Era uma vez um país na Europa Central onde morava não uma bela princesa, mas uma bela ditadora. O Regime, que estreia neste domingo, 3, na HBO e Max, satiriza as entranhas do poder com Kate Winslet no papel da líder autoritária desse local fictício. Os seis episódios, dirigidos por Stephen Frears (A Rainha) e Jessica Hobbs (The Crown), serão lançados semanalmente, aos domingos.
Leia Também:
A minissérie criada por Will Tracy, um dos roteiristas e produtores de Succession e do filme O Menu (2022), é mais uma parceria bem-sucedida da atriz inglesa com a HBO, depois de Mildred Pierce (2011) e Mare of Easttown (2021) – Winslet venceu o Emmy de melhor atriz de minissérie, antologia ou filme para TV por ambas.
A chanceler Elena Vernham, no entanto, não tem nada a ver com Mildred e Mare. Ela é uma personagem absurda, como líderes autoritários costumam ser. Por exemplo, mantém o cadáver embalsamado do pai, um político não muito bem-sucedido, em um mausoléu no porão do palácio. É ao pai que ela precisa se provar, e é ele seu confessor.
“Eu quis fazer essa série porque Elena é complicadíssima. Nunca tinha cruzado com uma personagem assim na minha vida, nunca interpretei alguém assim antes”, disse Winslet em entrevista ao Estadão, por videoconferência.
Entre as muitas peculiaridades de Elena, está o pavor de mofo – não raro, ditadores têm uma paranoia com sua saúde. Por isso, ela recruta o soldado Herbert Zubak (Matthias Schoenaerts), conhecido como O Açougueiro depois de participar do massacre de manifestantes, para medir a umidade do ar, andando a poucos metros de distância da ditadora.
Quando Zubak impede um intruso de atacar Elena, conquista sua confiança. E ela vê no soldado, um sujeito claramente perturbado, uma conexão com setores mais populares – como “mãe” da pátria, ela não pode descuidar dos seus súditos.
Elena é casada com o complacente Nicholas (Guillaume Gallienne) e está cercada de pessoas que só lhe dizem “sim”. Mesmo quem percebe a loucura, especialmente quando a relação da chanceler com Zubak torna-se mais complexa, não tem coragem ou não pode lhe dizer nada.
Caso da governanta Agnes (Andrea Riseborough, indicada ao Oscar por A Sorte Grande, de 2022), que cuida de tudo no palácio e é a verdadeira mãe do filho de Elena, tratado pela líder como um animal de estimação, um projeto.
O resultado é um poder desmedido cada vez mais delirante, impulsionado por um desejo de ser amada, uma vontade expansionista, obrigação de se provar ao pai já morto e muita insegurança e incapacidade de viver suas emoções. As coisas degringolam rapidamente, fazendo Elena a tomar decisões cada vez mais drásticas.
“O que acontece é tão absurdo que eu pude me separar dela totalmente. Mas interpretá-la me deixou nervosa e ansiosa, porque ela segura muita emoção e é dominada pelo medo o tempo inteiro”, disse Winslet.
Interesse antigo
O criador de O Regime pesquisa autoritarismo e totalitarismo há muito tempo, coisa de 15 ou 20 anos. Para ele, trata-se, curiosamente, de um conforto. “Porque eu tomo consciência de que minha vida pode ser dura às vezes, mas não é nada comparado à vida de pessoas vivendo sob regimes autoritários”, disse ele. “E é como se servisse de preparação para o pior.”
Mesmo tendo estudado regimes diversos, do passado e do presente, incluindo Romênia, Coreia do Norte, Rússia e os próprios Estados Unidos, seu país, sua ideia não era recriar algo específico. “Não queria que o espectador assistisse e pensasse se tratar de uma versão de determinado lugar. Queria um país novo, com sua história, cultura, economia, problemas.”
Daí a escolha por esse lugar inespecífico na Europa Central, com filmagens em Viena e na Inglaterra. Para Kate Winslet, foi o ideal. “A história é completamente inventada, em um país fictício. Não se baseia em figuras políticas reais. Por isso eu e os outros atores tivemos muita liberdade para construir esses personagens para entreter o público, fazer rir”, disse ela.
Kate Winslet
A atriz sabe que muita gente vai fazer paralelos com líderes vistos por aí. “Mas essa é uma escolha do espectador. Houve diversos ditadores na história, há e haverá nas próximas décadas.” Pessoalmente, ela adoraria que houvesse mais presenças femininas – em democracias, claro. “Seria benéfico termos mais líderes mulheres”, disse ela.
Mulher no poder
Olhando o panorama mundial, porém, não há muitas presidentes e primeiras-ministras, que dirá líderes autoritárias. Will Tracy admitiu que, em princípio, por padrão, a chanceler seria, na verdade, o chanceler. “A gente sempre pensa em um homem quando imagina alguém implacavelmente ambicioso, sedento de poder. É um estereótipo”, disse.
E então ele resolveu transformar o personagem em uma mulher. Não por feminismo ou para parecer atento aos novos tempos. “Simplesmente porque, como criador, estou procurando algo novo”, contou. “Sendo uma mulher, o que acontece?”
Abriu-se ali um leque de oportunidades para o roteirista. “Elena sabe que uma mulher em sua posição é incomum. E usa seu status como líder feminina forte como uma espécie de arma”, disse Tracy. “Utiliza isso inclusive para atrair investimento e aprovação de países estrangeiros. Ela é autoritária, porém é uma mulher forte, o que parece progressista.”
“É mais fácil para as nações ocidentais passarem o pano. Ela também se vale de uma imagem maternal. Usa a maneira como se veste, que é estranhamente sexy, e se apoia nisso, com resultados grotescos às vezes”, explicou. Há uma cena em específico envolvendo uma mensagem de Natal simplesmente ridícula e imperdível.
Para Andrea Riseborough, ter uma mulher no centro torna tudo mais interessante. “É bacana ver histórias com diferentes tipos de personagens. É curioso ver uma vilã como protagonista. Isso acontece muito com personagens masculinos, é fantástico ter uma mulher na mesma posição”, comentou a atriz
Winslet disse que já não era sem tempo. “Estamos nos aproximando do ponto de simplesmente contar histórias sobre mulheres sem ter de rotulá-las.” É um alívio para quem vem lutando por isso desde seu primeiro papel de destaque, em Almas Gêmeas, de 1994.