Adaptar textos clássicos da literatura para o audiovisual nunca será uma tarefa fácil, ainda mais quando uma das figuras mais icônicas da ficção está envolvida. O caso de O Talentoso Ripley (1955), escrito por Patricia Highsmith (1921-1995), prova como um mesmo personagem pode ser interpretado de formas distintas, evidenciando a complexidade narrativa presente no thriller psicológico, aspecto que consolidou a autora norte-americana como uma das referências do gênero de suspense no século 20.
O Tom Ripley criado por Highsmith é apresentado como um vigarista sociopata, educado e amigável, mas totalmente amoral, que “sempre achara que tinha o rosto mais sem graça do mundo, um rosto completamente esquecível, com uma expressão de docilidade que jamais conseguira entender e também uma vaga expressão de susto que jamais conseguira apagar”, conforme ela descreve no célebre livro cuja edição mais recente disponível no Brasil é da Intrínseca (336 páginas; R$ 47,94).
A recém-lançada minissérie Ripley, da Netflix, despertou inevitáveis comparações com o romance e o filme homônimo de 1999, indicado a cinco prêmios no Oscar. Extremamente sombria, não só por causa da fotografia em preto e branco, mas também pelo tom, a nova produção criada por Steven Zaillian (The Night Of, O Irlandês, O Gângster) se privilegia do formato episódico, somando um total aproximado de oito horas de duração, que permite ao roteiro se ater fielmente aos pontos essenciais do livro.
Já o longa dirigido por Anthony Minghella (O Paciente Inglês, Cold Mountain), com pouco mais de duas horas, optava por maiores liberdades textuais e continha um ar mais inocente e divertido.
Leia mais sobre Ripley e Patricia Highsmith
As diferentes abordagens são latentes nas intepretações principais. O Ripley vivido por Matt Damon no filme carregava um certo charme e uma esperança juvenil, o que rapidamente fazia o público ter empatia por ele. Seus anseios esboçavam um desejo comum de enriquecer, ter amigos e viver bem a vida, ao contrário do metódico e assustador Ripley interpretado por Andrew Scott, um homem desumano que causa ojeriza ao telespectador desde as primeiras cenas.
A sexualidade de Tom também é conduzida com olhares dissemelhantes. A obra cinematográfica evocava o subtexto gay do romance com clareza. O Ripley de Damon indicava sua atração física pelo playboy Dickie (Jude Law), perspectiva reafirmada pela expansão do personagem Peter (Jack Davenport), com quem ele tinha um relacionamento amoroso. No livro, a existência de Peter não serve a esse propósito e no projeto da Netflix ele foi completamente ignorado.
O Ripley de Scott, por sua vez, se aproxima mais da descrição original de Highsmith, na qual o personagem explica “não consigo decidir se gosto de homens ou mulheres, então estou pensando em desistir de ambos”.
Assim como no livro, a série sugere que Tom tem ciúmes de Dickie (Johnny Flynn), mas sem implicar um evidente componente homossexual. A própria autora falou a respeito do assunto em entrevista à Sight & Sound, em 1988. “Não acho que Ripley seja gay”, disse ela. “Ele aprecia a boa aparência de outros homens, isso é verdade. Mas ele é casado em livros posteriores. Não estou dizendo que ele seja muito forte no departamento sexual. Mas ele vai para a cama com a esposa.”
Andrew Scott, em entrevista ao Queerty
Apesar das visões diversificadas, há um fundamento central no romance que guia ambas as adaptações. Os leitores, espectadores ou assinantes do serviço de streaming provavelmente jamais viverão suas vidas como Tom Ripley, e por isso ficarão fascinados por ele em algum momento. Mentiroso nato, o personagem personifica o escapismo e seus traços manipulativos podem convencer as pessoas de qualquer coisa, seja para o bem ou para o mal.
Veja o trailer de Ripley e de O Talentoso Ripley
Outras adaptações
O Talentoso Ripley também foi adaptado no filme O Sol por Testemunha (1960), com o francês Alain Delon no papel principal. O segundo livro da série, Ripley Subterrâneo (1970), baseou um filme homônimo de 2005 estrelado por Barry Pepper. Já o terceiro livro, O Jogo de Ripley (1974), inspirou dois longas: um sob o título O Amigo Americano (1977), com Dennis Hopper, e outro mantendo o nome original, lançado em 2002 e com John Malkovich.