada a deslocar o foco sobre o livro da noção de “homem cordial” (ideia que, pelo nome, se não pelo sentido que encontra em Raízes, não é criação original de Sérgio Buarque), bem como da discussão sobre a posição política do livro, na direção de uma imagem mais representativa da argumentação histórico-sociológica do ensaio, que atribui ao caráter rural e patriarcal da formação dos grupos dominantes da sociedade brasileira anterior à emancipação política um papel determinante na definição de aspectos importantes da vida nacional a partir de 1822, incluindo das formas de educar as crianças à política partidária e às manifestações poéticas.

Aliando as interpretações sociológicas que identificavam as origens culturais da “ética econômica” e da conformação social das diferentes populações (como as de Max Weber e Werner Sombart) à aguda análise de documentos da mais variada natureza, mostra-se aqui o melhor da parte da obra buarquiana ainda indecisa entre a história e a sociologia. O texto atribui certo estilo de vida e pensamento passivo, quase vegetativo, aos colonizadores portugueses, que teriam praticado, ao deitarem raízes no novo mundo, uma colonização de ânimo acomodatício, avesso a grandes desafios à ordem da natureza, com um ethos parasitário que se refletirá posteriormente numa escassa aptidão para a organização social e para o pensamento original.

Carteirinha de Buarque da Associação Brasileira de Escritores  Foto: Unicamp

Essa forma de vida “semeadora” ganha contornos próprios pelo seu confronto com aquela mais sistemática e industriosa dos espanhóis, os “ladrilhadores” cuja vocação racionalista se deixa ver no traçado retilíneo e gradeado das cidades hispano-americanas, mesmo aquelas edificadas sobre terreno acidentado, quase sem correspondente no Brasil colonial – compare-se o mapa do centro de La Paz ou Cusco com o de Ouro Preto.

Bela vitrine dos dotes intelectuais e artísticos do extraordinário Sérgio Buarque de Holanda, este Essencial parece bem preparado para a tarefa de atrair leitores sensíveis para uma das obras mais versáteis da literatura brasileira.

ESSENCIAL

SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

OGANIZAÇÃO DE LILIA SCHWARCZ E PEDRO MEIRA MONTEIRO

EDITORA.: PENGUIN/COMPANHIA

392 PÁGINAS. R$ 69,90 OU R$ 39,90

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