Antes de discutirmos o final de Better Call Saul, a série exige uma pergunta: como definir esse cara? Quem é ele, realmente?
O título parece nos dar a resposta. A série reintroduz Saul Goodman (Bob Odenkirk), que conhecemos na 2ª temporada de Breaking Bad como o advogado desprezível do professor de química que virou traficante de drogas, Walter White.
Mas em Saul, nós o conhecemos como Jimmy McGill, o nome sob o qual ele nasceu, praticou trambiques e começou a atuar como advogado, e como Gene Takavic, o pseudônimo sob o qual ele se esconde e administra um Cinnabon em Nebraska após a operação com metanfetaminas de Walt desmoronar.
Jimmy está com fome e na luta; Saul é presunçoso e exibido; Gene, castigado e amargo. Cada um tem um pouco dos outros em si. Em sua temporada final, Better Call Saul saltou no tempo, embaralhando essas identidades como em uma brincadeira de esconde-esconde. Onde está cada um deles?
Na noite de segunda-feira, 15, a série deu sua resposta, em um final discretamente potente que envolveu os temas que permitiram à série - principalmente - evitar o destino de uma sequência supérflua. Se Breaking Bad traçou o curso de um homem da idiotice à vilania, Better Call Saul perguntou, de forma mais ampla: como nos tornamos quem somos? Nós temos alguma escolha? E o que é preciso para se tornar uma nova pessoa?
O Jimmy que conhecemos na estreia de Better Call Saul - ambientada em 2002, seis anos antes dos eventos de Breaking Bad - é um defensor público infeliz que sonha em imitar seu irmão mais velho, Chuck (Michael McKean), um respeitado advogado no Novo México. O sócio de Chuck, Howard Hamlin (Patrick Fabian), rejeita os esforços de Jimmy para ingressar na firma, enquanto Chuck oferece a Jimmy o conselho bem-intencionado, mas condescendente, para se esforçar, conhecer suas limitações e ser paciente.
A paciência não está no conjunto de habilidades de Jimmy, alguém que vivia fingindo cair pra dar golpes mas que tem o dom da lábia. Seu motor não esquenta lentamente e funciona muito bem; já começa em alta rotação e solta faíscas. Por que, ele se pergunta, ele deveria ser rebaixado por seus talentos? Por que o decoro deveria manter o motor de sua boca em primeira marcha?
Ele encontra uma aliada, e por fim uma esposa, em Kim Wexler (Rhea Seehorn, em uma dasmelhores performances da TV), uma advogada da firma de Howard e Chuck. Ela é seu ponto de equilíbrio e sua cúmplice, uma pessoa mais fria que compartilha o dom de Jimmy para os golpes.
Mas Jimmy não consegue manter sua arte para os golpes como um hobby. Isso o consome; torna-se ele mesmo. Ele desencadeia um esquema de vingança que leva Chuck ao suicídio. Ele adota sua marca comercial - sem problemas, cara - e constrói uma base de clientes com traficantes de drogas. Com a ajuda de Kim, ele organiza um plano para arruinar a reputação de Howard que inadvertidamente leva, no final da temporada deste ano, ao assassinato de Howard por um dos clientes gângsteres de Saul.
O choque do assassinato termina com seu casamento com Kim; a culpa atrapalha a carreira jurídica dela. O incidente também inicia o final da metade mais fraca da série, um thriller do mundo das drogas que recria as façanhas narco-noir encharcadas de sangue que os fãs de Walter White esperavam.
Com a seção Breaking Bad 2: Breaking Badder da história finalizada, os criadores, Vince Gilligan e Peter Gould, concentraram-se em seus personagens centrais na temporada final. Apesar do reaparecimento em flashbacks de Bryan Cranston como White e Aaron Paul como seu companheiro, Jesse Pinkman, a última metade da temporada é menos uma tentativa de reprisar Breaking Bad e mais uma conversa produtiva com ela - talvez até uma discussão amigável.
Breaking Bad é uma série intensamente moral sem ilusões sobre a depravação de Walter. Mas também está intoxicada com seu gênio criminoso. Walter, com problemas financeiros e um câncer de pulmão, encontra virilidade e propósito em seus atos hediondos. Ele toca o terror e vira um cara durão.
Em Better Call Saul, o crime é algo principalmente triste, ainda mais quando a série chega ao fim. Os episódios finais retornam a Gene em seu exílio em Nebraska, filmados em preto e branco com o personagem parecendo um Walter White apagado, até no bigode.
Como Saul diz sobre Walter, em um flashback do final da temporada: “Um cara com esse bigode provavelmente não faz muitas escolhas boas na vida”. Agora ele parece estar provando seu próprio argumento. Para reabastecer seu pé de meia, e talvez sua autoestima, Gene recruta um motorista de táxi para roubar uma loja de departamentos e depois ajudá-lo a roubar uma série de alvos ricos, terminando com um paciente com câncer.
É uma versão triste do massacre final que deixou Walter com uma pilha de dinheiro do tamanho de um colchão king. Termina vergonhosamente, com Gene identificado pela mulher idosa (Carol Burnett) a quem ele enganou inicialmente. Nem foi tão difícil, ela diz a ele: "Eu digitei 'vigarista' e 'Albuquerque'." O homem que escapou da lei e sobreviveu ao cartel é derrubado por Eunice Higgins.
Ao longo de uma década e meia, o universo de Breaking Bad desenvolveu muito espaço narrativo. A temporada final de Saul continua encontrando pequenos bolsões de história para revisitar, reencenando o primeiro encontro de Saul com Walter e fazendo Kim conhecer Jesse durante a linha do tempo de Breaking Bad, em um momento crucial na vida de ambos.
O episódio final, da mesma forma, tem seu tema e estrutura em três flashbacks com personagens agora mortos - Mike, Walter e Chuck - cada um dos quais envolve a ideia de voltar e mudar o rumo de uma vida. Mike diz a ele que voltaria ao dia em que recebeu seu primeiro suborno como policial e sua vida saiu dos trilhos. Então, ele diz, ele iria para o futuro: “Há algumas pessoas que eu gostaria de visitar”.
Mike está descrevendo Better Call Saul em si. Tanto como prequência quanto sequência, é uma máquina do tempo que retrocede para descobrir como um homem errou e avança para ver onde ele termina. E como muitas histórias de viagem no tempo de ficção científica, ela explora quanto do nosso destino está sob nosso controle. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES