AP - No início do último episódio da segunda temporada de Perry Mason, que foi ao ar na segunda-feira, o personagem do título encosta a motocicleta na frente do fórum de Los Angeles e faz uma longa pausa. Ele olha para o edifício como se estivesse encarando um oponente e depois entra, na esperança de interceder junto a um juiz em nome de seus clientes.
Embora a cena não tenha diálogos, a imagem do edifício está cheia de significado: parece quase escarnecer do advogado por ele ter tido a audácia de pensar que poderia fazer justiça dentro de um sistema tão corrupto.
É uma das muitas cenas do drama da HBO indicado ao Emmy e baseado nos livros de Erle Stanley Gardner (1889-1970) - uma espécie de prequela da série estrelada por Raymond Burr - nas quais a Los Angeles dos anos 1930 se torna uma personagem por meio do uso de instituições icônicas, marcos públicos, paisagens - e divisões de raça e classe.
Matthew Rhys, que interpreta Mason, só percebeu quanta atenção aos detalhes havia na criação de “LA como um tipo de personagem” depois de ter sido “convidado para se sentar à mesa dos adultos” como produtor executivo da segunda temporada.
E embora o ator galês de The Americans já houvesse morado em Los Angeles por seis anos, ele disse que a experiência o fez se apaixonar pela cidade de novas maneiras.
“Eles realmente tiveram que se esforçar para encontrar aqueles lugarzinhos especiais que poderíamos filmar. Ver alguns desses últimos traços do passado”, ele parou, abrindo um sorriso enquanto relembrava as filmagens em instituições antigas como Musso & Frank Grill, no Hollywood Boulevard. “Foi mágico”.
O showrunner Michael Begler repetiu os comentários de Rhys sobre a diligência da equipe de produção, afirmando que seu compromisso em entender a complexa história de LA não era superficial, como evidenciado pelas consultas a um grupo de historiadores da Universidade da Califórnia.
“A qualquer pergunta que eu tivesse, eles respondiam: ‘Bem, você prestou atenção nisso?’ E isso me incentivava, você sabe, a fazer um mergulho profundo”, disse Begler.
Essas perguntas podiam ser sobre qualquer coisa, desde tensões de classe e segregação racial até a maneira como as pessoas falavam e os sapatos que usavam, explicou o historiador William Deverell, um dos professores que trabalhou como consultor da série.
“Los Angeles estava crescendo numa velocidade impressionante”, disse ele sobre a era da Depressão em que a série se passa. “Os grandes detalhes só fazem sentido dentro de um lugar que meio que explodiu na perspectiva internacional em um período muito, muito curto de tempo”.
Mas, além desses grandes detalhes, Deverell disse que ele e os outros historiadores também se concentraram em detalhes granulares sobre como era a vida na Los Angeles da época, já que muitos de seus moradores acabaram relegados a guetos como resultado da mudança na economia da cidade.
“As pessoas estavam entusiasmadas por viver aqui, mas também tentando entender o lugar. Então esse caos exacerbou todos os tipos de tensões de raça e classe”, disse Deverell.
Um aspecto da Los Angeles dos anos 1930 que ele queria garantir que fosse retratado com precisão era sua complexa paisagem racial, particularmente no que se referia às comunidades negras - nesta reimaginação de Perry Mason, Paul Drake é um policial negro da LAPD que se tornou investigador particular, interpretado por Chris Chalk - e o afluxo de migrantes como resultado da Revolução Mexicana.,
A segunda temporada gira em torno do assassinato de um herdeiro do petróleo -emblemático de quem compunha a elite econômica da cidade na década de 1930 - e os dois irmãos de ascendência mexicana acusados do crime. O promotor e a imprensa chamam os irmãos de “selvagens” e se valem do “nós contra eles” e de outras retóricas racialmente codificadas para pintar os jovens nascidos no sul da Califórnia como “outros”.
“Aqui. Sempre fomos daqui”, diz o irmão mais novo, Rafael, a Mason em uma conversa na prisão.
No episódio cinco, os irmãos revelam sua conexão pessoal com a vítima, Brooks McCutcheon, quando contam a trágica história da morte de sua irmã quando a família fora forçada a deixar sua casa para que McCutcheon pudesse construir um estádio no local. A história é mais ou menos baseada nos despejos de Chavez Ravine, que ocorreram na década de 1950 para abrir caminho para o que viria a se tornar o Dodger Stadium.
“As restrições raciais aumentaram nos bairros mais caros. Então, os bairros ao redor do rio neste período eram notavelmente diversos”, explicou Deverell. “É uma história rica e complicada que corre o risco de cair na caricatura. E acho que eles evitaram isso”.
Quando contadas corretamente, diz Rhys, essas histórias complicadas resultam em TV de boa qualidade.
“Foi uma das únicas cidades dos Estados Unidos com esse enorme influxo de riqueza por causa de Hollywood, mas também com os enormes problemas da Depressão”, disse ele. “Esse pano de fundo ajudou a criar qualquer tipo de história, especialmente na segunda temporada, que é exatamente sobre isso: sobre quem têm e quem não têm”.
Mas o papel da Cidade dos Anjos em Perry Mason pode ser atribuído a mais do que apenas sua paisagem propícia para uma narrativa interessante, visto que o gênero noir americano se tornou quase inseparável de seu cenário mais frequente.
Isso ficou claro para Begler, que se considerava um “analfabeto em noir” antes de assinar como showrunner para a segunda temporada. Ele tentou aprender o máximo que pôde e comparou sua jornada à de Mason, que começa a série como um detetive particular e se torna um advogado em questão de dias, graças a circunstâncias desesperadoras e tramas não muito lícitas de Della Street (interpretada por Juliet Rylance, com uma versão atualizada e ambiciosa).
“Vivi o que Perry viveu nesta temporada, que é a síndrome do impostor”, lembrou Begler sobre sua inexperiência com o gênero. “Tentei mergulhar de verdade. E, para ser honesto, acho que assisti a uns cem filmes noir desde então e agora simplesmente adoro o gênero”. /TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU