Na semana passada, houve uma sessão especial de Um Completo Desconhecido, cinebiografia de Bob Dylan dirigida por James Mangold – o mesmo do sensacional Johnny & June, que conta a história de amor entre o pioneiro do rock Johnny Cash e a deusa country June Carter. O filme, ótimo, traz um recorte que vai dos primeiros anos de carreira de Bob, quando era devoto do folk de Woody Guthrie (1912-1967) e Peter Seeger (1919-2014), até ganhar inimigos entre tradicionalistas por trocar o violão pela guitarra elétrica (fãs de folk eram, como diria o Analista de Bagé, mais ortodoxos que receita de Biotônico Fontoura e viram o gesto como uma traição).
O deputado estadual Eduardo Suplicy, devoto de Dylan de primeira hora, compareceu à sessão ao lado do filho, o cantor Supla. E o momento de intimidade entre pai e filho foi um espetáculo tão bonito quanto o que se passou na tela. Suplicy se emocionou ao se deparar com Joan Baez (vivida de modo exemplar por Monica Barbaro), a quem conheceu no ano de 1981 quando ela tentou, em vão, fazer um show na Pontifícia Universidade Católica (PUC). Impedida de cantar pelo governo de João Batista Figueiredo, Baez foi para fora do teatro e entoou Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré. Suplicy e Joan se reencontraram dez anos atrás, por ocasião da turnê dela no Brasil.
O deputado, óbvio, se comoveu ao se deparar com a criação de Blowin`in the Wind, canção que de tanto que ele citou em entrevistas e pronunciamentos virou meme na internet. Quando viu seu ídolo - que Timothée Chalamet interpretou com uma fidelidade assustadora – ser vaiado pelos tradicionalistas do folk, Suplicy perguntou ao filho, de modo cândido, o porquê da vaia. Ao final da sessão, emocionados, Suplicy e Supla partiram para mais uma consulta médica, uma rotina incômoda no dia-a-dia do deputado estadual.
Sou pai, sou filho e tenho momentos bonitos tanto com minha mãe quanto com meu pai. Dona Neusa, por exemplo, foi cúmplice nas escapadas escolares para assistir aos meus astros de adolescência e incutiu em mim o amor por Roberto Carlos e Clara Nunes. Seu Osvaldo me apresentou Beatles e um dos momentos ternos pelos quais passei recentemente foi vê-lo assistir, pela primeira vez, ao show de Paul McCartney. Eu jamais atestaria que o amor entre pai e filho é maior do que o de um filho pela mãe. Mas é diferente. Uma relação de respeito à autoridade ali representada, que com o passar dos anos se torna um grande camaradagem. Nessa combinação, a música serve tanto como elo condutor como também um meio de reatar relações há tempos desgastadas.
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O sanfoneiro Luiz Gonzaga (1912-1989) vivia às turras com seu filho, o também cantor e compositor Gonzaguinha (1945-1991). Que não admitia, entre outras coisas, que o rei do baião tirasse o seu sustento de apresentações para os militares. Viveram à base de mágoa até 1979, quando se reconciliaram e saíram em turnê pelo país. O reencontro rendeu um presente especial de Gonzaguinha para o pai – a canção Vida do Viajante, que se tornou peça importante no repertório de Gonzagão.
Em outras ocasiões, filhos até recuperam o legado dos pais. Wilson Simonal (1938-2000), um dos maiores intérpretes da história, foi condenado ao degredo por supostamente ter conexões com os órgãos da repressão (seus seguranças eram do Dops, o temido centro de tortura nos tempos da ditadura militar). Simonal foi enterrado em vida. Assistiu escondido aos primeiros passos dos filhos Simoninha e Max na música para que eles não fossem prejudicados. Nos últimos tempos, não apenas o legado de Wilson Simonal foi recuperado como os irmãos criaram o Baile do Simonal, um show que celebra o repertório do cantor carioca.
No quesito celebração sem brigas, Caetano Veloso e Gilberto Gil, dois totens do tropicalismo, realizaram belos encontros com a prole. Oratório foi um dos shows mais bonitos que assisti nos últimos tempos, uma reunião de Caetano com Moreno (filho de sua primeira mulher, Dedé Gadelha), e Zeca e Tom, frutos da união com Paula Lavigne. Gilberto Gil, por seu turno, criou Nós, a Gente, que trazia para o palco filhos, netos e bisnetos.
Nos últimos tempos, duas homenagens de filhos para os seus pais me deixaram tocado. Em janeiro, o guitarrista Davi Moraes se uniu ao baterista e produtor Pupillo e ambos soltaram Moraes é Frevo. Como o próprio nome indica, é uma compilação de frevos do cantor e compositor Moraes Moreira (1947-2020), um dos autores mais versáteis da MPB, que tem seu repertório recriado nas vozes de Lenine, Luiz Caldas, Criolo, Agnes Nunes e muito mais.
Sintetiza2, que chegou às plataformas de streaming no final de outubro, é o derradeiro disco de João Donato (1934-2023). Seu filho Donatinho, a quem Donato pai dizia tocar “teclados espaciais”, é quem pilota as gravações, que trazem um apanhado de música latina e funks, supervisionado pelo próprio Donatão –que, segundo o filho, passou seus últimos dias no hospital escutando cada detalhe da gravação. E num desses encontros de pais e filhos, a canção Donatinho’s Lullaby nada mais é que uma partitura perdida de João Donato (o nome inicial era Canção de Ninar para Donatinho) que o filho adicionou barulhos de vinheta de videogame. “Não tem nada mais bonito que um filho realizar o desejo do pai”, dizia Moreno Veloso pouco antes de tocar Leãozinho –a pedidos de Caetano Veloso.
Eduardo Suplicy não é músico, embora tenha me dito que comandou uma banda de rock na juventude. Vê em Supla não apenas a realização de um sonho de adolescência, mas também aquele parceiro de conversas que está sempre ali para falar dos nossos filmes, cantores e músicas prediletas. Seja num filme de Bob Dylan, num disco tributo ou até no “eu te amo” que conseguimos trocar no dia-a-dia, raras conexões me emocionam tanto quanto a camaradagem entre pai e filho. “How does it feel?”, pergunto a pais e filhos que leem essa coluna.