Os dois primeiros episódios do novo drama policial da HBO A Cidade é Nossa (We Own This City) apresentam um homem morto crivado de balas em um beco e um traficante cujas mercadorias parecem estar deixando um rastro de corpos. Mas o verdadeiro mistério é algo completamente diferente. A minissérie leva no título uma declaração proferida não por criminosos, mas por um policial de Baltimore, Wayne Jenkins (Jon Bernthal), que vai subindo na hierarquia ao plantar drogas, cometer assaltos, roubar de infratores da lei e cidadãos comuns – mostrando a seus colegas policiais como se livrar de tudo. A grande questão não é o que ele fazia, mas por que seus superiores o consideravam seu “menino de ouro” e fecharam os olhos para seus crimes por quase uma década e meia.
Adaptada por David Simon e George Pelecanos do livro de não ficção de Justin Fenton, ex-repórter do Baltimore Sun, A Cidade é Nossa é uma sequência espiritual de The Wire, expondo e deplorando a podridão institucional que faz com que as reformas sejam quase impossíveis. O nome de Freddie Gray é invocado desde cedo e com frequência, embora menos como vítima da brutalidade policial e mais como um marcador temporal após o qual as forças da lei pisaram ainda mais forte contra as reformas, enquanto os moradores passaram a suspeitar cada vez mais delas. Na cena de abertura, Jenkins está no púlpito, desencorajando outros policiais a usar força excessiva – e na cena seguinte ele está ameaçando espancar uma pessoa com um taco de beisebol. De acordo com a série, a única conquista da energia política em torno da polícia nos últimos anos pode ser sua recém-descoberta habilidade em ficar repetindo os discursos que a população quer ouvir.
Ao showrunner Pelecanos não falta ambição. A Cidade é Nossa é um retrato de como a corrupção policial destrói uma cidade: drenando seus cofres para pagar acordos, desiludindo os cidadãos a respeito de seus líderes e instituições e encorajando os policiais a agirem sem levar em conta a lei ou a moralidade. Baltimore é seu estudo de caso, mas, como um dos monólogos da série deixa claro, os Jenkins estão por toda parte. Essa impressão é reforçada pelas semelhanças da série com The Shield, o thriller policial do FX que se inspirou no escândalo Rampart da Los Angeles do final dos anos 90.
Em 2017, Jenkins é o líder da Força-Tarefa de Rastreamento de Armas (GTTF, na sigla em inglês), uma unidade desonesta dentro do departamento de polícia de Baltimore que faz patrulha ostensiva dos crimes de drogas. Mas, na verdade, o esquadrão de elite abriga alguns dos piores infratores da cidade. Vários de seus oficiais já foram penalizados pela corregedoria por má conduta, como o oportunista Jemell Ryan (Darrell Britt-Gibson roubando a cena). Outros estão em uma lista de policiais proibidos de testemunhar no tribunal por causa de seu histórico de perjúrio, como o valentão Daniel Hersl (Josh Charles evitando o estereotipo). Outros ainda aspiram abertamente a viver como seus parceiros criminosos, como o arrogante Momodu “G Money” Gondo (McKinley Belcher III).
Como outras séries de Simon e Pelecanos, A Cidade é Nossa não é um mundo particularmente convidativo. Há dezenas de personagens (alguns interpretados por rostos familiares de The Wire) e os roteiros são fortemente apimentados com estatísticas, jargões e siglas inexplicáveis. Os primeiros capítulos são especialmente – e para ser franco, desnecessariamente – opacos, saltando entre várias linhas de tempo, com poucas recompensas. Os episódios restantes se estruturaram em torno de depoimentos, seja pela dupla de investigadores (Dagmara DomiÅ„czyk e Don Harvey) trabalhando para derrubar a GTTF ou pelo procurador federal de direitos civis (Wunmi Mosaku) esperando defender uma revisão maior do BPD via decreto de consentimento.
A Cidade é Nossa está mais perto de uma série Simon-Pelecanos do que de outra obra-prima à la The Wire. (O visual da série, do diretor Reinaldo Marcus Green, de King Richard, lembra fortemente seu realismo áspero). Seis horas talvez não sejam tempo suficiente para tudo o que os roteiristas querem realizar – especialmente suas observações sobre como o policiamento mudou após a morte de Gray, em 2015. Os investigadores provocam confissões dos policiais sujos com muita facilidade – embora, satisfatoriamente, não haja honra entre os ladrões, a imprudência dos crimes de Jenkins provocam uma inesperada aversão entre seus homens. A série se mostra mais eficaz quando os investigadores conversam com as vítimas do caos da GTTF, já que o custo humano da brutalidade policial sobre as pessoas comuns se acumula.
Hoje em dia, The Wire é elogiado por sua representação das forças da lei e da necrose cívica que faz do trabalho policial uma tarefa de Sísifo, mas, como os fãs sabem, a série também ostentava personagens maravilhosos e inúmeros atores com carisma impressionante. As performances aqui são boas, mas não especialmente notáveis, marcadas pelo escasso tempo de tela de qualquer membro do enorme elenco. (Além de Britt-Gibson, o destaque é Jamie Hector – mais conhecido como Marlo, o vilão de The Wire – que interpreta um detetive de homicídios preocupado com a possibilidade de seus anos trabalhando ao lado de Jenkins mancharem sua carreira). Simon e Pelecanos talvez quisessem evitar a armadilha que prendeu The Shield: os espectadores se identificando com o protagonista repulsivo, como muitos torceram para que Vic Mackey, de Michael Chiklis, continuasse enganando todo mundo ao seu redor, apesar de sua infinita depravação.
A limitação do particular em favor do foco sistêmico – além das muitas, muitas histórias que A Cidade é Nossa aborda – deixam a série um tanto didática e sufocante. Mas os telespectadores que ainda não estão familiarizados com o escândalo da GTTF terão um relato angustiante da criminalidade policial. É o tipo de história surpreendente que faz você se perguntar se ainda há outras séries como esta por aí. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU