Coluna quinzenal do jornalista e crítico Sérgio Martins com histórias da música

Opinião|A falta de educação chegou ao universo dos shows e espetáculos


A ascensão das redes sociais transformou qualquer ser humano munido de celular num influencer de ocasião e criou um tipo de admirador que se sente chapa ou dono do artista

Por Sérgio Martins

Um dos meus passatempos prediletos tem sido assistir, no YouTube, ao embate entre os soldados do rei e turistas desavisados. Os primeiros são impávidos e impávidas oficiais de uniforme vermelho, localizados em pontos estratégicos e turísticos de Londres. Os turistas desavisados… conhecemos o tipo muito bem. Nos vídeos que tenho assistido, tentam tirar os militares da sua posição de seriedade e tratam os cavalos dos funcionários reais como se fossem de estimação – as consequências, claro, são sempre desastrosas.

Os acontecimentos recentes no showbiz me fazem pensar que esse know how da falta de educação foi transportado para o universo dos espetáculos. Semanas atrás, o cantor Roberto Carlos passou um sabão num grupo de policiais durante sua apresentação na Praia do Pina, em Recife. Os homens da lei se acharam no direito de ficar conversando, num tom acima do respeitável, durante a performance do intérprete de Detalhes (em julho de 2022, Roberto mandou um pretenso fã calar a boca porque este pedia para o cantor casar com a mãe dele enquanto tentava entoar os versos de Como é Grande o Meu Amor por Você). Recentemente, a cantora Anitta chamou de “insuportável” um sujeito que pedia para que ela interpretasse a música de sua preferência, sem obedecer ao roteiro do show.

Eu não sei exatamente quando esse desrespeito começou, mas me lembro do dia em que ele começou a me irritar. Onze anos atrás, Hugh Laurie, o Dr. House da famosa série de TV, desfilou um repertório de jazz e blues – no qual se sai muito bem – numa casa de espetáculos em São Paulo. Ao perceber que um sujeito o estava filmando, disparou: “Ótimo! Daqui a três horas, quando chegar em casa, pode descobrir se o show foi bom ou não.” A apresentação do grupo americano Toto, realizada em novembro de 2024 no Espaço Unimed, em São Paulo, me fez pensar seriamente se ainda vale a pena sair de casa para assistir a um show. Um casal que postou atrás de mim e do meu amigo passou o tempo inteiro conversando – não sobre a performance, mas sobre assuntos aleatórios. E bastou eu olhar para trás e mostrar meu incômodo com a falta de educação para que eles passassem a soltar “oohs” até nos momentos em que os integrantes da banda pediam silêncio.

continua após a publicidade

Na função de jornalista musical, eu tenho o privilégio de assistir a muitos shows e concertos da minha preferência. Por outro lado, eu raramente “desligo”, ou seja, fico o tempo todo analisando a ação do palco ao invés de desfrutar do que está sendo mostrado no palco. O espectador, digamos, comum, tem essa vantagem assim que se desloca da sua casa para assistir ao cantor, cantora ou grupo de sua preferência. Muitos, no entanto, preferem atuar como cronistas de um grupo de leitores e espectadores – eles e amigos, claro. Exibem trechos dessas performances, sempre desfocada e tremida, como se tivessem sido capturadas por D.A. Pennebaker, o cineasta que filmou Depeche Mode, Bob Dylan, o Festival de Monterrey (que trazia, entre outros, Jimi Hendrix, The Who, Janis Joplin) e David Bowie. E se filmam cantando, como se isso fosse um atestado de amor ao artista que tenta disputar a atenção do público com essas pessoas munidas de câmeras/filmadoras.

Celulares filmam o show de Shawn Mendes no Palco Mundo do Rock in Rio 2024, na zona oeste do Rio de Janeiro.  Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Cenas dessa categoria se sucedem, assim como os gritos que os soldados da rainha dão nos turistas que ultrapassam os limites do bom senso. Em outubro de 2023, quando fui assistir ao cantor The Weeknd, me deparei com uma fã que saiu correndo quando ele tocou sua música favorita. Ela curtiu o momento? Não, ficou filmando para mostrar que tinha ido ao show. Durante o bis do violoncelista Jean-Gihen Queyras na Sala São Paulo (ele foi solista da temporada da Osesp), o que mais se percebia era a presença incômoda de celulares na plateia, que não sossegou nem o facho quando a orquestra, sob o comando de Tierry Fischer, fez uma bela execução da Quarta Sinfonia, do compositor austríaco Anton Bruckner.

continua após a publicidade

A ascensão das redes sociais transformou qualquer ser humano munido de celular num influencer de ocasião. O prazer de assistir ao show do cantor ou grupo predileto ou se emocionar com a passagem de uma sinfonia de Beethoven foi relegado ao segundo, terceiro, centésimo plano fatorial. O que importa é mostrar a todos que você estava no show ou no concerto do momento, embora não lembre de nenhum detalhe específico da apresentação. Aliás, uma coisa que percebi na performance de The Weeknd é que a maioria da plateia estava de costas para o palco, se filmando, enquanto ele trazia um soul futurista com música e cenário da melhor qualidade.

O estreitamento da relação entre o público e artista – em parte por causa do contato direto via redes sociais – criou um tipo de admirador que se sente chapa ou dono do artista. Roberto quer silêncio para cantar um dos principais hits da sua carreira? E daí, preciso mostrar para o “Rei” que minha mãe quer casar com ele. Aliás, espero que ele entregue essa rosa logo porque estou doido para mostrar para meus amigos. Anitta quer fazer um show especial, com roteiro elaborado e mostrar sua evolução como artista? Que se dane, eu vim aqui para vê-la cantar a música que eu gosto e quero que seja agora! Perto dessas atitudes, penso até que os elogios de “poderosa” e “vitaminada” dirigidos a certas cantoras podem até ser considerados simpáticos (não que eu goste dessas manifestações de carinho, que fique bem claro).

Muitos artistas de alta patente já demonstraram seu incômodo perante aos influencers e críticos de iPhone. O cantor Bob Dylan e o guitarrista Jack White, por exemplo, exigem que os celulares do público sejam lacrados durante suas performances. O grupo inglês de rock progressivo King Crimson proíbe terminantemente o uso de celulares durante as suas apresentações, ou seja, o que importa é a música. São atitudes solitárias, mas que se revelam um bom começo para conter ou incentivar a profusão de cineastas amadores. Pelo menos até que se use os métodos pouco corteses dos guardas do rei contra turistas sem noção.

continua após a publicidade

Um dos meus passatempos prediletos tem sido assistir, no YouTube, ao embate entre os soldados do rei e turistas desavisados. Os primeiros são impávidos e impávidas oficiais de uniforme vermelho, localizados em pontos estratégicos e turísticos de Londres. Os turistas desavisados… conhecemos o tipo muito bem. Nos vídeos que tenho assistido, tentam tirar os militares da sua posição de seriedade e tratam os cavalos dos funcionários reais como se fossem de estimação – as consequências, claro, são sempre desastrosas.

Os acontecimentos recentes no showbiz me fazem pensar que esse know how da falta de educação foi transportado para o universo dos espetáculos. Semanas atrás, o cantor Roberto Carlos passou um sabão num grupo de policiais durante sua apresentação na Praia do Pina, em Recife. Os homens da lei se acharam no direito de ficar conversando, num tom acima do respeitável, durante a performance do intérprete de Detalhes (em julho de 2022, Roberto mandou um pretenso fã calar a boca porque este pedia para o cantor casar com a mãe dele enquanto tentava entoar os versos de Como é Grande o Meu Amor por Você). Recentemente, a cantora Anitta chamou de “insuportável” um sujeito que pedia para que ela interpretasse a música de sua preferência, sem obedecer ao roteiro do show.

Eu não sei exatamente quando esse desrespeito começou, mas me lembro do dia em que ele começou a me irritar. Onze anos atrás, Hugh Laurie, o Dr. House da famosa série de TV, desfilou um repertório de jazz e blues – no qual se sai muito bem – numa casa de espetáculos em São Paulo. Ao perceber que um sujeito o estava filmando, disparou: “Ótimo! Daqui a três horas, quando chegar em casa, pode descobrir se o show foi bom ou não.” A apresentação do grupo americano Toto, realizada em novembro de 2024 no Espaço Unimed, em São Paulo, me fez pensar seriamente se ainda vale a pena sair de casa para assistir a um show. Um casal que postou atrás de mim e do meu amigo passou o tempo inteiro conversando – não sobre a performance, mas sobre assuntos aleatórios. E bastou eu olhar para trás e mostrar meu incômodo com a falta de educação para que eles passassem a soltar “oohs” até nos momentos em que os integrantes da banda pediam silêncio.

Na função de jornalista musical, eu tenho o privilégio de assistir a muitos shows e concertos da minha preferência. Por outro lado, eu raramente “desligo”, ou seja, fico o tempo todo analisando a ação do palco ao invés de desfrutar do que está sendo mostrado no palco. O espectador, digamos, comum, tem essa vantagem assim que se desloca da sua casa para assistir ao cantor, cantora ou grupo de sua preferência. Muitos, no entanto, preferem atuar como cronistas de um grupo de leitores e espectadores – eles e amigos, claro. Exibem trechos dessas performances, sempre desfocada e tremida, como se tivessem sido capturadas por D.A. Pennebaker, o cineasta que filmou Depeche Mode, Bob Dylan, o Festival de Monterrey (que trazia, entre outros, Jimi Hendrix, The Who, Janis Joplin) e David Bowie. E se filmam cantando, como se isso fosse um atestado de amor ao artista que tenta disputar a atenção do público com essas pessoas munidas de câmeras/filmadoras.

Celulares filmam o show de Shawn Mendes no Palco Mundo do Rock in Rio 2024, na zona oeste do Rio de Janeiro.  Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Cenas dessa categoria se sucedem, assim como os gritos que os soldados da rainha dão nos turistas que ultrapassam os limites do bom senso. Em outubro de 2023, quando fui assistir ao cantor The Weeknd, me deparei com uma fã que saiu correndo quando ele tocou sua música favorita. Ela curtiu o momento? Não, ficou filmando para mostrar que tinha ido ao show. Durante o bis do violoncelista Jean-Gihen Queyras na Sala São Paulo (ele foi solista da temporada da Osesp), o que mais se percebia era a presença incômoda de celulares na plateia, que não sossegou nem o facho quando a orquestra, sob o comando de Tierry Fischer, fez uma bela execução da Quarta Sinfonia, do compositor austríaco Anton Bruckner.

A ascensão das redes sociais transformou qualquer ser humano munido de celular num influencer de ocasião. O prazer de assistir ao show do cantor ou grupo predileto ou se emocionar com a passagem de uma sinfonia de Beethoven foi relegado ao segundo, terceiro, centésimo plano fatorial. O que importa é mostrar a todos que você estava no show ou no concerto do momento, embora não lembre de nenhum detalhe específico da apresentação. Aliás, uma coisa que percebi na performance de The Weeknd é que a maioria da plateia estava de costas para o palco, se filmando, enquanto ele trazia um soul futurista com música e cenário da melhor qualidade.

O estreitamento da relação entre o público e artista – em parte por causa do contato direto via redes sociais – criou um tipo de admirador que se sente chapa ou dono do artista. Roberto quer silêncio para cantar um dos principais hits da sua carreira? E daí, preciso mostrar para o “Rei” que minha mãe quer casar com ele. Aliás, espero que ele entregue essa rosa logo porque estou doido para mostrar para meus amigos. Anitta quer fazer um show especial, com roteiro elaborado e mostrar sua evolução como artista? Que se dane, eu vim aqui para vê-la cantar a música que eu gosto e quero que seja agora! Perto dessas atitudes, penso até que os elogios de “poderosa” e “vitaminada” dirigidos a certas cantoras podem até ser considerados simpáticos (não que eu goste dessas manifestações de carinho, que fique bem claro).

Muitos artistas de alta patente já demonstraram seu incômodo perante aos influencers e críticos de iPhone. O cantor Bob Dylan e o guitarrista Jack White, por exemplo, exigem que os celulares do público sejam lacrados durante suas performances. O grupo inglês de rock progressivo King Crimson proíbe terminantemente o uso de celulares durante as suas apresentações, ou seja, o que importa é a música. São atitudes solitárias, mas que se revelam um bom começo para conter ou incentivar a profusão de cineastas amadores. Pelo menos até que se use os métodos pouco corteses dos guardas do rei contra turistas sem noção.

Um dos meus passatempos prediletos tem sido assistir, no YouTube, ao embate entre os soldados do rei e turistas desavisados. Os primeiros são impávidos e impávidas oficiais de uniforme vermelho, localizados em pontos estratégicos e turísticos de Londres. Os turistas desavisados… conhecemos o tipo muito bem. Nos vídeos que tenho assistido, tentam tirar os militares da sua posição de seriedade e tratam os cavalos dos funcionários reais como se fossem de estimação – as consequências, claro, são sempre desastrosas.

Os acontecimentos recentes no showbiz me fazem pensar que esse know how da falta de educação foi transportado para o universo dos espetáculos. Semanas atrás, o cantor Roberto Carlos passou um sabão num grupo de policiais durante sua apresentação na Praia do Pina, em Recife. Os homens da lei se acharam no direito de ficar conversando, num tom acima do respeitável, durante a performance do intérprete de Detalhes (em julho de 2022, Roberto mandou um pretenso fã calar a boca porque este pedia para o cantor casar com a mãe dele enquanto tentava entoar os versos de Como é Grande o Meu Amor por Você). Recentemente, a cantora Anitta chamou de “insuportável” um sujeito que pedia para que ela interpretasse a música de sua preferência, sem obedecer ao roteiro do show.

Eu não sei exatamente quando esse desrespeito começou, mas me lembro do dia em que ele começou a me irritar. Onze anos atrás, Hugh Laurie, o Dr. House da famosa série de TV, desfilou um repertório de jazz e blues – no qual se sai muito bem – numa casa de espetáculos em São Paulo. Ao perceber que um sujeito o estava filmando, disparou: “Ótimo! Daqui a três horas, quando chegar em casa, pode descobrir se o show foi bom ou não.” A apresentação do grupo americano Toto, realizada em novembro de 2024 no Espaço Unimed, em São Paulo, me fez pensar seriamente se ainda vale a pena sair de casa para assistir a um show. Um casal que postou atrás de mim e do meu amigo passou o tempo inteiro conversando – não sobre a performance, mas sobre assuntos aleatórios. E bastou eu olhar para trás e mostrar meu incômodo com a falta de educação para que eles passassem a soltar “oohs” até nos momentos em que os integrantes da banda pediam silêncio.

Na função de jornalista musical, eu tenho o privilégio de assistir a muitos shows e concertos da minha preferência. Por outro lado, eu raramente “desligo”, ou seja, fico o tempo todo analisando a ação do palco ao invés de desfrutar do que está sendo mostrado no palco. O espectador, digamos, comum, tem essa vantagem assim que se desloca da sua casa para assistir ao cantor, cantora ou grupo de sua preferência. Muitos, no entanto, preferem atuar como cronistas de um grupo de leitores e espectadores – eles e amigos, claro. Exibem trechos dessas performances, sempre desfocada e tremida, como se tivessem sido capturadas por D.A. Pennebaker, o cineasta que filmou Depeche Mode, Bob Dylan, o Festival de Monterrey (que trazia, entre outros, Jimi Hendrix, The Who, Janis Joplin) e David Bowie. E se filmam cantando, como se isso fosse um atestado de amor ao artista que tenta disputar a atenção do público com essas pessoas munidas de câmeras/filmadoras.

Celulares filmam o show de Shawn Mendes no Palco Mundo do Rock in Rio 2024, na zona oeste do Rio de Janeiro.  Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Cenas dessa categoria se sucedem, assim como os gritos que os soldados da rainha dão nos turistas que ultrapassam os limites do bom senso. Em outubro de 2023, quando fui assistir ao cantor The Weeknd, me deparei com uma fã que saiu correndo quando ele tocou sua música favorita. Ela curtiu o momento? Não, ficou filmando para mostrar que tinha ido ao show. Durante o bis do violoncelista Jean-Gihen Queyras na Sala São Paulo (ele foi solista da temporada da Osesp), o que mais se percebia era a presença incômoda de celulares na plateia, que não sossegou nem o facho quando a orquestra, sob o comando de Tierry Fischer, fez uma bela execução da Quarta Sinfonia, do compositor austríaco Anton Bruckner.

A ascensão das redes sociais transformou qualquer ser humano munido de celular num influencer de ocasião. O prazer de assistir ao show do cantor ou grupo predileto ou se emocionar com a passagem de uma sinfonia de Beethoven foi relegado ao segundo, terceiro, centésimo plano fatorial. O que importa é mostrar a todos que você estava no show ou no concerto do momento, embora não lembre de nenhum detalhe específico da apresentação. Aliás, uma coisa que percebi na performance de The Weeknd é que a maioria da plateia estava de costas para o palco, se filmando, enquanto ele trazia um soul futurista com música e cenário da melhor qualidade.

O estreitamento da relação entre o público e artista – em parte por causa do contato direto via redes sociais – criou um tipo de admirador que se sente chapa ou dono do artista. Roberto quer silêncio para cantar um dos principais hits da sua carreira? E daí, preciso mostrar para o “Rei” que minha mãe quer casar com ele. Aliás, espero que ele entregue essa rosa logo porque estou doido para mostrar para meus amigos. Anitta quer fazer um show especial, com roteiro elaborado e mostrar sua evolução como artista? Que se dane, eu vim aqui para vê-la cantar a música que eu gosto e quero que seja agora! Perto dessas atitudes, penso até que os elogios de “poderosa” e “vitaminada” dirigidos a certas cantoras podem até ser considerados simpáticos (não que eu goste dessas manifestações de carinho, que fique bem claro).

Muitos artistas de alta patente já demonstraram seu incômodo perante aos influencers e críticos de iPhone. O cantor Bob Dylan e o guitarrista Jack White, por exemplo, exigem que os celulares do público sejam lacrados durante suas performances. O grupo inglês de rock progressivo King Crimson proíbe terminantemente o uso de celulares durante as suas apresentações, ou seja, o que importa é a música. São atitudes solitárias, mas que se revelam um bom começo para conter ou incentivar a profusão de cineastas amadores. Pelo menos até que se use os métodos pouco corteses dos guardas do rei contra turistas sem noção.

Tudo Sobre
Opinião por Sérgio Martins

Jornalista e crítico musical

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.