Coluna quinzenal do jornalista e crítico Sérgio Martins com histórias da música

Opinião|Clara Nunes deixou legado no samba, mas não desfruta da popularidade de colegas de geração; entenda


Órfã de pai e mãe e morta aos 40 anos, cantora de voz cristalina foi a primeira intérprete a derrubar o mito perpetuado pelas gravadoras de que ‘mulher não vendia disco’; conheça sua trajetória

Por Sérgio Martins

Passei semanas nutrindo uma inveja doentia do meu primo Marcelo. Ele não só havia assistido a uma apresentação de Clara Nunes – e tinha apenas nove anos – como exibia a bochecha decorada por uma mancha de batom vermelho, resultado do beijo estalado da cantora mineira. Já eu, que fiquei em casa (nos anos 1970, era quase impossível uma criança assistir a shows de gente adulta), fui obrigado a me contentar com uma foto autografada, que gastou de tanto mostrá-la para os amigos.

Diante do cenário atual, nos quais fãs se descabelam e se endividam para assistir de perto os astros de sua preferência, soa ingênuo o imbróglio de dois gabolas por beijos e autógrafos. Mas, Clara Francisca Gonçalves, morta no dia 2 de abril de 1983, de choque anafilático, era grande. Grande, não. Gigante. Foi a primeira intérprete a derrubar o mito perpetuado pelas gravadoras que “mulher não vendia disco” e ajudou a popularizar o samba num período em que as rádios eram dominadas pelo cancioneiro internacional.

A cantora Clara Nunes em 1982. Foto: Joveci C. de Freitas/Estadão
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Possui uma discografia respeitável: gravou alguns dos maiores compositores da MPB (Cartola, Nelson Cavaquinho, Paulo César Pinheiro, Chico Buarque… a lista é grande) e sempre se fez acompanhar pelos maiores instrumentistas que tinha à sua disposição –seus trabalhos traziam, entre outros, o guitarrista Hélio Delmiro e o baterista Wilson das Neves, músicos do primeiro escalão dos estúdios.

É de se espantar que Clara, que ainda por cima era dona de uma voz potente e cristalina, não desfrute da mesma popularidade que suas parceiras de geração e estilo. E olha que não faltaram tributos ao seu talento. Marisa Monte a representou num desfile da Portela, em 2012, escola de coração de Clara e Marisa; Teresa Cristina, Fabiana Cozza e Virginia Rosa prestaram tributo ao seu repertório, e Vanessa da Mata se prepara viver a mineira num espetáculo musical que tem estreia prevista para 2 de agosto, em São Paulo (chama-se A Tal Guerreira e tem direção de Jorge Farjalla).

Por outro lado, pouco se fez para lembrar os 80 anos da cantora –as celebrações se restringiram a uma exposição e um festival de música realizados em Caetanópolis, sua cidade natal. Ela está longe das emissoras de rádio, playlists e dos discursos da maioria das intérpretes atuais (ainda que fosse admirada por suas contemporâneas: João Marcello Bôscoli diz que sua mãe, Elis Regina, tinha uma foto de Clara Nunes no camarim do show Saudades do Brasil, no Canecão). Falta uma ressignificação, uma apresentação digna do que intérpretes como Elza Soares e Alaíde Costa receberam em vida.

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João Marcello Bôscoli diz que sua mãe, Elis Regina, tinha uma foto de Clara Nunes no camarim do show 'Saudades do Brasil', no Canecão. Foto: Arquivo Pessoal / João Marcello Bôscoli

Uma das explicações para esse ocaso talvez esteja no fato dela ter morrido jovem demais para ganhar um resgate por parte de jovens cantantes e/ou produtores. Outra questão é que talvez faltasse a ela um discurso político mais engajado, embora o tenha feito através de boa parte de seu repertório (em especial nas letras de seu então marido, o compositor Paulo César Pinheiro) e participado de ações pela democracia.

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Suas entrevistas não traziam respostas/manifesto das intérpretes daquele período, mas sim uma demonstração de amor à música e ao público, muitas vezes de origem humilde, que consumia seus lançamentos. Embora fosse popular em variadas escalas sociais, era, majoritariamente, uma artista do povo.

Clara Nunes durante sua apresentação no "Canta Brasil", no Morumbi, zona sul da capital paulista, em 1982. Foto: Paullo Leite/Estadao

Clara Nunes nasceu no dia 12 de agosto de 1942 e desde cedo se encantou pelas vozes de Elizeth Cardoso, Dalva de Oliveira e Ângela Maria. Os sambas-canções e boleros que faziam parte do repertório dessas cantoras traziam em suas letras um quinhão de dramas e crimes passionais. Ironicamente, esses caprichos do destino também fizeram parte da sua vida pessoal – ficou órfã de pai e mãe aos seis anos, o irmão matou um namorado dela que, supostamente, havia insultado a honra de família.

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O samba – mais especificamente o partido alto – também estava ali, incrustado em meio a um repertório que pendia para o tristonho. A faixa-título de Você Passa e Eu Acho Graça, de seu segundo disco pela EMI, lançado em 1968, era uma parceria de Ataulfo Alves com o pândego apresentador e Carlos Imperial. Uma das lendas a respeito da canção é que ela seria apenas do segundo – Ataulfo teria entrado como coautor porque Clara era pouco afeita ao estilo espalhafatoso de Imperial.

O relacionamento profissional e pessoal da cantora com o radialista Adelzon Alves e com o compositor Paulo César Pinheiro, ambos nos anos 1970, foi importante na criação da persona pela qual a cantora ficou conhecida e a virada definitiva para o samba. O que aconteceu em seu quarto álbum, que trazia canções como Ê Baiana (de Fabrício da Silva, Baianinho, Ênio Santos Ribeiro e Miguel Pancrácio).

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O samba, então, se tornou mais presente nos lançamentos. Bota presente nisso: gravou versões definitivas de Juízo Final (de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares), Conto de Areia (de Romildo S. Bastos e Toninho Nascimento), O Mar Serenou (Candeia) e Alvorecer (Dona Ivone Lara e Delcio Carvalho) e Vendedor de Caranguejo, de Gordurinha (o cancioneiro nordestino também era constante no repertório de seus álbuns).

Canto das Três Raças, de 1976, não apenas solidificou sua relação com Pinheiro como também é um importante manifesto político. A melodia de Mauro Duarte tem o reforço de uma letra que fala da formação do povo brasileiro através da união de suas três raças, bem como as lutas pela liberdade e pela independência –em plena ditadura militar.

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Muitas das letras trazem outros significados. Como “por isso o que adianta estar nos mais altos degraus da fama/ Com a moral toda enterrada na lama”, em Lama, composição de Mauro Duarte; Ai Quem Me Dera, valsa de Toquinho e Vinicius de Moraes, que fala da “liberdade nunca ser demais/ E não haver mais solidão ruim…” Ou Tenha Paciência, melodia tristonha de Guilherme de Brito e Nelson Cavaquinho, uma canção de amor, mas onde prega que Deus “há de dar forças para a gente caminhar/ Vamos pra bem longe da maldade”.

“Mineira guerreira, filha de Ogum e Iansã…”, como bem professam os versos de Guerreira, parceira de Pinheiro com João Nogueira, Clara Nunes era devota das religiões afro-brasileiras, em especial a umbanda. Era comum vê-la de turbante, vestido branco e colares em suas aparições em programas de TV. Naquele período, essa vestimenta poderia ser considerado uma afronta. Nos dias atuais, ainda pode ser encarado como insulto. Basta lembrar que a cantora Anitta perdeu seguidores nas redes sociais porque trouxe cenas de rituais do candomblé na canção Aceita, de seu mais recente disco.

A cantora Clara Nunes é vista durante apresentação em 1981 Foto: Arquivo Estadão

Vanessa da Mata, por seu turno, lembra de um episódio que aconteceu com ela – e que serve como um laboratório e tanto para o seu personagem. “Certa vez, uma emissora evangélica disse que eu não poderia usar o termo ‘macumbeira’ numa das minhas canções. Concordei e cantei a música do jeito que quis”, diverte-se. É de se especular que Clara nos dias atuais não apenas fosse censurada como também seria acusada de apropriação cultural.

De volta ao pequeno fã dos anos 1970. Clara Nunes me emociona mais do que qualquer outra intérprete. Seus discos me serviram como porta de entrada para as belezas de Cartola, Nelson Cavaquinho, Dorival Caymmi, Candeia, Sivuca, Paulinho da Viola e Chico Buarque, todos parte de seu vasto repertório. E me trouxe mais perto de Clementina de Jesus e das escolas de samba do Rio – um de seus planos era registrar em disco homenagens a todas elas. Quanto ao meu primo, sua gabolice durou pouco: no mesmo dia, minha tia Dininha fez com que ele lavasse o rosto. E eu o amo com a mesma intensidade com a qual me emociono com o repertório de Clara.

Passei semanas nutrindo uma inveja doentia do meu primo Marcelo. Ele não só havia assistido a uma apresentação de Clara Nunes – e tinha apenas nove anos – como exibia a bochecha decorada por uma mancha de batom vermelho, resultado do beijo estalado da cantora mineira. Já eu, que fiquei em casa (nos anos 1970, era quase impossível uma criança assistir a shows de gente adulta), fui obrigado a me contentar com uma foto autografada, que gastou de tanto mostrá-la para os amigos.

Diante do cenário atual, nos quais fãs se descabelam e se endividam para assistir de perto os astros de sua preferência, soa ingênuo o imbróglio de dois gabolas por beijos e autógrafos. Mas, Clara Francisca Gonçalves, morta no dia 2 de abril de 1983, de choque anafilático, era grande. Grande, não. Gigante. Foi a primeira intérprete a derrubar o mito perpetuado pelas gravadoras que “mulher não vendia disco” e ajudou a popularizar o samba num período em que as rádios eram dominadas pelo cancioneiro internacional.

A cantora Clara Nunes em 1982. Foto: Joveci C. de Freitas/Estadão

Possui uma discografia respeitável: gravou alguns dos maiores compositores da MPB (Cartola, Nelson Cavaquinho, Paulo César Pinheiro, Chico Buarque… a lista é grande) e sempre se fez acompanhar pelos maiores instrumentistas que tinha à sua disposição –seus trabalhos traziam, entre outros, o guitarrista Hélio Delmiro e o baterista Wilson das Neves, músicos do primeiro escalão dos estúdios.

É de se espantar que Clara, que ainda por cima era dona de uma voz potente e cristalina, não desfrute da mesma popularidade que suas parceiras de geração e estilo. E olha que não faltaram tributos ao seu talento. Marisa Monte a representou num desfile da Portela, em 2012, escola de coração de Clara e Marisa; Teresa Cristina, Fabiana Cozza e Virginia Rosa prestaram tributo ao seu repertório, e Vanessa da Mata se prepara viver a mineira num espetáculo musical que tem estreia prevista para 2 de agosto, em São Paulo (chama-se A Tal Guerreira e tem direção de Jorge Farjalla).

Por outro lado, pouco se fez para lembrar os 80 anos da cantora –as celebrações se restringiram a uma exposição e um festival de música realizados em Caetanópolis, sua cidade natal. Ela está longe das emissoras de rádio, playlists e dos discursos da maioria das intérpretes atuais (ainda que fosse admirada por suas contemporâneas: João Marcello Bôscoli diz que sua mãe, Elis Regina, tinha uma foto de Clara Nunes no camarim do show Saudades do Brasil, no Canecão). Falta uma ressignificação, uma apresentação digna do que intérpretes como Elza Soares e Alaíde Costa receberam em vida.

João Marcello Bôscoli diz que sua mãe, Elis Regina, tinha uma foto de Clara Nunes no camarim do show 'Saudades do Brasil', no Canecão. Foto: Arquivo Pessoal / João Marcello Bôscoli

Uma das explicações para esse ocaso talvez esteja no fato dela ter morrido jovem demais para ganhar um resgate por parte de jovens cantantes e/ou produtores. Outra questão é que talvez faltasse a ela um discurso político mais engajado, embora o tenha feito através de boa parte de seu repertório (em especial nas letras de seu então marido, o compositor Paulo César Pinheiro) e participado de ações pela democracia.

Suas entrevistas não traziam respostas/manifesto das intérpretes daquele período, mas sim uma demonstração de amor à música e ao público, muitas vezes de origem humilde, que consumia seus lançamentos. Embora fosse popular em variadas escalas sociais, era, majoritariamente, uma artista do povo.

