Opinião|‘O Simpatizante’ desafia expectativas e traz a Guerra do Vietnã de volta à TV – com uma reviravolta


Série que pode ser vista na HBO e no streaming conta a história de um agente duplo leal aos vietcongues trabalhando nos Estados Unidos e fazendo de tudo para manter os norte-vietnamitas, os sul-vietnamitas e a CIA felizes

Por Lili Loofbourow

Apesar de seu estatuto de “guerra na sala de estar”, transmitida para milhares de lares americanos, são surpreendentemente poucos os programas de televisão norte-americanos sobre a Guerra no Vietnã.

Isso me ocorreu enquanto assistia a O Simpatizante, da HBO, a elegante e irônica adaptação em sete episódios feita por Park Chan-wook e Don McKellar do romance homônimo de Viet Thanh Nguyen (2015). A série surge como uma pequena correção para essa lacuna. Entre outras coisas, ela tematiza agressivamente sua recusa em mostrar, na tela, o tipo de sofrimento extremo e gráfico dessas transmissões do horário nobre, das quais muitas vezes se diz que viraram os americanos contra a guerra.

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A série narra as desventuras de um agente duplo leal aos vietcongues – chamado apenas de “o Capitão” (Hoa Xuande) – trabalhando nos Estados Unidos e fazendo de tudo para manter os norte-vietnamitas, os sul-vietnamitas e a CIA felizes. De início, sua missão era se infiltrar entre os sul-vietnamitas e levantar informações que pudessem ajudar o Norte. Ele se saiu tão bem que acabou se tornando ajudante de ordens do general encarregado da polícia secreta sul-vietnamita (Toan Le).

Ele chegou a morar na casa do general e a enganar também um agente americano chamado Claude (Robert Downey Jr.), que o recrutara ainda jovem e o treinara nas táticas de interrogatório da CIA. Quando Saigon cai e o general foge, o capitão “foge” com ele – por ordem de seu amigo de infância Man (Duy Nguyen), seu contato norte-vietnamita na contraespionagem, que quer que ele monitore as atividades do general nos Estados Unidos.

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É preciso ser muito fluente em várias ideologias – e convencer no papel de adepto convicto – para fazer tudo isso. Infelizmente, a ascensão do capitão na hierarquia e a maior parte de sua espionagem mais sofisticada acontecem fora da tela. Quando o encontramos, ele está arrasado e parece estranhamente incapaz de projetar qualquer coisa remotamente parecida com o tipo de pureza ideológica que sua profissão exige. Talvez se possa atribuir isso ao pesadelo kafkiano de ter sido preso pelo seu próprio lado. A história começa ali, pelo final, em um campo de reeducação norte-vietnamita. Em vez da recepção de herói que ele esperava, o capitão é jogado em uma cela sufocante, onde recebe a ordem de escrever a “confissão” que estrutura a série. “Comece pelo cinema”, diz um de seus captores.

O capitão não obedece. Em vez disso, escreve as seguintes linhas: “Sou um espião. Um infiltrado. Um fantasma. Um homem de duas caras. Minha maldição é ver todas as questões de ambos os lados. Era um agente comunista infiltrado no Sul”. É, quer ele entenda ou não, um pequeno ato de rebelião. Não só não começa pelo cinema: começa por ele. Em vez de uma confissão feita sob medida para a estrutura ideológica do partido, ele escreve... um livro de memórias.

Não é a primeira vez. O capitão (ficamos sabendo) já passou um ano inteiro sem conseguir apresentar um relato que provasse a seus camaradas que ele foi “reeducado” com sucesso. Em vez de apresentar um documento simples e devidamente arrependido, com todos os detalhes que seus superiores insistem que ele está suprimindo, o capitão não consegue evitar os floreios. Metalinguagem. Sentimentalidades. Ele segue apresentando aos revolucionários rascunhos melosos e cheios de reviravoltas, tão barrocos e dramáticos que um comandante supervisor – cujas intervenções editoriais apimentam a série – zomba dele por encerrar sua confissão com aquele barbarismo ocidental: um cliffhanger, um suspense para prender a atenção do leitor.

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Robert Downey Jr. em cena de 'O Simpatizante' Foto: Warner Bros. Discovery via AP

Se parece mais engraçado do que deveria, você já está entendendo algo crucial sobre O Simpatizante: para um público que espera certas coisas dos thrillers de espionagem e das histórias americanas sobre o Vietnã, o tom parece um pouco errado. Que um comunista leal e dedicado acabe sendo preso pelos próprios vietcongues parece correto e apropriado: é o tipo de tragédia vaga e anticomunista que os americanos esperam e produzem. Que a punição do capitão assuma a forma de uma série de encontros sisifianos com um editor exigente e sempre insatisfeito é hilário. E assim vai a série, com situações extremamente engraçadas sobrepostas a situações bem esquemáticas que podemos (e devemos) reconhecer como desesperadamente sérias, até mesmo terríveis. Só não é o tipo de violência que estávamos esperando.

Xuande faz um trabalho heroico ancorando esses tons conflitantes e humanizando o ninho ligeiramente esquemático de contradições que aos poucos paralisa seu personagem. O capitão, dizem-nos (talvez mais vezes do que o necessário), é um agente duplo em mais de um sentido. Meio vietnamita e meio francês, foi cruelmente rejeitado pelos mundos oriental e ocidental – mundos que ele precisa aprender a enfrentar e dominar.

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Depois da morte da mãe, seu único vínculo de verdade é com os dois melhores amigos de infância, Bon (Fred Nguyen Khan) e Man. Bon luta pelo Sul. Man luta pelo Norte. O capitão fica secretamente do lado de Man e abertamente do lado de Bon. Sua posição é, como sempre, instável e torturante. Ele é um ideólogo que precisa ceder, convencer e dissimular. Um adepto fervoroso que nunca pode professar sua fé. Preso entre o Norte e o Sul, entre o Ocidente e o Oriente, entre um amigo e outro, ele não consegue lutar. A única arma à sua disposição é uma forma castrada de diplomacia.

Em outras palavras, trata-se de um thriller de espionagem onde os traços definidores do agente duplo são que ele não se encaixa e que ele é – quando comparado aos espiões que temos no cinema, pelo menos – só às vezes competente e mais do que um pouco sem graça.

Elenco de 'O Simpatizante' conta com Hoa Xuande, Fred Nguyen Khan e Duy Nguyen Foto: Hopper Stone/Warner Bros. Discovery via AP
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O Simpatizante sinaliza desde o início que compartilha com seu protagonista a compulsão de se rebelar contra o gênero a que deveria se ater. Afinal, é uma adaptação de livro para a TV. E, ainda assim, não consegue parar de falar – ou de fazer referência – ao cinema, gênero que o romance satiriza de um jeito bastante específico (e selvagem). É claro que, na teoria, a série entende sua missão: dedica obrigatoriamente um episódio a uma paródia mordaz de Apocalypse Now e de Hearts of Darkness, o documentário sobre a produção do filme, e faz algumas observações sobre a representação asiática.

Mas, assim como seu protagonista, não consegue não demonstrar uma atração secreta pelas coisas a que deveria se opor. A série até se apresenta como um filme, começa com o reconfortante zumbido de um projetor e aquelas manchas e pontos cintilantes que vemos nos filmes dos anos 70. “Comece com o cinema” talvez seja o mantra da série (e do Capitão). Ambos espremem referências a Desejo de Matar e Emmanuelle para montar uma cena de interrogatório que acontece numa sala de cinema vazia – o que, é claro, propicia que todos comentem sobre a teatralidade da própria cena.

No seu melhor, a série desafia as expectativas de um jeito peculiar, caindo no anticlímax quando esperamos choque ou catarse – e vice-versa. No seu momento menos surpreendente, declara a intenção explícita de reenquadrar as coisas: “Nos Estados Unidos, o nome é Guerra do Vietnã. No Vietnã, é Guerra Americana”, lê-se no texto de abertura. É a declaração de um fato, mas traz um cheiro do tipo de mentalidade “olho por olho” que os americanos temeriam – e com razão. Ou, no mínimo, expressa uma vontade de cometer os crimes narrativos dos Estados Unidos contra o Vietnã ao contrário.

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E, de fato, a série oferece uma versão hilária disso, apresentando Robert Downey Jr. exatamente como o tipo de vilão genérico e sem profundidade que os atores asiáticos costumam interpretar nos filmes americanos. Além de Claude, o agente da CIA, ele faz um professor orientalista careca, um senador condescendente empenhado em combater o comunismo e um autor instável. Fazê-lo interpretar todos esses papéis parece uma excelente piada sobre essas linhas revanchistas.

Sandra Oh também atua 'O Simpatizantte', que pode ser vista na HBO e Max Foto: Hopper Stone/Warner Bros. Discovery via AP

Mas, nos seus melhores momentos, a série surpreende o espectador com retratos nuançados de pessoas que não esperamos ver com nuances – como o general, cujos crimes são consideráveis, mas que Le interpreta como alguém perplexo, desesperado, indeciso e deprimido. Ou Sophia Mori (Sandra Oh), uma nipo-americana que enfrenta alguns dos mesmos hibridismos do capitão com relativa serenidade. Ou o oficial sul-vietnamita que o capitão acaba assassinando para manter seu disfarce, cuja afeição amável e acessos de generosidade podem fazer você (e o capitão) se esquecer de certas atividades horríveis das quais ele participou. É claro que esse é o trocadilho no coração do título: o simpatizante comunista acaba simpatizando demais – de um jeito que humaniza seus inimigos, prioriza seus amigos e o distrai de sua missão.

Esses tons de cinza – o melhor da série – necessariamente diminuem à medida que a trama avança. Os últimos episódios são inferiores aos três primeiros (que Park Chan-wook dirigiu). Não é uma crítica. Provavelmente era inevitável que a extraordinária confiança visual e narrativa dessa série vacilasse ao tentar ajustar o esquema ideológico no qual seus personagens operam com a história maravilhosamente confusa sobre eles que ela mesma produziu.

O Simpatizante estreou em 14 de abril na HBO e estará disponível para streaming no Max, com novos episódios indo ao ar semanalmente. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Apesar de seu estatuto de “guerra na sala de estar”, transmitida para milhares de lares americanos, são surpreendentemente poucos os programas de televisão norte-americanos sobre a Guerra no Vietnã.

Isso me ocorreu enquanto assistia a O Simpatizante, da HBO, a elegante e irônica adaptação em sete episódios feita por Park Chan-wook e Don McKellar do romance homônimo de Viet Thanh Nguyen (2015). A série surge como uma pequena correção para essa lacuna. Entre outras coisas, ela tematiza agressivamente sua recusa em mostrar, na tela, o tipo de sofrimento extremo e gráfico dessas transmissões do horário nobre, das quais muitas vezes se diz que viraram os americanos contra a guerra.

A série narra as desventuras de um agente duplo leal aos vietcongues – chamado apenas de “o Capitão” (Hoa Xuande) – trabalhando nos Estados Unidos e fazendo de tudo para manter os norte-vietnamitas, os sul-vietnamitas e a CIA felizes. De início, sua missão era se infiltrar entre os sul-vietnamitas e levantar informações que pudessem ajudar o Norte. Ele se saiu tão bem que acabou se tornando ajudante de ordens do general encarregado da polícia secreta sul-vietnamita (Toan Le).

Ele chegou a morar na casa do general e a enganar também um agente americano chamado Claude (Robert Downey Jr.), que o recrutara ainda jovem e o treinara nas táticas de interrogatório da CIA. Quando Saigon cai e o general foge, o capitão “foge” com ele – por ordem de seu amigo de infância Man (Duy Nguyen), seu contato norte-vietnamita na contraespionagem, que quer que ele monitore as atividades do general nos Estados Unidos.

É preciso ser muito fluente em várias ideologias – e convencer no papel de adepto convicto – para fazer tudo isso. Infelizmente, a ascensão do capitão na hierarquia e a maior parte de sua espionagem mais sofisticada acontecem fora da tela. Quando o encontramos, ele está arrasado e parece estranhamente incapaz de projetar qualquer coisa remotamente parecida com o tipo de pureza ideológica que sua profissão exige. Talvez se possa atribuir isso ao pesadelo kafkiano de ter sido preso pelo seu próprio lado. A história começa ali, pelo final, em um campo de reeducação norte-vietnamita. Em vez da recepção de herói que ele esperava, o capitão é jogado em uma cela sufocante, onde recebe a ordem de escrever a “confissão” que estrutura a série. “Comece pelo cinema”, diz um de seus captores.

O capitão não obedece. Em vez disso, escreve as seguintes linhas: “Sou um espião. Um infiltrado. Um fantasma. Um homem de duas caras. Minha maldição é ver todas as questões de ambos os lados. Era um agente comunista infiltrado no Sul”. É, quer ele entenda ou não, um pequeno ato de rebelião. Não só não começa pelo cinema: começa por ele. Em vez de uma confissão feita sob medida para a estrutura ideológica do partido, ele escreve... um livro de memórias.

Não é a primeira vez. O capitão (ficamos sabendo) já passou um ano inteiro sem conseguir apresentar um relato que provasse a seus camaradas que ele foi “reeducado” com sucesso. Em vez de apresentar um documento simples e devidamente arrependido, com todos os detalhes que seus superiores insistem que ele está suprimindo, o capitão não consegue evitar os floreios. Metalinguagem. Sentimentalidades. Ele segue apresentando aos revolucionários rascunhos melosos e cheios de reviravoltas, tão barrocos e dramáticos que um comandante supervisor – cujas intervenções editoriais apimentam a série – zomba dele por encerrar sua confissão com aquele barbarismo ocidental: um cliffhanger, um suspense para prender a atenção do leitor.

Robert Downey Jr. em cena de 'O Simpatizante' Foto: Warner Bros. Discovery via AP

Se parece mais engraçado do que deveria, você já está entendendo algo crucial sobre O Simpatizante: para um público que espera certas coisas dos thrillers de espionagem e das histórias americanas sobre o Vietnã, o tom parece um pouco errado. Que um comunista leal e dedicado acabe sendo preso pelos próprios vietcongues parece correto e apropriado: é o tipo de tragédia vaga e anticomunista que os americanos esperam e produzem. Que a punição do capitão assuma a forma de uma série de encontros sisifianos com um editor exigente e sempre insatisfeito é hilário. E assim vai a série, com situações extremamente engraçadas sobrepostas a situações bem esquemáticas que podemos (e devemos) reconhecer como desesperadamente sérias, até mesmo terríveis. Só não é o tipo de violência que estávamos esperando.

Xuande faz um trabalho heroico ancorando esses tons conflitantes e humanizando o ninho ligeiramente esquemático de contradições que aos poucos paralisa seu personagem. O capitão, dizem-nos (talvez mais vezes do que o necessário), é um agente duplo em mais de um sentido. Meio vietnamita e meio francês, foi cruelmente rejeitado pelos mundos oriental e ocidental – mundos que ele precisa aprender a enfrentar e dominar.

Depois da morte da mãe, seu único vínculo de verdade é com os dois melhores amigos de infância, Bon (Fred Nguyen Khan) e Man. Bon luta pelo Sul. Man luta pelo Norte. O capitão fica secretamente do lado de Man e abertamente do lado de Bon. Sua posição é, como sempre, instável e torturante. Ele é um ideólogo que precisa ceder, convencer e dissimular. Um adepto fervoroso que nunca pode professar sua fé. Preso entre o Norte e o Sul, entre o Ocidente e o Oriente, entre um amigo e outro, ele não consegue lutar. A única arma à sua disposição é uma forma castrada de diplomacia.

Em outras palavras, trata-se de um thriller de espionagem onde os traços definidores do agente duplo são que ele não se encaixa e que ele é – quando comparado aos espiões que temos no cinema, pelo menos – só às vezes competente e mais do que um pouco sem graça.

Elenco de 'O Simpatizante' conta com Hoa Xuande, Fred Nguyen Khan e Duy Nguyen Foto: Hopper Stone/Warner Bros. Discovery via AP

O Simpatizante sinaliza desde o início que compartilha com seu protagonista a compulsão de se rebelar contra o gênero a que deveria se ater. Afinal, é uma adaptação de livro para a TV. E, ainda assim, não consegue parar de falar – ou de fazer referência – ao cinema, gênero que o romance satiriza de um jeito bastante específico (e selvagem). É claro que, na teoria, a série entende sua missão: dedica obrigatoriamente um episódio a uma paródia mordaz de Apocalypse Now e de Hearts of Darkness, o documentário sobre a produção do filme, e faz algumas observações sobre a representação asiática.

Mas, assim como seu protagonista, não consegue não demonstrar uma atração secreta pelas coisas a que deveria se opor. A série até se apresenta como um filme, começa com o reconfortante zumbido de um projetor e aquelas manchas e pontos cintilantes que vemos nos filmes dos anos 70. “Comece com o cinema” talvez seja o mantra da série (e do Capitão). Ambos espremem referências a Desejo de Matar e Emmanuelle para montar uma cena de interrogatório que acontece numa sala de cinema vazia – o que, é claro, propicia que todos comentem sobre a teatralidade da própria cena.

No seu melhor, a série desafia as expectativas de um jeito peculiar, caindo no anticlímax quando esperamos choque ou catarse – e vice-versa. No seu momento menos surpreendente, declara a intenção explícita de reenquadrar as coisas: “Nos Estados Unidos, o nome é Guerra do Vietnã. No Vietnã, é Guerra Americana”, lê-se no texto de abertura. É a declaração de um fato, mas traz um cheiro do tipo de mentalidade “olho por olho” que os americanos temeriam – e com razão. Ou, no mínimo, expressa uma vontade de cometer os crimes narrativos dos Estados Unidos contra o Vietnã ao contrário.

E, de fato, a série oferece uma versão hilária disso, apresentando Robert Downey Jr. exatamente como o tipo de vilão genérico e sem profundidade que os atores asiáticos costumam interpretar nos filmes americanos. Além de Claude, o agente da CIA, ele faz um professor orientalista careca, um senador condescendente empenhado em combater o comunismo e um autor instável. Fazê-lo interpretar todos esses papéis parece uma excelente piada sobre essas linhas revanchistas.

Sandra Oh também atua 'O Simpatizantte', que pode ser vista na HBO e Max Foto: Hopper Stone/Warner Bros. Discovery via AP

Mas, nos seus melhores momentos, a série surpreende o espectador com retratos nuançados de pessoas que não esperamos ver com nuances – como o general, cujos crimes são consideráveis, mas que Le interpreta como alguém perplexo, desesperado, indeciso e deprimido. Ou Sophia Mori (Sandra Oh), uma nipo-americana que enfrenta alguns dos mesmos hibridismos do capitão com relativa serenidade. Ou o oficial sul-vietnamita que o capitão acaba assassinando para manter seu disfarce, cuja afeição amável e acessos de generosidade podem fazer você (e o capitão) se esquecer de certas atividades horríveis das quais ele participou. É claro que esse é o trocadilho no coração do título: o simpatizante comunista acaba simpatizando demais – de um jeito que humaniza seus inimigos, prioriza seus amigos e o distrai de sua missão.

Esses tons de cinza – o melhor da série – necessariamente diminuem à medida que a trama avança. Os últimos episódios são inferiores aos três primeiros (que Park Chan-wook dirigiu). Não é uma crítica. Provavelmente era inevitável que a extraordinária confiança visual e narrativa dessa série vacilasse ao tentar ajustar o esquema ideológico no qual seus personagens operam com a história maravilhosamente confusa sobre eles que ela mesma produziu.

O Simpatizante estreou em 14 de abril na HBO e estará disponível para streaming no Max, com novos episódios indo ao ar semanalmente. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Apesar de seu estatuto de “guerra na sala de estar”, transmitida para milhares de lares americanos, são surpreendentemente poucos os programas de televisão norte-americanos sobre a Guerra no Vietnã.

Isso me ocorreu enquanto assistia a O Simpatizante, da HBO, a elegante e irônica adaptação em sete episódios feita por Park Chan-wook e Don McKellar do romance homônimo de Viet Thanh Nguyen (2015). A série surge como uma pequena correção para essa lacuna. Entre outras coisas, ela tematiza agressivamente sua recusa em mostrar, na tela, o tipo de sofrimento extremo e gráfico dessas transmissões do horário nobre, das quais muitas vezes se diz que viraram os americanos contra a guerra.

A série narra as desventuras de um agente duplo leal aos vietcongues – chamado apenas de “o Capitão” (Hoa Xuande) – trabalhando nos Estados Unidos e fazendo de tudo para manter os norte-vietnamitas, os sul-vietnamitas e a CIA felizes. De início, sua missão era se infiltrar entre os sul-vietnamitas e levantar informações que pudessem ajudar o Norte. Ele se saiu tão bem que acabou se tornando ajudante de ordens do general encarregado da polícia secreta sul-vietnamita (Toan Le).

Ele chegou a morar na casa do general e a enganar também um agente americano chamado Claude (Robert Downey Jr.), que o recrutara ainda jovem e o treinara nas táticas de interrogatório da CIA. Quando Saigon cai e o general foge, o capitão “foge” com ele – por ordem de seu amigo de infância Man (Duy Nguyen), seu contato norte-vietnamita na contraespionagem, que quer que ele monitore as atividades do general nos Estados Unidos.

É preciso ser muito fluente em várias ideologias – e convencer no papel de adepto convicto – para fazer tudo isso. Infelizmente, a ascensão do capitão na hierarquia e a maior parte de sua espionagem mais sofisticada acontecem fora da tela. Quando o encontramos, ele está arrasado e parece estranhamente incapaz de projetar qualquer coisa remotamente parecida com o tipo de pureza ideológica que sua profissão exige. Talvez se possa atribuir isso ao pesadelo kafkiano de ter sido preso pelo seu próprio lado. A história começa ali, pelo final, em um campo de reeducação norte-vietnamita. Em vez da recepção de herói que ele esperava, o capitão é jogado em uma cela sufocante, onde recebe a ordem de escrever a “confissão” que estrutura a série. “Comece pelo cinema”, diz um de seus captores.

O capitão não obedece. Em vez disso, escreve as seguintes linhas: “Sou um espião. Um infiltrado. Um fantasma. Um homem de duas caras. Minha maldição é ver todas as questões de ambos os lados. Era um agente comunista infiltrado no Sul”. É, quer ele entenda ou não, um pequeno ato de rebelião. Não só não começa pelo cinema: começa por ele. Em vez de uma confissão feita sob medida para a estrutura ideológica do partido, ele escreve... um livro de memórias.

Não é a primeira vez. O capitão (ficamos sabendo) já passou um ano inteiro sem conseguir apresentar um relato que provasse a seus camaradas que ele foi “reeducado” com sucesso. Em vez de apresentar um documento simples e devidamente arrependido, com todos os detalhes que seus superiores insistem que ele está suprimindo, o capitão não consegue evitar os floreios. Metalinguagem. Sentimentalidades. Ele segue apresentando aos revolucionários rascunhos melosos e cheios de reviravoltas, tão barrocos e dramáticos que um comandante supervisor – cujas intervenções editoriais apimentam a série – zomba dele por encerrar sua confissão com aquele barbarismo ocidental: um cliffhanger, um suspense para prender a atenção do leitor.

Robert Downey Jr. em cena de 'O Simpatizante' Foto: Warner Bros. Discovery via AP

Se parece mais engraçado do que deveria, você já está entendendo algo crucial sobre O Simpatizante: para um público que espera certas coisas dos thrillers de espionagem e das histórias americanas sobre o Vietnã, o tom parece um pouco errado. Que um comunista leal e dedicado acabe sendo preso pelos próprios vietcongues parece correto e apropriado: é o tipo de tragédia vaga e anticomunista que os americanos esperam e produzem. Que a punição do capitão assuma a forma de uma série de encontros sisifianos com um editor exigente e sempre insatisfeito é hilário. E assim vai a série, com situações extremamente engraçadas sobrepostas a situações bem esquemáticas que podemos (e devemos) reconhecer como desesperadamente sérias, até mesmo terríveis. Só não é o tipo de violência que estávamos esperando.

Xuande faz um trabalho heroico ancorando esses tons conflitantes e humanizando o ninho ligeiramente esquemático de contradições que aos poucos paralisa seu personagem. O capitão, dizem-nos (talvez mais vezes do que o necessário), é um agente duplo em mais de um sentido. Meio vietnamita e meio francês, foi cruelmente rejeitado pelos mundos oriental e ocidental – mundos que ele precisa aprender a enfrentar e dominar.

Depois da morte da mãe, seu único vínculo de verdade é com os dois melhores amigos de infância, Bon (Fred Nguyen Khan) e Man. Bon luta pelo Sul. Man luta pelo Norte. O capitão fica secretamente do lado de Man e abertamente do lado de Bon. Sua posição é, como sempre, instável e torturante. Ele é um ideólogo que precisa ceder, convencer e dissimular. Um adepto fervoroso que nunca pode professar sua fé. Preso entre o Norte e o Sul, entre o Ocidente e o Oriente, entre um amigo e outro, ele não consegue lutar. A única arma à sua disposição é uma forma castrada de diplomacia.

Em outras palavras, trata-se de um thriller de espionagem onde os traços definidores do agente duplo são que ele não se encaixa e que ele é – quando comparado aos espiões que temos no cinema, pelo menos – só às vezes competente e mais do que um pouco sem graça.

Elenco de 'O Simpatizante' conta com Hoa Xuande, Fred Nguyen Khan e Duy Nguyen Foto: Hopper Stone/Warner Bros. Discovery via AP

O Simpatizante sinaliza desde o início que compartilha com seu protagonista a compulsão de se rebelar contra o gênero a que deveria se ater. Afinal, é uma adaptação de livro para a TV. E, ainda assim, não consegue parar de falar – ou de fazer referência – ao cinema, gênero que o romance satiriza de um jeito bastante específico (e selvagem). É claro que, na teoria, a série entende sua missão: dedica obrigatoriamente um episódio a uma paródia mordaz de Apocalypse Now e de Hearts of Darkness, o documentário sobre a produção do filme, e faz algumas observações sobre a representação asiática.

Mas, assim como seu protagonista, não consegue não demonstrar uma atração secreta pelas coisas a que deveria se opor. A série até se apresenta como um filme, começa com o reconfortante zumbido de um projetor e aquelas manchas e pontos cintilantes que vemos nos filmes dos anos 70. “Comece com o cinema” talvez seja o mantra da série (e do Capitão). Ambos espremem referências a Desejo de Matar e Emmanuelle para montar uma cena de interrogatório que acontece numa sala de cinema vazia – o que, é claro, propicia que todos comentem sobre a teatralidade da própria cena.

No seu melhor, a série desafia as expectativas de um jeito peculiar, caindo no anticlímax quando esperamos choque ou catarse – e vice-versa. No seu momento menos surpreendente, declara a intenção explícita de reenquadrar as coisas: “Nos Estados Unidos, o nome é Guerra do Vietnã. No Vietnã, é Guerra Americana”, lê-se no texto de abertura. É a declaração de um fato, mas traz um cheiro do tipo de mentalidade “olho por olho” que os americanos temeriam – e com razão. Ou, no mínimo, expressa uma vontade de cometer os crimes narrativos dos Estados Unidos contra o Vietnã ao contrário.

E, de fato, a série oferece uma versão hilária disso, apresentando Robert Downey Jr. exatamente como o tipo de vilão genérico e sem profundidade que os atores asiáticos costumam interpretar nos filmes americanos. Além de Claude, o agente da CIA, ele faz um professor orientalista careca, um senador condescendente empenhado em combater o comunismo e um autor instável. Fazê-lo interpretar todos esses papéis parece uma excelente piada sobre essas linhas revanchistas.

Sandra Oh também atua 'O Simpatizantte', que pode ser vista na HBO e Max Foto: Hopper Stone/Warner Bros. Discovery via AP

Mas, nos seus melhores momentos, a série surpreende o espectador com retratos nuançados de pessoas que não esperamos ver com nuances – como o general, cujos crimes são consideráveis, mas que Le interpreta como alguém perplexo, desesperado, indeciso e deprimido. Ou Sophia Mori (Sandra Oh), uma nipo-americana que enfrenta alguns dos mesmos hibridismos do capitão com relativa serenidade. Ou o oficial sul-vietnamita que o capitão acaba assassinando para manter seu disfarce, cuja afeição amável e acessos de generosidade podem fazer você (e o capitão) se esquecer de certas atividades horríveis das quais ele participou. É claro que esse é o trocadilho no coração do título: o simpatizante comunista acaba simpatizando demais – de um jeito que humaniza seus inimigos, prioriza seus amigos e o distrai de sua missão.

Esses tons de cinza – o melhor da série – necessariamente diminuem à medida que a trama avança. Os últimos episódios são inferiores aos três primeiros (que Park Chan-wook dirigiu). Não é uma crítica. Provavelmente era inevitável que a extraordinária confiança visual e narrativa dessa série vacilasse ao tentar ajustar o esquema ideológico no qual seus personagens operam com a história maravilhosamente confusa sobre eles que ela mesma produziu.

O Simpatizante estreou em 14 de abril na HBO e estará disponível para streaming no Max, com novos episódios indo ao ar semanalmente. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Apesar de seu estatuto de “guerra na sala de estar”, transmitida para milhares de lares americanos, são surpreendentemente poucos os programas de televisão norte-americanos sobre a Guerra no Vietnã.

Isso me ocorreu enquanto assistia a O Simpatizante, da HBO, a elegante e irônica adaptação em sete episódios feita por Park Chan-wook e Don McKellar do romance homônimo de Viet Thanh Nguyen (2015). A série surge como uma pequena correção para essa lacuna. Entre outras coisas, ela tematiza agressivamente sua recusa em mostrar, na tela, o tipo de sofrimento extremo e gráfico dessas transmissões do horário nobre, das quais muitas vezes se diz que viraram os americanos contra a guerra.

