Quando foi anunciada em 2017, a primeira temporada de Dark enfrentou comparação semelhante à série Game Of Thrones com a trilogia de O Senhor dos Anéis. Duas narrativas épicas, Westeros e Terra-Média pareciam saídas do mesmo lugar. Doce ilusão.
No primeiro episódio de Dark, um garoto desaparecido inaugura uma trama de mistério por mundos alternativos. E logo se fez a injustiça: um novo Stranger Things, disseram.
Ao fim da terceira temporada de Dark, que estreou neste mês na Netflix, ainda é difícil explicar seu enredo.
Tanta originalidade fizeram de Dark a Melhor Série da Netfix, segundo os 2,5 milhões de votos no site Rotten Tomatoes. A série alemã desbancou sucessos como Black Mirror, Stranger Things e Peaky Blinder, consideradas as mais populares na plataforma norte-americana de crítica cinematográfica.
Pela internet, é possível encontrar diagramas que ilustram toda a complexa linhagem e seu passeio pelo espaço-tempo na pequena cidade de Winden. Mecânica Quântica, paradoxos temporais, Freud, Nietzsche e a Bíblia Sagrada. Tudo serviu para o Gran Finale que rondou Dark desde seu início.
Assuntos que fazem parte de uma fascinação pelo pensamento, desenvolvimento científico e um pouco de imaginação também, vistos no cinema e na literatura.
Em A Máquina do Tempo, de H.G. Wells, por exemplo, o primeiro capítulo do livro traz uma descrição apaixonada - e um tanto confusa, sobre um dispositivo capaz de atravessar o tempo.
Impossível não citar O Fim da Eternidade, de Isaac Asimov, talvez mais próximo da última temporada de Dark, que narrar a vida de um funcionário cujo trabalho é embarcar e desembarcar em diferentes eras para realizar pequeno serviços, a fim de evitar grandes alterações na linha temporal.
Na literatura infanto juvenil, Philip Pullman narra em sua trilogia Fronteiras do Universo a relação de um misterioso pó que contém informações sobre os primórdios e que, portanto, seria a ponte para outras dimensões. A história ganhou adaptação na série em His Dark Materials, da HBO.
Já em Os Mundos de Crestomanci, a britânica Diana Wynne Jones imaginou um universo feito com nove mundos e, claro, nove versões de você vivendo em cada um deles.
Todas essas obras oferecem perspectivas únicas e algumas pistas para entender Dark, mas ao fim da terceira temporada, a série de Baran bo Odar e Jantje Friese ultrapassou tudo para criar um tipo de funcionamento original e complexo.
Em resumo - e sem spoilers, a primeira temporada abre com o desaparecimento de crianças, na pequena cidade fictícia de Winden, na Alemanha, por volta de 2017. O caso mobiliza as famílias da região e antes que um drama familiar tome conta, Dark trata de inserir sua obsessão pelo tempo.
Com seu ritmo lento, roteiro repleto de frases filosóficas, a segunda temporada acontece em 2019, centrada nos personagens Jonas, Mikkel e Ulrich, e o impacto de suas descobertas. Tudo em constantes passagens por décadas, inúmeros atores e atrizes. Aqui, o passado, o presente e o futuro não bastam para explicar tudo.
Agora, a terceira temporada prometeu entregar o fim (ou seria o começo?) de todo o emaranhado criado anteriormente. Desde a estreia de Dark, a produção já havia afirmado que seriam apenas três temporadas. Sem choradeira e falsas promessas.
Para muitos, a notícia foi um alívio, e um ato corajoso da produção. Não é raro no streaming, que muitas produções estiquem suas narrativas (Alô, Stranger Things), ou mesmo o cancelamento súbito, por conta do apelo (Adeus, Sense8). No cinema, nem sempre o público mordeu a isca, quando diretores dividiram adaptações de livros, ou de filmes de super-heróis.
Em geral, esticar uma narrativa é tarefa bem executada pelos games. O que dizer de Mortal Kombat, lançado pela primeira vez em 1992 e com promessa de mais uma sequência, após o sucesso de MK 11, de 2019? Ou, entre franquias mais modernas, Assassin's Creed, que multiplicou seu mundo ao narrar sagas em diferentes civilizações, como os egípcios, romanos, piratas. Seu próximo lançamento, ainda em 2020, será inspirado nos vikings. Como sempre, muito aguardado.
Ainda nos assuntos que inspiram Dark, a presença de mitos religiosos, Adão e Eva, vão contrapor a barulheira científica. O que a história do primeiro homem e da primeira mulher tem a ver com o presente e o futuro? Após apresentar as primeiras lacunas da história, a última temporada de Dark vai jogar luz nos bastidores. Quem estava por trás de cada acontecimento, quando, onde e a razão de suas decisões.
Ao sugerir que o destino é implacável, a série permite um roteiro rebelde, capaz de surpreender não apenas pela confusão de rostos, mas em como uma história familiar pode ser trágica e altamente contemporânea.
Questões como aborto, traição, homossexualidade e suicídio surgem na trama como segredos na pequena cidade.
Apesar do apelo de ficção científica, Dark dá espaço para a dor “mais humana” de seus personagens, como quando Katharina descobre que seu marido a trai. O mesmo para a notícia de suicídio que move a primeira temporada, a dor de ter um filho desaparecido, e até contornos de tragédia grega na relação de Jonas e Martha.
Uma teatralidade rara, pouco vista na tela, é resultado do jogo de interpretação do elenco. Na última temporada, as diferentes versões das personagens se multiplicam. De certa forma, um alento para quem viu os milhares de rostos da segunda temporada e já não conseguia memorizar todo mundo.
Ainda há espaço em Dark para criticar a ação do homem na natureza e o preço que será pago pela negligência dos diretores da usina nuclear de Winden.
Na última temporada, há uma cena que inclui um noticiário sobre Chernobyl e o público verá o conhecido buraco na floresta em situação inóspita, sem qualquer sinal de civilização.
O que não se esperava na terceira temporada, é que surgirá uma grande batalha, com lados bem definidos e a simetria ajuda muito a entender a narrativa. As motivações são várias, não apenas para tentar salvar o mundo, mas para desfazer os nós criados.
Em resumo, a velha busca de controlar o tempo, os dias, os anos, os séculos. E pensar que tudo começou nos ponteiros do relógio. Ou antes, no Fruto Proibido.