Clara Nunes durante sua apresentação no "Canta Brasil", no Morumbi, zona sul da capital paulista, em 1982. Foto: Paullo Leite/Estadao

Clara Nunes nasceu no dia 12 de agosto de 1942 e desde cedo se encantou pelas vozes de Elizeth Cardoso, Dalva de Oliveira e Ângela Maria. Os sambas-canções e boleros que faziam parte do repertório dessas cantoras traziam em suas letras um quinhão de dramas e crimes passionais. Ironicamente, esses caprichos do destino também fizeram parte da sua vida pessoal – ficou órfã de pai e mãe aos seis anos, o irmão matou um namorado dela que, supostamente, havia insultado a honra de família.

O samba – mais especificamente o partido alto – também estava ali, incrustado em meio a um repertório que pendia para o tristonho. A faixa-título de Você Passa e Eu Acho Graça, de seu segundo disco pela EMI, lançado em 1968, era uma parceria de Ataulfo Alves com o pândego apresentador e Carlos Imperial. Uma das lendas a respeito da canção é que ela seria apenas do segundo – Ataulfo teria entrado como coautor porque Clara era pouco afeita ao estilo espalhafatoso de Imperial.

O relacionamento profissional e pessoal da cantora com o radialista Adelzon Alves e com o compositor Paulo César Pinheiro, ambos nos anos 1970, foi importante na criação da persona pela qual a cantora ficou conhecida e a virada definitiva para o samba. O que aconteceu em seu quarto álbum, que trazia canções como Ê Baiana (de Fabrício da Silva, Baianinho, Ênio Santos Ribeiro e Miguel Pancrácio).

O samba, então, se tornou mais presente nos lançamentos. Bota presente nisso: gravou versões definitivas de Juízo Final (de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares), Conto de Areia (de Romildo S. Bastos e Toninho Nascimento), O Mar Serenou (Candeia) e Alvorecer (Dona Ivone Lara e Delcio Carvalho) e Vendedor de Caranguejo, de Gordurinha (o cancioneiro nordestino também era constante no repertório de seus álbuns).

Canto das Três Raças, de 1976, não apenas solidificou sua relação com Pinheiro como também é um importante manifesto político. A melodia de Mauro Duarte tem o reforço de uma letra que fala da formação do povo brasileiro através da união de suas três raças, bem como as lutas pela liberdade e pela independência –em plena ditadura militar.

Muitas das letras trazem outros significados. Como “por isso o que adianta estar nos mais altos degraus da fama/ Com a moral toda enterrada na lama”, em Lama, composição de Mauro Duarte; Ai Quem Me Dera, valsa de Toquinho e Vinicius de Moraes, que fala da “liberdade nunca ser demais/ E não haver mais solidão ruim…” Ou Tenha Paciência, melodia tristonha de Guilherme de Brito e Nelson Cavaquinho, uma canção de amor, mas onde prega que Deus “há de dar forças para a gente caminhar/ Vamos pra bem longe da maldade”.

“Mineira guerreira, filha de Ogum e Iansã…”, como bem professam os versos de Guerreira, parceira de Pinheiro com João Nogueira, Clara Nunes era devota das religiões afro-brasileiras, em especial a umbanda. Era comum vê-la de turbante, vestido branco e colares em suas aparições em programas de TV. Naquele período, essa vestimenta poderia ser considerado uma afronta. Nos dias atuais, ainda pode ser encarado como insulto. Basta lembrar que a cantora Anitta perdeu seguidores nas redes sociais porque trouxe cenas de rituais do candomblé na canção Aceita, de seu mais recente disco.

A cantora Clara Nunes é vista durante apresentação em 1981 Foto: Arquivo Estadão

Vanessa da Mata, por seu turno, lembra de um episódio que aconteceu com ela – e que serve como um laboratório e tanto para o seu personagem. “Certa vez, uma emissora evangélica disse que eu não poderia usar o termo ‘macumbeira’ numa das minhas canções. Concordei e cantei a música do jeito que quis”, diverte-se. É de se especular que Clara nos dias atuais não apenas fosse censurada como também seria acusada de apropriação cultural.

De volta ao pequeno fã dos anos 1970. Clara Nunes me emociona mais do que qualquer outra intérprete. Seus discos me serviram como porta de entrada para as belezas de Cartola, Nelson Cavaquinho, Dorival Caymmi, Candeia, Sivuca, Paulinho da Viola e Chico Buarque, todos parte de seu vasto repertório. E me trouxe mais perto de Clementina de Jesus e das escolas de samba do Rio – um de seus planos era registrar em disco homenagens a todas elas. Quanto ao meu primo, sua gabolice durou pouco: no mesmo dia, minha tia Dininha fez com que ele lavasse o rosto. E eu o amo com a mesma intensidade com a qual me emociono com o repertório de Clara.

