Coluna quinzenal do jornalista e crítico Sérgio Martins com histórias da música

Opinião|A arte de levar a vida no grito - e os gritos inesquecíveis da história da música


Um brado bem colocado é um chamariz e tanto para determinado artista ou canção. Por isso, há intérpretes que fazem da gritaria uma mostra de seu virtuosismo

Por Sérgio Martins

Quem tem filho(a), sobrinho(a) ou algum conhecido(a) entrado na adolescência, já sabe: está em cartaz Wicked, adaptação cinematográfica do musical do compositor Stephen Schwartz e da dramaturga e roteirista Winnie Holzman que traz uma história alternativa da Bruxa Má do Mágico de Oz. E a popstar juvenil Ariana Grande está di-vi-na e ma-ra-vi-lho-sa na pele da bruxa Glinda.

Os fãs do musical, contudo, esperam pacientemente as mais de duas horas e meia da produção para se deliciar com Defying Gravity, momento em que a bruxa Elphaba (Cynthia Erivo) aprende a voar e desafia o Mágico de Oz. O ponto alto é o grito agudo que ela dá ao final da canção - uma técnica que nos universo dos musicais é chamada de belting.

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Tempos atrás, entrevistei Stephen Schwartz e perguntei a ele se não era o cúmulo da crueldade obrigar Idina Menzel, atriz que deu vida a Elphaba (personagem que rendeu a ela um Tony, o Oscar do teatro musical) dar aquele grito pelo menos oito sessões por semana. “Meu querido, foi ELA quem pediu”, divertiu-se o compositor. A princípio, até desconfiei da resposta, mas Idina é uma berradora reincidente: uma década depois do “uou uou uou uou” de Defying Gravity, ela surgiu com o “lerigou” (Let it Go, claro) de Frozen - Uma Aventura Congelante, que foi Oscar de melhor canção.

Idina Menzel chega à estreia de 'Wicked' no Dorothy Chandler Pavilion em Los Angeles Foto: Jordan Strauss/Jordan Strauss/Invision/AP

Gosto muito da explosão final de Idina no teatro, bem como a de Cynthia Erivo no cinema e de Myra Ruiz na versão brasileira do musical - cada uma brada de um jeito diferente, cada uma coloca o sentimento que lhe parece ser adequado naquele momento. Para ser sincero, eu adoro um grito. Não sei se foi dos filmes da Hammer que assistia com a minha avó na infância (as vítimas do Drácula vivido por Christopher Lee tinham o aparelho fonador em dia) ou o temor que sentia com as broncas da minha mãe, mas poucas coisas são mais eficientes do que um bramido dado na hora certa.

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Historicamente, o grito na música popular existe há quase um século. Mais especificamente, no universo gospel. Em 1927, o reverendo J.M. Gates expulsou todos os demônios aos quais tinha direito na canção Black Diamond Express to Hell.

E embora “shouting” e “screaming” sejam traduzidos por gritos, existe diferença entre os termos. O “shouting” de Gates está relacionado à liberação emocional. O “screaming” seria pura manifestação de histeria. Coube ao bluesman Blind Willie Johnson e depois a Ray Charles e Sam Cooke -os criadores da soul music- colocar o grito a favor da dor, da alegria e do prazer. Cooke, mais do que todos: os “woah” que ele lançava nas baladas, era um chamado e tanto para o amor.

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Um brado bem colocado é um chamariz e tanto para determinado artista ou canção. Os uivos sensuais de Little Richard em Keep a Knockin’ e a gritaria dos Beatles em Twist and Shout despertaram a atenção para o trabalho desses dois artistas - que, claro, possuem uma obra que vai além da compilação de cantos rasgados. E quem nunca se encantou com os gritinhos de Michael Jackson e Prince, presentes em muitos de seus hits? E o que dizer de Like a Virgin, de Madonna, cujo “hey” virou um chamariz da composição (e olha que, intérprete de voz pequena, ela raramente se aventurou por esse exercício de virtuosismo)?

O grito é ainda a explosão final de dor e inconformismo que a canção pede. É o único recurso possível para John Lennon ao final de Mother, onde ele lamenta ter sido largado pelos pais. Ou de James Brown em The Payback, que enumera uma série de afrontas às quais foi submetido por um rival e promete vingança. E não há como não sentir na pele as frustrações do amor tóxico sofrido por Big Mama Thornton e Janis Joplin no blues Ball and Chain.

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Child in Time, do quinteto inglês de rock Deep Purple, é um protesto contra a violência durante o período da Guerra Fria. Seu ponto alto está nos gritos do vocalista Ian Gillan, que fazem a transição da parte lenta da música para uma sonoridade mais pesada. Ela não teria metade de sua força se não tivesse esse recurso.

Gillan, aliás, é um expert nos guinchos. Escalado pelo compositor Andrew Lloyd Webber e pelo letrista Tim Rice para viver Jesus Cristo no álbum Jesus Christ Superstar - que depois iria para o teatro musical -, ele dá uma nota aguda em Gethsemane que tornou a vida dos filhos de Deus seguintes muito mais difícil. A canção é um grande momento de inspiração de Webber e Rice: Jesus, às vésperas de seu sacrifício, pergunta a Deus por que tem de morrer. E o agudo estendido no “whyyyyyyyyyy do I have to die” é seu ponto máximo. O cantor Alirio Netto, um dos inúmeros Jesus na história do espetáculo, me disse que foram necessárias muitas aulas de canto para chegar ao agudo perfeito. Quando comentei com Gillan sobre o desafio, ele riu e disse: “Desculpa eu ter colocado a canção num patamar muito difícil para ser equiparada por cantores normais.”

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Há intérpretes que fazem da gritaria uma mostra de seu virtuosismo. Freddie Mercury, do Queen, soltou seus agudos ao final de Somebody to Love, que ele sonhava que fosse gravada por Aretha Franklin. E proporcionou outro desafio em The Show Must Go On, uma de suas canções derradeiras, que tem uma sucessão de agudos no final da música. Mariah Carey criou as whistle notes, aquele agudo fininho que parece um assobio.

Celine Dion me assombra até hoje com aquela gritaria desenfreada e sem emoção. Whitney Houston tornou o brado de devoção em algo tão simples que todo candidato em programa de calouro acha que consegue imitá-lo (não, não conseguem). O grito chega a ser guardado a sete chaves para os momentos finais de uma apresentação. O cantor inglês Joe Cocker e Roger Daltrey, vocalista do The Who, passam uma performance inteira poupando a voz para soltar os brados pelos quais são reverenciados - Cocker em With a Little Help from My Friends, e Daltrey no hino inconformista We Won`t Get Fooled Again. E ai deles se não atingirem o tom certo nos momentos onde são exigidos.

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Em meus tempos de juventude, achei que poderia ser vocalista de rock. Influenciado por nomes como Robert Plant e Rob Halford, ousei a encher canções de Legião Urbana e Titãs de agudos incompreensíveis. No máximo, soava como o grito de Tarzan dado por um senhor de 70 anos ou os guinchos de Axl Rose nas mais recentes apresentações do Guns N`Roses. Os gritos hoje estão reservados a sessões de tortura ocasionais. Como as que propus hoje à minha família que foi obrigada a escutar, sem descanso, os uivos de cada faixa citada nessa coluna.

Quem tem filho(a), sobrinho(a) ou algum conhecido(a) entrado na adolescência, já sabe: está em cartaz Wicked, adaptação cinematográfica do musical do compositor Stephen Schwartz e da dramaturga e roteirista Winnie Holzman que traz uma história alternativa da Bruxa Má do Mágico de Oz. E a popstar juvenil Ariana Grande está di-vi-na e ma-ra-vi-lho-sa na pele da bruxa Glinda.

Os fãs do musical, contudo, esperam pacientemente as mais de duas horas e meia da produção para se deliciar com Defying Gravity, momento em que a bruxa Elphaba (Cynthia Erivo) aprende a voar e desafia o Mágico de Oz. O ponto alto é o grito agudo que ela dá ao final da canção - uma técnica que nos universo dos musicais é chamada de belting.

Tempos atrás, entrevistei Stephen Schwartz e perguntei a ele se não era o cúmulo da crueldade obrigar Idina Menzel, atriz que deu vida a Elphaba (personagem que rendeu a ela um Tony, o Oscar do teatro musical) dar aquele grito pelo menos oito sessões por semana. “Meu querido, foi ELA quem pediu”, divertiu-se o compositor. A princípio, até desconfiei da resposta, mas Idina é uma berradora reincidente: uma década depois do “uou uou uou uou” de Defying Gravity, ela surgiu com o “lerigou” (Let it Go, claro) de Frozen - Uma Aventura Congelante, que foi Oscar de melhor canção.

