Coluna quinzenal do jornalista e crítico Sérgio Martins com histórias da música

Opinião|Como uma ‘ousadia’ de Marina Lima transformou o irmão Antonio Cicero em letrista requisitado


Parceiro de alguns dos principais nomes da música brasileira, autor ou coautor de cerca de 150 letras, Antonio Cicero morreu nesta quarta-feira, 23, aos 79 anos

Por Sérgio Martins
Atualização:

Como o próprio deixa claro na letra de Sem Medo, Nem Esperança, parceria com o jovem cantor e compositor Arthur Nogueira, Antonio Cicero (1945-2024) viveu tantas mortes e morreu tantas vidas… Imortal da Academia Brasileira de Letras, filósofo, poeta e um letrista inspirado, ele entrou no universo do cancioneiro popular por conta da ousadia da irmã, a também cantora e compositora Marina Lima: em meados dos anos 1970, ela pegou um dos poemas de Cicero, o belo Canção da Alma Caiada (cujos versos dizem: “Só comigo ouso lutar/ Sem me poder vencer/ Tento afogar no mar/ O fogo em que quero arder…”) e transformou numa canção, que seria gravada por Maria Bethânia no disco Pássaro Proibido, de 1976, mas foi censurada – Zizi Possi a gravaria três anos depois em seu disco de estreia com o nome de Alma Caiada.

O mal estar provocado pela ousadia de Marina, que pegou o escrito do irmão sem a sua permissão, logo se dissipou. Em pouco tempo ele se tornaria um parceiro constante não apenas da irmã, mas também de autores de alta patente como Adriana Calcanhotto, João Bosco e Lulu Santos. São aproximadamente 150 composições, em estilos que vão do pop e da bossa nova ao funk carioca – a divertida Só os Coxinhas, que Marina Lima lançou em 2018.

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Antonio Cicero em 2010 Foto: Tasso Marcelo/Estadão

I Juca Pirama, de Gonçalves Dias (1823-1864), foi a obra que fez Cicero se apaixonar pelo mundo do poema. Não só pela poesia, mas também pelos versos do romântico brasileiro, que Cicero acreditava serem extremamente musicais. E se formos a fundo em seus escritos, principalmente nas parcerias com Marina Lima, percebemos o casamento sendo realizado muitas vezes de forma exemplar: o ritmo que Cicero dá a letras como Charme do Mundo, O Lado Quente do Ser, Fullgás e – a minha predileta – Virgem, com sua citação singela a Os Inocentes do Leblon, poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).

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Foi mestre de rimas pouco banais, mas que no entanto caíam no gosto do povo (tem coisa mais bonita do que “você me abre em seus braços/ E a gente faz um país”, presente na já citada Fullgás?). Dizia que só escrevia a letra depois de receber a melodia – ”e conhecer a pessoa”, como declarou certa vez numa entrevista ao programa Metrópolis, da TV Cultura, ao lado do parceiro Arthur Nogueira.

“Sou capaz de falar de qualquer tema e de usar inúmeras dicções diferentes” disse ele ao Cândido, jornal publicado pela Biblioteca Pública do Paraná. Ele se referia aos poemas, mas a frase pode muito bem ser utilizada nas parcerias musicais, que são peculiares e adaptáveis à maneira de quem as canta. É o que se pode perceber em Trem Bala, que ele e Wally Salomão fizeram para a melodia única de João Bosco. “Dispara um trem bala veloz feito luzes/ e integra a estação razão à intuição/ Por meio do teu nome ausente em mim reluzes/ Enquanto um garotinho empurra seu limão/ A blitz ali na frente diz que aqui a onda/ tá mais pro Haiti do que pro Havaí/ Se as coisas nos reduzem simplesmente a nada/ De nada, simplesmente temos que partir...” Ou Maresia, gravada inicialmente por Marina Lima, mas estava predestinada para ser eternizada por Adriana Calcanhotto. “Ah, se eu fosse marinheiro/ Era eu quem tinha partido/ Mas meu coração ligeiro/ Não se teria partido…”

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Antonio Cicero era formado em Filosofia pela Universidade de Londres, e estudou grego e latim na Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos, o que lhe permitia ler os autores como Homero, Píndaro, Horácio (seu predileto) e Ovídio no original. A formação erudita, contudo, nunca o afastou da inclinação popular. Cicero era capaz até de fazer associações dos mestres gregos com o canto falado dos pioneiros dos versos do rap. “Sabemos hoje que a primeira poesia conhecida do Ocidente, os poemas de Homero, eram recitativos. Nesse sentido, eles eram parentes do rap, que é uma espécie de recitativo”, declarou certa vez.

Embora fosse um erudito, o poeta e imortal da Academia Brasileira de Letras nunca fez distinção entre poesia e letra de música. Defendia que uma letra poderia muito bem ser um poema escrito, ao mesmo tempo em que um poema poderia se tornar letra de música. “Se ela servir para produzir uma bela canção, então ela é boa, independentemente de dar um bom poema escrito”, disse.

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Os irmãos Marina Lima e Antonio Cicero, na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em 20024 Foto: Monica Zarattini/Estadão

Suas criações, contudo, obedeciam a um esquema curioso: ele dizia que o poeta dava o fora sempre que o filósofo aparecia, ou seja, era capaz de abandonar por um tempo a letra para uma determinada composição caso ela trilhasse pelo universo da filosofia. E muitas vezes o poeta também botou o filósofo para correr, como sapecou em O Último Romântico, sucesso na voz de Lulu Santos. “Deixa ser pelo coração: se é loucura, então melhor não ter razão.”

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Antonio Cicero – o sobrenome é uma homenagem ao lendário poeta e ensaísta romano – terá seus ensaios e poemas lançados pela Companhia das Letras. Coube a Arthur Nogueira a missão de compilar os poemas do mestre.

Como o próprio deixa claro na letra de Sem Medo, Nem Esperança, parceria com o jovem cantor e compositor Arthur Nogueira, Antonio Cicero (1945-2024) viveu tantas mortes e morreu tantas vidas… Imortal da Academia Brasileira de Letras, filósofo, poeta e um letrista inspirado, ele entrou no universo do cancioneiro popular por conta da ousadia da irmã, a também cantora e compositora Marina Lima: em meados dos anos 1970, ela pegou um dos poemas de Cicero, o belo Canção da Alma Caiada (cujos versos dizem: “Só comigo ouso lutar/ Sem me poder vencer/ Tento afogar no mar/ O fogo em que quero arder…”) e transformou numa canção, que seria gravada por Maria Bethânia no disco Pássaro Proibido, de 1976, mas foi censurada – Zizi Possi a gravaria três anos depois em seu disco de estreia com o nome de Alma Caiada.

O mal estar provocado pela ousadia de Marina, que pegou o escrito do irmão sem a sua permissão, logo se dissipou. Em pouco tempo ele se tornaria um parceiro constante não apenas da irmã, mas também de autores de alta patente como Adriana Calcanhotto, João Bosco e Lulu Santos. São aproximadamente 150 composições, em estilos que vão do pop e da bossa nova ao funk carioca – a divertida Só os Coxinhas, que Marina Lima lançou em 2018.

Antonio Cicero em 2010 Foto: Tasso Marcelo/Estadão

I Juca Pirama, de Gonçalves Dias (1823-1864), foi a obra que fez Cicero se apaixonar pelo mundo do poema. Não só pela poesia, mas também pelos versos do romântico brasileiro, que Cicero acreditava serem extremamente musicais. E se formos a fundo em seus escritos, principalmente nas parcerias com Marina Lima, percebemos o casamento sendo realizado muitas vezes de forma exemplar: o ritmo que Cicero dá a letras como Charme do Mundo, O Lado Quente do Ser, Fullgás e – a minha predileta – Virgem, com sua citação singela a Os Inocentes do Leblon, poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).

Foi mestre de rimas pouco banais, mas que no entanto caíam no gosto do povo (tem coisa mais bonita do que “você me abre em seus braços/ E a gente faz um país”, presente na já citada Fullgás?). Dizia que só escrevia a letra depois de receber a melodia – ”e conhecer a pessoa”, como declarou certa vez numa entrevista ao programa Metrópolis, da TV Cultura, ao lado do parceiro Arthur Nogueira.

“Sou capaz de falar de qualquer tema e de usar inúmeras dicções diferentes” disse ele ao Cândido, jornal publicado pela Biblioteca Pública do Paraná. Ele se referia aos poemas, mas a frase pode muito bem ser utilizada nas parcerias musicais, que são peculiares e adaptáveis à maneira de quem as canta. É o que se pode perceber em Trem Bala, que ele e Wally Salomão fizeram para a melodia única de João Bosco. “Dispara um trem bala veloz feito luzes/ e integra a estação razão à intuição/ Por meio do teu nome ausente em mim reluzes/ Enquanto um garotinho empurra seu limão/ A blitz ali na frente diz que aqui a onda/ tá mais pro Haiti do que pro Havaí/ Se as coisas nos reduzem simplesmente a nada/ De nada, simplesmente temos que partir...” Ou Maresia, gravada inicialmente por Marina Lima, mas estava predestinada para ser eternizada por Adriana Calcanhotto. “Ah, se eu fosse marinheiro/ Era eu quem tinha partido/ Mas meu coração ligeiro/ Não se teria partido…”

Antonio Cicero era formado em Filosofia pela Universidade de Londres, e estudou grego e latim na Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos, o que lhe permitia ler os autores como Homero, Píndaro, Horácio (seu predileto) e Ovídio no original. A formação erudita, contudo, nunca o afastou da inclinação popular. Cicero era capaz até de fazer associações dos mestres gregos com o canto falado dos pioneiros dos versos do rap. “Sabemos hoje que a primeira poesia conhecida do Ocidente, os poemas de Homero, eram recitativos. Nesse sentido, eles eram parentes do rap, que é uma espécie de recitativo”, declarou certa vez.

Embora fosse um erudito, o poeta e imortal da Academia Brasileira de Letras nunca fez distinção entre poesia e letra de música. Defendia que uma letra poderia muito bem ser um poema escrito, ao mesmo tempo em que um poema poderia se tornar letra de música. “Se ela servir para produzir uma bela canção, então ela é boa, independentemente de dar um bom poema escrito”, disse.

Os irmãos Marina Lima e Antonio Cicero, na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em 20024 Foto: Monica Zarattini/Estadão

Suas criações, contudo, obedeciam a um esquema curioso: ele dizia que o poeta dava o fora sempre que o filósofo aparecia, ou seja, era capaz de abandonar por um tempo a letra para uma determinada composição caso ela trilhasse pelo universo da filosofia. E muitas vezes o poeta também botou o filósofo para correr, como sapecou em O Último Romântico, sucesso na voz de Lulu Santos. “Deixa ser pelo coração: se é loucura, então melhor não ter razão.”

Antonio Cicero – o sobrenome é uma homenagem ao lendário poeta e ensaísta romano – terá seus ensaios e poemas lançados pela Companhia das Letras. Coube a Arthur Nogueira a missão de compilar os poemas do mestre.

Como o próprio deixa claro na letra de Sem Medo, Nem Esperança, parceria com o jovem cantor e compositor Arthur Nogueira, Antonio Cicero (1945-2024) viveu tantas mortes e morreu tantas vidas… Imortal da Academia Brasileira de Letras, filósofo, poeta e um letrista inspirado, ele entrou no universo do cancioneiro popular por conta da ousadia da irmã, a também cantora e compositora Marina Lima: em meados dos anos 1970, ela pegou um dos poemas de Cicero, o belo Canção da Alma Caiada (cujos versos dizem: “Só comigo ouso lutar/ Sem me poder vencer/ Tento afogar no mar/ O fogo em que quero arder…”) e transformou numa canção, que seria gravada por Maria Bethânia no disco Pássaro Proibido, de 1976, mas foi censurada – Zizi Possi a gravaria três anos depois em seu disco de estreia com o nome de Alma Caiada.

O mal estar provocado pela ousadia de Marina, que pegou o escrito do irmão sem a sua permissão, logo se dissipou. Em pouco tempo ele se tornaria um parceiro constante não apenas da irmã, mas também de autores de alta patente como Adriana Calcanhotto, João Bosco e Lulu Santos. São aproximadamente 150 composições, em estilos que vão do pop e da bossa nova ao funk carioca – a divertida Só os Coxinhas, que Marina Lima lançou em 2018.

Antonio Cicero em 2010 Foto: Tasso Marcelo/Estadão

I Juca Pirama, de Gonçalves Dias (1823-1864), foi a obra que fez Cicero se apaixonar pelo mundo do poema. Não só pela poesia, mas também pelos versos do romântico brasileiro, que Cicero acreditava serem extremamente musicais. E se formos a fundo em seus escritos, principalmente nas parcerias com Marina Lima, percebemos o casamento sendo realizado muitas vezes de forma exemplar: o ritmo que Cicero dá a letras como Charme do Mundo, O Lado Quente do Ser, Fullgás e – a minha predileta – Virgem, com sua citação singela a Os Inocentes do Leblon, poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).

Foi mestre de rimas pouco banais, mas que no entanto caíam no gosto do povo (tem coisa mais bonita do que “você me abre em seus braços/ E a gente faz um país”, presente na já citada Fullgás?). Dizia que só escrevia a letra depois de receber a melodia – ”e conhecer a pessoa”, como declarou certa vez numa entrevista ao programa Metrópolis, da TV Cultura, ao lado do parceiro Arthur Nogueira.

“Sou capaz de falar de qualquer tema e de usar inúmeras dicções diferentes” disse ele ao Cândido, jornal publicado pela Biblioteca Pública do Paraná. Ele se referia aos poemas, mas a frase pode muito bem ser utilizada nas parcerias musicais, que são peculiares e adaptáveis à maneira de quem as canta. É o que se pode perceber em Trem Bala, que ele e Wally Salomão fizeram para a melodia única de João Bosco. “Dispara um trem bala veloz feito luzes/ e integra a estação razão à intuição/ Por meio do teu nome ausente em mim reluzes/ Enquanto um garotinho empurra seu limão/ A blitz ali na frente diz que aqui a onda/ tá mais pro Haiti do que pro Havaí/ Se as coisas nos reduzem simplesmente a nada/ De nada, simplesmente temos que partir...” Ou Maresia, gravada inicialmente por Marina Lima, mas estava predestinada para ser eternizada por Adriana Calcanhotto. “Ah, se eu fosse marinheiro/ Era eu quem tinha partido/ Mas meu coração ligeiro/ Não se teria partido…”

Antonio Cicero era formado em Filosofia pela Universidade de Londres, e estudou grego e latim na Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos, o que lhe permitia ler os autores como Homero, Píndaro, Horácio (seu predileto) e Ovídio no original. A formação erudita, contudo, nunca o afastou da inclinação popular. Cicero era capaz até de fazer associações dos mestres gregos com o canto falado dos pioneiros dos versos do rap. “Sabemos hoje que a primeira poesia conhecida do Ocidente, os poemas de Homero, eram recitativos. Nesse sentido, eles eram parentes do rap, que é uma espécie de recitativo”, declarou certa vez.

Embora fosse um erudito, o poeta e imortal da Academia Brasileira de Letras nunca fez distinção entre poesia e letra de música. Defendia que uma letra poderia muito bem ser um poema escrito, ao mesmo tempo em que um poema poderia se tornar letra de música. “Se ela servir para produzir uma bela canção, então ela é boa, independentemente de dar um bom poema escrito”, disse.

Os irmãos Marina Lima e Antonio Cicero, na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em 20024 Foto: Monica Zarattini/Estadão

Suas criações, contudo, obedeciam a um esquema curioso: ele dizia que o poeta dava o fora sempre que o filósofo aparecia, ou seja, era capaz de abandonar por um tempo a letra para uma determinada composição caso ela trilhasse pelo universo da filosofia. E muitas vezes o poeta também botou o filósofo para correr, como sapecou em O Último Romântico, sucesso na voz de Lulu Santos. “Deixa ser pelo coração: se é loucura, então melhor não ter razão.”

Antonio Cicero – o sobrenome é uma homenagem ao lendário poeta e ensaísta romano – terá seus ensaios e poemas lançados pela Companhia das Letras. Coube a Arthur Nogueira a missão de compilar os poemas do mestre.

Opinião por Sérgio Martins

Jornalista e crítico musical

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