Passei semanas nutrindo uma inveja doentia do meu primo Marcelo. Ele não só havia assistido a uma apresentação de Clara Nunes – e tinha apenas nove anos – como exibia a bochecha decorada por uma mancha de batom vermelho, resultado do beijo estalado da cantora mineira. Já eu, que fiquei em casa (nos anos 1970, era quase impossível uma criança assistir a shows de gente adulta), fui obrigado a me contentar com uma foto autografada, que gastou de tanto mostrá-la para os amigos.

Diante do cenário atual, nos quais fãs se descabelam e se endividam para assistir de perto os astros de sua preferência, soa ingênuo o imbróglio de dois gabolas por beijos e autógrafos. Mas, Clara Francisca Gonçalves, morta no dia 2 de abril de 1983, de choque anafilático, era grande. Grande, não. Gigante. Foi a primeira intérprete a derrubar o mito perpetuado pelas gravadoras que “mulher não vendia disco” e ajudou a popularizar o samba num período em que as rádios eram dominadas pelo cancioneiro internacional.

A cantora Clara Nunes em 1982. Foto: Joveci C. de Freitas/Estadão

Possui uma discografia respeitável: gravou alguns dos maiores compositores da MPB (Cartola, Nelson Cavaquinho, Paulo César Pinheiro, Chico Buarque… a lista é grande) e sempre se fez acompanhar pelos maiores instrumentistas que tinha à sua disposição –seus trabalhos traziam, entre outros, o guitarrista Hélio Delmiro e o baterista Wilson das Neves, músicos do primeiro escalão dos estúdios.

É de se espantar que Clara, que ainda por cima era dona de uma voz potente e cristalina, não desfrute da mesma popularidade que suas parceiras de geração e estilo. E olha que não faltaram tributos ao seu talento. Marisa Monte a representou num desfile da Portela, em 2012, escola de coração de Clara e Marisa; Teresa Cristina, Fabiana Cozza e Virginia Rosa prestaram tributo ao seu repertório, e Vanessa da Mata se prepara viver a mineira num espetáculo musical que tem estreia prevista para 2 de agosto, em São Paulo (chama-se A Tal Guerreira e tem direção de Jorge Farjalla).

Por outro lado, pouco se fez para lembrar os 80 anos da cantora –as celebrações se restringiram a uma exposição e um festival de música realizados em Caetanópolis, sua cidade natal. Ela está longe das emissoras de rádio, playlists e dos discursos da maioria das intérpretes atuais (ainda que fosse admirada por suas contemporâneas: João Marcello Bôscoli diz que sua mãe, Elis Regina, tinha uma foto de Clara Nunes no camarim do show Saudades do Brasil, no Canecão). Falta uma ressignificação, uma apresentação digna do que intérpretes como Elza Soares e Alaíde Costa receberam em vida.

João Marcello Bôscoli diz que sua mãe, Elis Regina, tinha uma foto de Clara Nunes no camarim do show 'Saudades do Brasil', no Canecão. Foto: Arquivo Pessoal / João Marcello Bôscoli

Uma das explicações para esse ocaso talvez esteja no fato dela ter morrido jovem demais para ganhar um resgate por parte de jovens cantantes e/ou produtores. Outra questão é que talvez faltasse a ela um discurso político mais engajado, embora o tenha feito através de boa parte de seu repertório (em especial nas letras de seu então marido, o compositor Paulo César Pinheiro) e participado de ações pela democracia.

Suas entrevistas não traziam respostas/manifesto das intérpretes daquele período, mas sim uma demonstração de amor à música e ao público, muitas vezes de origem humilde, que consumia seus lançamentos. Embora fosse popular em variadas escalas sociais, era, majoritariamente, uma artista do povo.

Clara Nunes durante sua apresentação no "Canta Brasil", no Morumbi, zona sul da capital paulista, em 1982. Foto: Paullo Leite/Estadao

Clara Nunes nasceu no dia 12 de agosto de 1942 e desde cedo se encantou pelas vozes de Elizeth Cardoso, Dalva de Oliveira e Ângela Maria. Os sambas-canções e boleros que faziam parte do repertório dessas cantoras traziam em suas letras um quinhão de dramas e crimes passionais. Ironicamente, esses caprichos do destino também fizeram parte da sua vida pessoal – ficou órfã de pai e mãe aos seis anos, o irmão matou um namorado dela que, supostamente, havia insultado a honra de família.

O samba – mais especificamente o partido alto – também estava ali, incrustado em meio a um repertório que pendia para o tristonho. A faixa-título de Você Passa e Eu Acho Graça, de seu segundo disco pela EMI, lançado em 1968, era uma parceria de Ataulfo Alves com o pândego apresentador e Carlos Imperial. Uma das lendas a respeito da canção é que ela seria apenas do segundo – Ataulfo teria entrado como coautor porque Clara era pouco afeita ao estilo espalhafatoso de Imperial.

O relacionamento profissional e pessoal da cantora com o radialista Adelzon Alves e com o compositor Paulo César Pinheiro, ambos nos anos 1970, foi importante na criação da persona pela qual a cantora ficou conhecida e a virada definitiva para o samba. O que aconteceu em seu quarto álbum, que trazia canções como Ê Baiana (de Fabrício da Silva, Baianinho, Ênio Santos Ribeiro e Miguel Pancrácio).

O samba, então, se tornou mais presente nos lançamentos. Bota presente nisso: gravou versões definitivas de Juízo Final (de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares), Conto de Areia (de Romildo S. Bastos e Toninho Nascimento), O Mar Serenou (Candeia) e Alvorecer (Dona Ivone Lara e Delcio Carvalho) e Vendedor de Caranguejo, de Gordurinha (o cancioneiro nordestino também era constante no repertório de seus álbuns).

Canto das Três Raças, de 1976, não apenas solidificou sua relação com Pinheiro como também é um importante manifesto político. A melodia de Mauro Duarte tem o reforço de uma letra que fala da formação do povo brasileiro através da união de suas três raças, bem como as lutas pela liberdade e pela independência –em plena ditadura militar.

Muitas das letras trazem outros significados. Como “por isso o que adianta estar nos mais altos degraus da fama/ Com a moral toda enterrada na lama”, em Lama, composição de Mauro Duarte; Ai Quem Me Dera, valsa de Toquinho e Vinicius de Moraes, que fala da “liberdade nunca ser demais/ E não haver mais solidão ruim…” Ou Tenha Paciência, melodia tristonha de Guilherme de Brito e Nelson Cavaquinho, uma canção de amor, mas onde prega que Deus “há de dar forças para a gente caminhar/ Vamos pra bem longe da maldade”.

“Mineira guerreira, filha de Ogum e Iansã…”, como bem professam os versos de Guerreira, parceira de Pinheiro com João Nogueira, Clara Nunes era devota das religiões afro-brasileiras, em especial a umbanda. Era comum vê-la de turbante, vestido branco e colares em suas aparições em programas de TV. Naquele período, essa vestimenta poderia ser considerado uma afronta. Nos dias atuais, ainda pode ser encarado como insulto. Basta lembrar que a cantora Anitta perdeu seguidores nas redes sociais porque trouxe cenas de rituais do candomblé na canção Aceita, de seu mais recente disco.

A cantora Clara Nunes é vista durante apresentação em 1981 Foto: Arquivo Estadão

Vanessa da Mata, por seu turno, lembra de um episódio que aconteceu com ela – e que serve como um laboratório e tanto para o seu personagem. “Certa vez, uma emissora evangélica disse que eu não poderia usar o termo ‘macumbeira’ numa das minhas canções. Concordei e cantei a música do jeito que quis”, diverte-se. É de se especular que Clara nos dias atuais não apenas fosse censurada como também seria acusada de apropriação cultural.

De volta ao pequeno fã dos anos 1970. Clara Nunes me emociona mais do que qualquer outra intérprete. Seus discos me serviram como porta de entrada para as belezas de Cartola, Nelson Cavaquinho, Dorival Caymmi, Candeia, Sivuca, Paulinho da Viola e Chico Buarque, todos parte de seu vasto repertório. E me trouxe mais perto de Clementina de Jesus e das escolas de samba do Rio – um de seus planos era registrar em disco homenagens a todas elas. Quanto ao meu primo, sua gabolice durou pouco: no mesmo dia, minha tia Dininha fez com que ele lavasse o rosto. E eu o amo com a mesma intensidade com a qual me emociono com o repertório de Clara.

