Não é de hoje a predileção de Hollywood por remakes. Afinal, é mais fácil apelar para o sentimento de nostalgia do público e refazer obras antigas não conectadas com as gerações atuais ao invés de criar algo fundamentalmente novo.
Acima de Qualquer Suspeita, novo lançamento no streaming Apple TV+, é mais um caso nessa linha. A minissérie estrelada por Jake Gyllenhaal é uma adaptação do filme homônimo de 1990 com Harrison Ford no papel principal. O longa, por sua vez, foi inspirado no romance best-seller do autor americano Scott Turow, publicado em 1987.
O problema é simples: trata-se de um remake pelo qual ninguém clamava. O longa-metragem dirigido por Alan J. Pakula está longe de ser uma obra-prima, mas cumpre suas finalidades com destreza graças ao roteiro afiado capaz de extrair o que há de melhor no livro de Turow: um suspense jurídico de primeira qualidade.
A trama ficcional gira em torno de Rusty Sabitch, promotor público de Chicago (EUA) e pai de família acusado pelo assassinato brutal de uma colega com quem ele cultivava um obsessivo romance extraconjugal.
O Estadão teve acesso antecipado a sete dos oito episódios da minissérie desenvolvida por David E. Kelley, produtor e roteirista sensação da televisão americana, que nesse ano também já emplacou a ótima Um Homem por Inteiro, da Netflix.
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Embora Kelley seja um profissional habilidoso para fisgar o telespectador nos momentos cruciais e tenha familiaridade com dramas de tribunal – The Undoing (2020), Goliath (2015) e L.A. Law (1986) são prova disso –, ele também já errou feio em trabalhos pós o hit Big Little Lies (2017), como Nove Desconhecidos (2021), The Calling (2022) e agora com Acima de Qualquer Suspeita.
Os defeitos da produção da Apple TV+ residem principalmente na falta de ousadia e criatividade da minissérie, nada acrescentando ao gênero. Pior: carece de alma e não evoca qualquer empatia do público junto ao seu protagonista, terrivelmente encarnado por Jake Gyllenhaal – ator tão competente em filmes como Donnie Darko (2001), O Segredo de Brokeback Mountain (2005) e Zodíaco (2007). Incapaz de acertar um papel desde O Abutre (2014), ele pisa com o pé esquerdo na sua estreia na televisão.
Em nenhum momento da história nos importamos se Rusty vai ou não para a cadeia, aspecto indicativo dos problemas de direção/roteiro, resultando na performance unidimensional e tristonha concebida por Gyllenhaal, em nada similar aos traços misteriosos compostos por Harrison Ford, apropriados à complexidade do personagem criado por Turow.
Por outro lado, o elenco de apoio é excelente. Até pelo tempo maior de gravação, os personagens vividos por Ruth Negga (Loving: Uma História de Amor, Agentes da S.H.I.E.L.D.), Bill Camp (O Gambito da Rainha, O Som da Liberdade) e Peter Sarsgaard (Batman, Dopesick) têm espaço de sobra para brilhar. A norueguesa Renate Reinsve (A Pior Pessoa do Mundo), no entanto, é subaproveitada no papel da vítima Carolyn Polhemus em flashbacks de cenas inconclusivas (ou de sexo), encaixados de maneira estratégica para enganar o telespectador.
Thriller sem ousadia e com clichês de sobra
A falta de criatividade é gritante até mesmo na fotografia lavada, clara tentativa de imitar o clima sombrio de triunfos da HBO como The Night Of (2016), Perry Mason (2020) e Mare of Easttown (2021).
Em termos de narrativa, há quem defenda a manutenção de textos consagrados da literatura sem grandes alterações. Isso é verdade, em partes, mas basta ver como Steven Zaillian revitalizou O Talentoso Ripley, livro icônico de 1955 cuja abordagem totalmente original da Netflix, em Ripley (2024), pouco alterou o enredo da escritora Patricia Highsmith e se distinguiu de qualquer adaptação já feita sobre o forasteiro camaleônico.
Em suma, Acima de Qualquer Suspeita é o tipo de minissérie a qual você assiste e esquece na semana seguinte. Além disso, prova como Hollywood está afundada em uma crise criativa, atirando para todos os lados e apelando para remakes desnecessários.
Aos viciados em thrillers jurídicos alheios ao filme original, contudo, os clichês dos capítulos finais podem ser recompensadores, por serem balizados pelo julgamento do caso diante do júri, naquele circo dramático que os norte-americanos sabem fazer muito bem.