Faz 22 anos que Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, com codireção de Kátia Lund, estreou para entrar na história do cinema. Nunca tantas pessoas negras de comunidades tinham sido vistas na tela. O visual dinâmico foi imitado mundo afora. E o longa-metragem conquistou quatro indicações ao Oscar. Buscapé, Barbantinho, Berenice e companhia estão de volta na série Cidade de Deus: A Luta Não Para, que estreia neste domingo, 25, às 21h, na HBO e Max, com direção geral de Aly Muritiba. Os seis episódios têm um ponto de vista diferente e uma presença feminina muito mais forte.
“A gente queria muito falar sobre resistência e existência e menos sobre carência”, disse Muritiba em entrevista ao Estadão, em Gramado, onde o primeiro episódio foi exibido em sessão especial. “O filme fala muito sobre carência, porque era a ótica do momento – e está tudo certo. Mas a gente não queria que o lema da série fosse ‘Se correr, o bicho pega, se ficar, o bicho come’. Em A Luta Não Para, as pessoas querem ficar e lutar.”
Por mais que tenha sido bem-sucedido, Cidade de Deus recebeu críticas por mostrar a favela quase exclusivamente como território de criminosos e por explorar visualmente a violência, com uma estética que foi chamada de “cosmética da fome”.
“Quando assisti ao filme, eu entendi que aquela não era somente a realidade retratada”, disse Alexandre Rodrigues, que faz o narrador lá e aqui, o fotógrafo Wilson, ou Buscapé para os íntimos. “O fator principal de eu me envolver nessa história de novo é que agora estamos falando das pessoas da comunidade. Esse é o grande diferencial, porque em Cidade de Deus os personagens nem sempre foram abordados da forma correta. Agora são pessoas com muitos sonhos, que trabalham para caramba. Esse ponto de vista é o real paralelo que eu faço com a minha vida e com o ponto de vista que eu tenho da comunidade”, disse o ator.
Leia Também:
Edson Oliveira, que faz Barbantinho, concordou. “O filme conta a história dos personagens superficialmente. A série não mostra só os conflitos da favela, mas também o lado potente, o que ela tem a oferecer. É um outro olhar. Não que a favela venceu, a favela ainda tem muitas coisas a serem construídas, mas a gente está contando que em uma comunidade existem pessoas guerreiras, que fazem uma transformação de dentro para fora, virando um raio que atinge muita gente para o bem.”
Salto temporal
A série pula do início dos anos 1980, quando as favelas começavam a ser dominadas pela facção Falange Vermelha, para os anos 2000, um momento em que há várias organizações criminosas disputando os territórios, inclusive as milícias formadas por policiais.
Buscapé saiu da Cidade de Deus e foi para a zona sul, trabalhando como fotojornalista – normalmente, cobrindo os conflitos entre facções e polícia. Barbantinho, seu fiel companheiro da adolescência, ficou e se tornou líder comunitário. Agora, tenta tornar-se vereador para trazer melhorias para a comunidade. Outros que voltam são Cíntia (Sabrina Rosa), líder comunitária que era a mulher de Mané Galinha no filme, e Berenice (Roberta Rodrigues), a namorada de Cabeleira no longa, agora uma pequena empresária.
O tráfico na favela é comandado por Curió, personagem novo interpretado por Marcos Palmeira. Ele é um traficante cheio de carisma, casado e pai de família. Já Braddock (Thiago Martins), a criança que matou o Zé Pequeno no filme e hoje braço-direito de Curió, sai da prisão depois de anos, querendo seu quinhão nos negócios do pai adotivo.
Assim se estabelece o conflito da estreia, que emula bastante o longa, com cortes rápidos que fazem a ponte entre Cidade de Deus e a série. “O primeiro episódio presta homenagem ao filme, com uma conexão de linguagem grande”, disse Muritiba. “Não dava para mudar porque Cidade de Deus tem fãs no mundo inteiro. Mas também não queria apenas copiar o que Fernando e Katia fizeram. A mudança é gradual, vou imprimindo mais o meu estilo, especialmente a partir do terceiro episódio.”
Mulheres com nome
Se a trama de Cidade de Deus: A Luta Não Para mostra as mudanças entre 1980 e 2000, com o surgimento de novos elementos e a resistência da comunidade, a série, em si, também acusa as transformações do mundo e do audiovisual nas duas décadas desde o lançamento do filme.
As mulheres, que tinham zero destaque no longa-metragem, ganham papeis centrais aqui. “Minha personagem não tinha nem nome”, disse Sabrina Rosa, que interpreta Cíntia. “Ela é uma mulher que foi ferida pela violência daquela masculinidade tóxica, pega essa dor e faz dela uma coisa bonita.” Na associação de moradores que ela comanda com Barbantinho, as crianças têm acesso a aulas de judô, por exemplo.
É uma realidade que muitos integrantes do elenco viveram. Vários vieram do Nós do Morro, que ensina teatro. “Esses projetos são essenciais para formar caráter”, disse Alexandre Rodrigues. “Eu fiz desde curso de fantasias e adereços para escola de samba a costura, teatro, técnico de câmera, caboman. Com isso eu fui me entendendo, vendo que podia fazer muita coisa. O meu referencial já não era mais aquele que estava ali. Abriu o horizonte.”
Outra personagem feminina que retorna com mais visibilidade é a Berenice de Roberta Rodrigues, uma mulher empoderada, dona de seu próprio negócio, que se recusa a se relacionar novamente com um criminoso. “É um privilégio estar de volta porque ela é a primeira personagem da minha carreira. Foi meu encontro com a arte”, afirmou a atriz. “Cidade de Deus foi um movimento revolucionário por ter tantas pessoas pretas na grande tela, com qualidade artística. Ali ninguém era bandido nem mulher de bandido, éramos da comunidade, mas artistas.” Como Berenice, Roberta Rodrigues hoje sabe muito bem das suas vontades. “Nós temos consciência do que queremos e não queremos, temos um lugar de fala muito potente.”
Em uma série com personagens femininas tão presentes, era natural que pelo menos um dos antagonistas também fosse mulher. Entra Jerusa, vivida por Andréia Horta, uma advogada que transita entre vários meios e namora Braddock. “Fiquei fascinada com ela, uma Lady Macbeth contemporânea, com raciocínio ágil e capacidade articuladora impressionante. Ela usa as armas que tem, como a manipulação”, disse a atriz. É Jerusa que instiga Braddock a ser mais ambicioso e bater de frente com Curió.
A representatividade na tela é fruto das lutas dos grupos minoritários. “Na série, isso está muito presente nas personagens, mas também na maneira como a gente fez, no modo como tudo foi debatido e discutido”, disse Muritiba, que contou com roteiristas negras e da Cidade de Deus.
Em Cidade de Deus: A Luta Não Para, a realidade pode ser violenta e difícil. “Mas tudo acontece como em todos os cantos do mundo”, disse o diretor. “São pessoas lutando para sobreviver, amando, sendo amadas, buscando amor. Muitas vezes nós apontamos nossa câmera para o extraordinário, e é óbvio que a violência policial ou a guerra do tráfico é a exceção e não a regra. Aqui, a gente fala muito mais da vida do que da morte.”