Passei semanas nutrindo uma inveja doentia do meu primo Marcelo. Ele não só havia assistido a uma apresentação de Clara Nunes – e tinha apenas nove anos – como exibia a bochecha decorada por uma mancha de batom vermelho, resultado do beijo estalado da cantora mineira. Já eu, que fiquei em casa (nos anos 1970, era quase impossível uma criança assistir a shows de gente adulta), fui obrigado a me contentar com uma foto autografada, que gastou de tanto mostrá-la para os amigos.

Diante do cenário atual, nos quais fãs se descabelam e se endividam para assistir de perto os astros de sua preferência, soa ingênuo o imbróglio de dois gabolas por beijos e autógrafos. Mas, Clara Francisca Gonçalves, morta no dia 2 de abril de 1983, de choque anafilático, era grande. Grande, não. Gigante. Foi a primeira intérprete a derrubar o mito perpetuado pelas gravadoras que “mulher não vendia disco” e ajudou a popularizar o samba num período em que as rádios eram dominadas pelo cancioneiro internacional.

A cantora Clara Nunes em 1982. Foto: Joveci C. de Freitas/Estadão

Possui uma discografia respeitável: gravou alguns dos maiores compositores da MPB (Cartola, Nelson Cavaquinho, Paulo César Pinheiro, Chico Buarque… a lista é grande) e sempre se fez acompanhar pelos maiores instrumentistas que tinha à sua disposição –seus trabalhos traziam, entre outros, o guitarrista Hélio Delmiro e o baterista Wilson das Neves, músicos do primeiro escalão dos estúdios.

É de se espantar que Clara, que ainda por cima era dona de uma voz potente e cristalina, não desfrute da mesma popularidade que suas parceiras de geração e estilo. E olha que não faltaram tributos ao seu talento. Marisa Monte a representou num desfile da Portela, em 2012, escola de coração de Clara e Marisa; Teresa Cristina, Fabiana Cozza e Virginia Rosa prestaram tributo ao seu repertório, e Vanessa da Mata se prepara viver a mineira num espetáculo musical que tem estreia prevista para 2 de agosto, em São Paulo (chama-se A Tal Guerreira e tem direção de Jorge Farjalla).

Por outro lado, pouco se fez para lembrar os 80 anos da cantora –as celebrações se restringiram a uma exposição e um festival de música realizados em Caetanópolis, sua cidade natal. Ela está longe das emissoras de rádio, playlists e dos discursos da maioria das intérpretes atuais (ainda que fosse admirada por suas contemporâneas: João Marcello Bôscoli diz que sua mãe, Elis Regina, tinha uma foto de Clara Nunes no camarim do show Saudades do Brasil, no Canecão). Falta uma ressignificação, uma apresentação digna do que intérpretes como Elza Soares e Alaíde Costa receberam em vida.

João Marcello Bôscoli diz que sua mãe, Elis Regina, tinha uma foto de Clara Nunes no camarim do show 'Saudades do Brasil', no Canecão. Foto: Arquivo Pessoal / João Marcello Bôscoli

Uma das explicações para esse ocaso talvez esteja no fato dela ter morrido jovem demais para ganhar um resgate por parte de jovens cantantes e/ou produtores. Outra questão é que talvez faltasse a ela um discurso político mais engajado, embora o tenha feito através de boa parte de seu repertório (em especial nas letras de seu então marido, o compositor Paulo César Pinheiro) e participado de ações pela democracia.

Suas entrevistas não traziam respostas/manifesto das intérpretes daquele período, mas sim uma demonstração de amor à música e ao público, muitas vezes de origem humilde, que consumia seus lançamentos. Embora fosse popular em variadas escalas sociais, era, majoritariamente, uma artista do povo.

Clara Nunes durante sua apresentação no "Canta Brasil", no Morumbi, zona sul da capital paulista, em 1982. Foto: Paullo Leite/Estadao

Clara Nunes nasceu no dia 12 de agosto de 1942 e desde cedo se encantou pelas vozes de Elizeth Cardoso, Dalva de Oliveira e Ângela Maria. Os sambas-canções e boleros que faziam parte do repertório dessas cantoras traziam em suas letras um quinhão de dramas e crimes passionais. Ironicamente, esses caprichos do destino também fizeram parte da sua vida pessoal – ficou órfã de pai e mãe aos seis anos, o irmão matou um namorado dela que, supostamente, havia insultado a honra de família.