Idina Menzel chega à estreia de 'Wicked' no Dorothy Chandler Pavilion em Los Angeles Foto: Jordan Strauss/Jordan Strauss/Invision/AP

Gosto muito da explosão final de Idina no teatro, bem como a de Cynthia Erivo no cinema e de Myra Ruiz na versão brasileira do musical - cada uma brada de um jeito diferente, cada uma coloca o sentimento que lhe parece ser adequado naquele momento. Para ser sincero, eu adoro um grito. Não sei se foi dos filmes da Hammer que assistia com a minha avó na infância (as vítimas do Drácula vivido por Christopher Lee tinham o aparelho fonador em dia) ou o temor que sentia com as broncas da minha mãe, mas poucas coisas são mais eficientes do que um bramido dado na hora certa.

Historicamente, o grito na música popular existe há quase um século. Mais especificamente, no universo gospel. Em 1927, o reverendo J.M. Gates expulsou todos os demônios aos quais tinha direito na canção Black Diamond Express to Hell.

E embora “shouting” e “screaming” sejam traduzidos por gritos, existe diferença entre os termos. O “shouting” de Gates está relacionado à liberação emocional. O “screaming” seria pura manifestação de histeria. Coube ao bluesman Blind Willie Johnson e depois a Ray Charles e Sam Cooke -os criadores da soul music- colocar o grito a favor da dor, da alegria e do prazer. Cooke, mais do que todos: os “woah” que ele lançava nas baladas, era um chamado e tanto para o amor.

Um brado bem colocado é um chamariz e tanto para determinado artista ou canção. Os uivos sensuais de Little Richard em Keep a Knockin’ e a gritaria dos Beatles em Twist and Shout despertaram a atenção para o trabalho desses dois artistas - que, claro, possuem uma obra que vai além da compilação de cantos rasgados. E quem nunca se encantou com os gritinhos de Michael Jackson e Prince, presentes em muitos de seus hits? E o que dizer de Like a Virgin, de Madonna, cujo “hey” virou um chamariz da composição (e olha que, intérprete de voz pequena, ela raramente se aventurou por esse exercício de virtuosismo)?

O grito é ainda a explosão final de dor e inconformismo que a canção pede. É o único recurso possível para John Lennon ao final de Mother, onde ele lamenta ter sido largado pelos pais. Ou de James Brown em The Payback, que enumera uma série de afrontas às quais foi submetido por um rival e promete vingança. E não há como não sentir na pele as frustrações do amor tóxico sofrido por Big Mama Thornton e Janis Joplin no blues Ball and Chain.

Child in Time, do quinteto inglês de rock Deep Purple, é um protesto contra a violência durante o período da Guerra Fria. Seu ponto alto está nos gritos do vocalista Ian Gillan, que fazem a transição da parte lenta da música para uma sonoridade mais pesada. Ela não teria metade de sua força se não tivesse esse recurso.

Gillan, aliás, é um expert nos guinchos. Escalado pelo compositor Andrew Lloyd Webber e pelo letrista Tim Rice para viver Jesus Cristo no álbum Jesus Christ Superstar - que depois iria para o teatro musical -, ele dá uma nota aguda em Gethsemane que tornou a vida dos filhos de Deus seguintes muito mais difícil. A canção é um grande momento de inspiração de Webber e Rice: Jesus, às vésperas de seu sacrifício, pergunta a Deus por que tem de morrer. E o agudo estendido no “whyyyyyyyyyy do I have to die” é seu ponto máximo. O cantor Alirio Netto, um dos inúmeros Jesus na história do espetáculo, me disse que foram necessárias muitas aulas de canto para chegar ao agudo perfeito. Quando comentei com Gillan sobre o desafio, ele riu e disse: “Desculpa eu ter colocado a canção num patamar muito difícil para ser equiparada por cantores normais.”

Há intérpretes que fazem da gritaria uma mostra de seu virtuosismo. Freddie Mercury, do Queen, soltou seus agudos ao final de Somebody to Love, que ele sonhava que fosse gravada por Aretha Franklin. E proporcionou outro desafio em The Show Must Go On, uma de suas canções derradeiras, que tem uma sucessão de agudos no final da música. Mariah Carey criou as whistle notes, aquele agudo fininho que parece um assobio.

Celine Dion me assombra até hoje com aquela gritaria desenfreada e sem emoção. Whitney Houston tornou o brado de devoção em algo tão simples que todo candidato em programa de calouro acha que consegue imitá-lo (não, não conseguem). O grito chega a ser guardado a sete chaves para os momentos finais de uma apresentação. O cantor inglês Joe Cocker e Roger Daltrey, vocalista do The Who, passam uma performance inteira poupando a voz para soltar os brados pelos quais são reverenciados - Cocker em With a Little Help from My Friends, e Daltrey no hino inconformista We Won`t Get Fooled Again. E ai deles se não atingirem o tom certo nos momentos onde são exigidos.

Em meus tempos de juventude, achei que poderia ser vocalista de rock. Influenciado por nomes como Robert Plant e Rob Halford, ousei a encher canções de Legião Urbana e Titãs de agudos incompreensíveis. No máximo, soava como o grito de Tarzan dado por um senhor de 70 anos ou os guinchos de Axl Rose nas mais recentes apresentações do Guns N`Roses. Os gritos hoje estão reservados a sessões de tortura ocasionais. Como as que propus hoje à minha família que foi obrigada a escutar, sem descanso, os uivos de cada faixa citada nessa coluna.

Quem tem filho(a), sobrinho(a) ou algum conhecido(a) entrado na adolescência, já sabe: está em cartaz Wicked, adaptação cinematográfica do musical do compositor Stephen Schwartz e da dramaturga e roteirista Winnie Holzman que traz uma história alternativa da Bruxa Má do Mágico de Oz. E a popstar juvenil Ariana Grande está di-vi-na e ma-ra-vi-lho-sa na pele da bruxa Glinda.

Os fãs do musical, contudo, esperam pacientemente as mais de duas horas e meia da produção para se deliciar com Defying Gravity, momento em que a bruxa Elphaba (Cynthia Erivo) aprende a voar e desafia o Mágico de Oz. O ponto alto é o grito agudo que ela dá ao final da canção - uma técnica que nos universo dos musicais é chamada de belting.

Tempos atrás, entrevistei Stephen Schwartz e perguntei a ele se não era o cúmulo da crueldade obrigar Idina Menzel, atriz que deu vida a Elphaba (personagem que rendeu a ela um Tony, o Oscar do teatro musical) dar aquele grito pelo menos oito sessões por semana. “Meu querido, foi ELA quem pediu”, divertiu-se o compositor. A princípio, até desconfiei da resposta, mas Idina é uma berradora reincidente: uma década depois do “uou uou uou uou” de Defying Gravity, ela surgiu com o “lerigou” (Let it Go, claro) de Frozen - Uma Aventura Congelante, que foi Oscar de melhor canção.

Idina Menzel chega à estreia de 'Wicked' no Dorothy Chandler Pavilion em Los Angeles Foto: Jordan Strauss/Jordan Strauss/Invision/AP

Gosto muito da explosão final de Idina no teatro, bem como a de Cynthia Erivo no cinema e de Myra Ruiz na versão brasileira do musical - cada uma brada de um jeito diferente, cada uma coloca o sentimento que lhe parece ser adequado naquele momento. Para ser sincero, eu adoro um grito. Não sei se foi dos filmes da Hammer que assistia com a minha avó na infância (as vítimas do Drácula vivido por Christopher Lee tinham o aparelho fonador em dia) ou o temor que sentia com as broncas da minha mãe, mas poucas coisas são mais eficientes do que um bramido dado na hora certa.

Historicamente, o grito na música popular existe há quase um século. Mais especificamente, no universo gospel. Em 1927, o reverendo J.M. Gates expulsou todos os demônios aos quais tinha direito na canção Black Diamond Express to Hell.

E embora “shouting” e “screaming” sejam traduzidos por gritos, existe diferença entre os termos. O “shouting” de Gates está relacionado à liberação emocional. O “screaming” seria pura manifestação de histeria. Coube ao bluesman Blind Willie Johnson e depois a Ray Charles e Sam Cooke -os criadores da soul music- colocar o grito a favor da dor, da alegria e do prazer. Cooke, mais do que todos: os “woah” que ele lançava nas baladas, era um chamado e tanto para o amor.

Um brado bem colocado é um chamariz e tanto para determinado artista ou canção. Os uivos sensuais de Little Richard em Keep a Knockin’ e a gritaria dos Beatles em Twist and Shout despertaram a atenção para o trabalho desses dois artistas - que, claro, possuem uma obra que vai além da compilação de cantos rasgados. E quem nunca se encantou com os gritinhos de Michael Jackson e Prince, presentes em muitos de seus hits? E o que dizer de Like a Virgin, de Madonna, cujo “hey” virou um chamariz da composição (e olha que, intérprete de voz pequena, ela raramente se aventurou por esse exercício de virtuosismo)?

O grito é ainda a explosão final de dor e inconformismo que a canção pede. É o único recurso possível para John Lennon ao final de Mother, onde ele lamenta ter sido largado pelos pais. Ou de James Brown em The Payback, que enumera uma série de afrontas às quais foi submetido por um rival e promete vingança. E não há como não sentir na pele as frustrações do amor tóxico sofrido por Big Mama Thornton e Janis Joplin no blues Ball and Chain.

Child in Time, do quinteto inglês de rock Deep Purple, é um protesto contra a violência durante o período da Guerra Fria. Seu ponto alto está nos gritos do vocalista Ian Gillan, que fazem a transição da parte lenta da música para uma sonoridade mais pesada. Ela não teria metade de sua força se não tivesse esse recurso.

Gillan, aliás, é um expert nos guinchos. Escalado pelo compositor Andrew Lloyd Webber e pelo letrista Tim Rice para viver Jesus Cristo no álbum Jesus Christ Superstar - que depois iria para o teatro musical -, ele dá uma nota aguda em Gethsemane que tornou a vida dos filhos de Deus seguintes muito mais difícil. A canção é um grande momento de inspiração de Webber e Rice: Jesus, às vésperas de seu sacrifício, pergunta a Deus por que tem de morrer. E o agudo estendido no “whyyyyyyyyyy do I have to die” é seu ponto máximo. O cantor Alirio Netto, um dos inúmeros Jesus na história do espetáculo, me disse que foram necessárias muitas aulas de canto para chegar ao agudo perfeito. Quando comentei com Gillan sobre o desafio, ele riu e disse: “Desculpa eu ter colocado a canção num patamar muito difícil para ser equiparada por cantores normais.”

Há intérpretes que fazem da gritaria uma mostra de seu virtuosismo. Freddie Mercury, do Queen, soltou seus agudos ao final de Somebody to Love, que ele sonhava que fosse gravada por Aretha Franklin. E proporcionou outro desafio em The Show Must Go On, uma de suas canções derradeiras, que tem uma sucessão de agudos no final da música. Mariah Carey criou as whistle notes, aquele agudo fininho que parece um assobio.

Celine Dion me assombra até hoje com aquela gritaria desenfreada e sem emoção. Whitney Houston tornou o brado de devoção em algo tão simples que todo candidato em programa de calouro acha que consegue imitá-lo (não, não conseguem). O grito chega a ser guardado a sete chaves para os momentos finais de uma apresentação. O cantor inglês Joe Cocker e Roger Daltrey, vocalista do The Who, passam uma performance inteira poupando a voz para soltar os brados pelos quais são reverenciados - Cocker em With a Little Help from My Friends, e Daltrey no hino inconformista We Won`t Get Fooled Again. E ai deles se não atingirem o tom certo nos momentos onde são exigidos.

Em meus tempos de juventude, achei que poderia ser vocalista de rock. Influenciado por nomes como Robert Plant e Rob Halford, ousei a encher canções de Legião Urbana e Titãs de agudos incompreensíveis. No máximo, soava como o grito de Tarzan dado por um senhor de 70 anos ou os guinchos de Axl Rose nas mais recentes apresentações do Guns N`Roses. Os gritos hoje estão reservados a sessões de tortura ocasionais. Como as que propus hoje à minha família que foi obrigada a escutar, sem descanso, os uivos de cada faixa citada nessa coluna.

Opinião por Sérgio Martins

Jornalista e crítico musical

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