Em abril de 1996, Nando Reis passou horas à espera de Janaína, uma cantora iniciante em busca de um repertório. Ela tinha sido recomendada a ele por este que vos escreve e havia assinado um contrato com o produtor Rick Bonadio. Janaína não apareceu, nem sequer mandou recado para dizer que não iria ao encontro. Porém, no mesmo dia, Nando recebeu uma notícia que o abalou: a menina de 17 anos morreu, juntamente com sua família, num acidente automobilístico no Paraná.
Nando havia rascunhado uma canção inspirada por essa tragédia, mas acabou deixando-a de lado. Recentemente, retornou à composição. Rhipsalis (uma espécie de cacto), que inicialmente tinha o nome de Janaína, entrou no vinil-bônus do projeto Uma Estrela Misteriosa e está disponível nas plataformas de streaming. “Pifou o nosso encontro/ Não podemos nos encontrar/ Mirou a morte o seu forte rosto/ Nem me assistiu o seu olhar…”, dizem os versos.
A história de Janaína foi tão impactante que, logo após Nando tê-la contada na coletiva de divulgação de seu disco, eu me levantei e fui embora. Não queria saber de mais nada. E desde aquele dia e até o momento em que escrevo essa coluna, passei a pensar em todos os talentos que se foram antes da justa consagração.
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O primeiro nome que me vem à mente é o de Milton Carlos, intérprete e compositor, morto num acidente de automóvel em outubro de 1976. Lançou três discos e saboreava o sucesso inicial da versão do maxixe Dorinha Meu Amor, sucesso de 1928 na voz de Mário Reis. Milton, contudo, é também autor (junto com sua irmã, Isolda), de Jogo de Damas, balada sofrida que Roberto Carlos lançou em 1974.
Adolescente nos anos 1980, me apaixonei pela voz forte de Telma Costa, no dueto com Chico Buarque em Eu Te Amo. Irmã da também compositora Sueli Costa, ela lançou, em 1983, um disco que trazia composições de João Bosco e Aldir Blanc, Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro, Ivan Lins e Vítor Martins, além de Caetano Veloso – que não apenas cedeu Certeza da Beleza como fez um dueto com a intérprete de voz de contralto (ele foi relançado anos atrás pela Joia Moderna, num artefato chamado CD…). Telma se foi em 1989 e ficamos órfãos de uma intérprete singular, com sua voz de contralto e emoção à flor da pele. E quando comecei a fazer essa lista, meu amigo, o pesquisador Manoel Filho, me lembrou dessa cantora.
Os jornalistas da minha geração se lembram de Pedro Gil (filho vocês sabem muito bem de quem), que também morreu num desastre automobilístico, em janeiro de 1990. Baterista de pegada forte e suingada, se destacou na banda do pai e na de Lulu Santos, além de ter feito parte do Egotrip, uma banda de pop rock. Aliás, vem de Pedro e de um ex-companheiro de profissão um dos meus causos preferidos: certa feita, os dois estavam no quarto de Pedro, ouvindo o mais recente disco do furioso grupo de heavy metal Iron Maiden. O pai do baterista abriu a porta e perguntou se era algum trio elétrico.
Mais recentemente, Cristiano Araújo, cantor sertanejo, se foi antes de se tornar uma estrela do nível de Gusttavo Lima ou de Marília Mendonça – embora fosse uma estrela local (era de Goiânia), faltava aquela virada definitiva para conquistar o resto do País. Pouco meses antes de sua morte, em junho de 2015, me deparei com o anúncio do show dele numa famosa casa de espetáculos de São Paulo. Meu filho perguntou quem era Cristiano Araújo e respondi de bate-pronto. “Não sei, mas acho que preciso conhecer.”
Partindo para o showbiz internacional… O cantor folk Nick Drake se foi em novembro de 1974, aos 26 anos, supostamente por dosagem excessiva de remédios para dormir – há quem fale em suicídio. Ele sofria de depressão e o pífio resultado comercial de seus discos só aumentou esse quadro. Hoje, Drake é referência para vários artistas –Renato Russo, por exemplo, gravou Clothes of Sand em seu disco Stonewall Celebration Concert (1994).
Em 1997, Jeff Buckley, de 30 anos, havia acabado de terminar as gravações do sucessor de Grace – um dos álbuns mais bonitos dos anos 1990 – quando se jogou num afluente do rio Mississipi, em Nashville. Jamais foi encontrado.
E Amy Winehouse? Embora ela tenha vendido horrores com Back to Black, de 2006, eu tendo a concordar com Jon Pareles, crítico de música do New York Times. Ela se foi sem deixar um legado, um punhado de trabalhos significativos que poderiam influenciar o surgimento de outras intérpretes do mesmo estilo.
O caso da Janaína é mais sofrido porque ela se foi sem ao menos deixar um registro decente de sua voz. A cantora participou do disco do grupo de rap Ponto Crucial (o vídeo está disponível no YouTube e tem participação de Camila Pitanga) e logo seguiria em carreira solo. Assinou com Rick Bonadio, ganhou matéria do Jornal da Tarde, de autoria de Sérgio Roveri, e estava em busca de repertório para o seu disco de estreia.
Bonadio me disse que possui uma ou outra coisa gravada por ela, mas não conseguiu encontrar as fitas. Uma pena. Janaína tinha aquele vocal potente com influências de soul music, além de um bom conhecimento popular (lembro que numa conversa que eu e a repórter da BIZZ, Claudia Grechi, tivemos com ela, fomos presenteados com uma versão à capella de Solidão de Amigos, um sucesso dos anos 1980 do cantor Jessé).
Janaína, óbvio, foi um dos temas da conversa que tive com Nando Reis na semana passada. Aliás, a morte é um tema que vez ou outra faz parte dos versos do cantor e compositor paulistano – caso de Meu Aniversário, que fez para a mãe, e Vou te Encontrar, um tributo à mulher de Paulo Miklos, ex-companheiro dos Titãs.
“A música é um lugar ótimo para transformar a dor em coisas belas”, me disse Nando. Rhipsalis, que nasceu com o nome de Janaína, é um pop/rock radiofônico, estilo que Nando hoje administra com maestria. Um possível hit? Talvez. Mas para mim soa como um belo réquiem para uma promessa que se foi cedo demais.