O samba – mais especificamente o partido alto – também estava ali, incrustado em meio a um repertório que pendia para o tristonho. A faixa-título de Você Passa e Eu Acho Graça, de seu segundo disco pela EMI, lançado em 1968, era uma parceria de Ataulfo Alves com o pândego apresentador e Carlos Imperial. Uma das lendas a respeito da canção é que ela seria apenas do segundo – Ataulfo teria entrado como coautor porque Clara era pouco afeita ao estilo espalhafatoso de Imperial.

O relacionamento profissional e pessoal da cantora com o radialista Adelzon Alves e com o compositor Paulo César Pinheiro, ambos nos anos 1970, foi importante na criação da persona pela qual a cantora ficou conhecida e a virada definitiva para o samba. O que aconteceu em seu quarto álbum, que trazia canções como Ê Baiana (de Fabrício da Silva, Baianinho, Ênio Santos Ribeiro e Miguel Pancrácio).

O samba, então, se tornou mais presente nos lançamentos. Bota presente nisso: gravou versões definitivas de Juízo Final (de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares), Conto de Areia (de Romildo S. Bastos e Toninho Nascimento), O Mar Serenou (Candeia) e Alvorecer (Dona Ivone Lara e Delcio Carvalho) e Vendedor de Caranguejo, de Gordurinha (o cancioneiro nordestino também era constante no repertório de seus álbuns).

Canto das Três Raças, de 1976, não apenas solidificou sua relação com Pinheiro como também é um importante manifesto político. A melodia de Mauro Duarte tem o reforço de uma letra que fala da formação do povo brasileiro através da união de suas três raças, bem como as lutas pela liberdade e pela independência –em plena ditadura militar.

Muitas das letras trazem outros significados. Como “por isso o que adianta estar nos mais altos degraus da fama/ Com a moral toda enterrada na lama”, em Lama, composição de Mauro Duarte; Ai Quem Me Dera, valsa de Toquinho e Vinicius de Moraes, que fala da “liberdade nunca ser demais/ E não haver mais solidão ruim…” Ou Tenha Paciência, melodia tristonha de Guilherme de Brito e Nelson Cavaquinho, uma canção de amor, mas onde prega que Deus “há de dar forças para a gente caminhar/ Vamos pra bem longe da maldade”.

“Mineira guerreira, filha de Ogum e Iansã…”, como bem professam os versos de Guerreira, parceira de Pinheiro com João Nogueira, Clara Nunes era devota das religiões afro-brasileiras, em especial a umbanda. Era comum vê-la de turbante, vestido branco e colares em suas aparições em programas de TV. Naquele período, essa vestimenta poderia ser considerado uma afronta. Nos dias atuais, ainda pode ser encarado como insulto. Basta lembrar que a cantora Anitta perdeu seguidores nas redes sociais porque trouxe cenas de rituais do candomblé na canção Aceita, de seu mais recente disco.

A cantora Clara Nunes é vista durante apresentação em 1981 Foto: Arquivo Estadão

Vanessa da Mata, por seu turno, lembra de um episódio que aconteceu com ela – e que serve como um laboratório e tanto para o seu personagem. “Certa vez, uma emissora evangélica disse que eu não poderia usar o termo ‘macumbeira’ numa das minhas canções. Concordei e cantei a música do jeito que quis”, diverte-se. É de se especular que Clara nos dias atuais não apenas fosse censurada como também seria acusada de apropriação cultural.

De volta ao pequeno fã dos anos 1970. Clara Nunes me emociona mais do que qualquer outra intérprete. Seus discos me serviram como porta de entrada para as belezas de Cartola, Nelson Cavaquinho, Dorival Caymmi, Candeia, Sivuca, Paulinho da Viola e Chico Buarque, todos parte de seu vasto repertório. E me trouxe mais perto de Clementina de Jesus e das escolas de samba do Rio – um de seus planos era registrar em disco homenagens a todas elas. Quanto ao meu primo, sua gabolice durou pouco: no mesmo dia, minha tia Dininha fez com que ele lavasse o rosto. E eu o amo com a mesma intensidade com a qual me emociono com o repertório de Clara.

Opinião por Sérgio Martins

Jornalista e crítico musical

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