A série narra as desventuras de um agente duplo leal aos vietcongues – chamado apenas de “o Capitão” (Hoa Xuande) – trabalhando nos Estados Unidos e fazendo de tudo para manter os norte-vietnamitas, os sul-vietnamitas e a CIA felizes. De início, sua missão era se infiltrar entre os sul-vietnamitas e levantar informações que pudessem ajudar o Norte. Ele se saiu tão bem que acabou se tornando ajudante de ordens do general encarregado da polícia secreta sul-vietnamita (Toan Le).

Ele chegou a morar na casa do general e a enganar também um agente americano chamado Claude (Robert Downey Jr.), que o recrutara ainda jovem e o treinara nas táticas de interrogatório da CIA. Quando Saigon cai e o general foge, o capitão “foge” com ele – por ordem de seu amigo de infância Man (Duy Nguyen), seu contato norte-vietnamita na contraespionagem, que quer que ele monitore as atividades do general nos Estados Unidos.

É preciso ser muito fluente em várias ideologias – e convencer no papel de adepto convicto – para fazer tudo isso. Infelizmente, a ascensão do capitão na hierarquia e a maior parte de sua espionagem mais sofisticada acontecem fora da tela. Quando o encontramos, ele está arrasado e parece estranhamente incapaz de projetar qualquer coisa remotamente parecida com o tipo de pureza ideológica que sua profissão exige. Talvez se possa atribuir isso ao pesadelo kafkiano de ter sido preso pelo seu próprio lado. A história começa ali, pelo final, em um campo de reeducação norte-vietnamita. Em vez da recepção de herói que ele esperava, o capitão é jogado em uma cela sufocante, onde recebe a ordem de escrever a “confissão” que estrutura a série. “Comece pelo cinema”, diz um de seus captores.

O capitão não obedece. Em vez disso, escreve as seguintes linhas: “Sou um espião. Um infiltrado. Um fantasma. Um homem de duas caras. Minha maldição é ver todas as questões de ambos os lados. Era um agente comunista infiltrado no Sul”. É, quer ele entenda ou não, um pequeno ato de rebelião. Não só não começa pelo cinema: começa por ele. Em vez de uma confissão feita sob medida para a estrutura ideológica do partido, ele escreve... um livro de memórias.

Não é a primeira vez. O capitão (ficamos sabendo) já passou um ano inteiro sem conseguir apresentar um relato que provasse a seus camaradas que ele foi “reeducado” com sucesso. Em vez de apresentar um documento simples e devidamente arrependido, com todos os detalhes que seus superiores insistem que ele está suprimindo, o capitão não consegue evitar os floreios. Metalinguagem. Sentimentalidades. Ele segue apresentando aos revolucionários rascunhos melosos e cheios de reviravoltas, tão barrocos e dramáticos que um comandante supervisor – cujas intervenções editoriais apimentam a série – zomba dele por encerrar sua confissão com aquele barbarismo ocidental: um cliffhanger, um suspense para prender a atenção do leitor.

Robert Downey Jr. em cena de 'O Simpatizante' Foto: Warner Bros. Discovery via AP

Se parece mais engraçado do que deveria, você já está entendendo algo crucial sobre O Simpatizante: para um público que espera certas coisas dos thrillers de espionagem e das histórias americanas sobre o Vietnã, o tom parece um pouco errado. Que um comunista leal e dedicado acabe sendo preso pelos próprios vietcongues parece correto e apropriado: é o tipo de tragédia vaga e anticomunista que os americanos esperam e produzem. Que a punição do capitão assuma a forma de uma série de encontros sisifianos com um editor exigente e sempre insatisfeito é hilário. E assim vai a série, com situações extremamente engraçadas sobrepostas a situações bem esquemáticas que podemos (e devemos) reconhecer como desesperadamente sérias, até mesmo terríveis. Só não é o tipo de violência que estávamos esperando.

Xuande faz um trabalho heroico ancorando esses tons conflitantes e humanizando o ninho ligeiramente esquemático de contradições que aos poucos paralisa seu personagem. O capitão, dizem-nos (talvez mais vezes do que o necessário), é um agente duplo em mais de um sentido. Meio vietnamita e meio francês, foi cruelmente rejeitado pelos mundos oriental e ocidental – mundos que ele precisa aprender a enfrentar e dominar.

Depois da morte da mãe, seu único vínculo de verdade é com os dois melhores amigos de infância, Bon (Fred Nguyen Khan) e Man. Bon luta pelo Sul. Man luta pelo Norte. O capitão fica secretamente do lado de Man e abertamente do lado de Bon. Sua posição é, como sempre, instável e torturante. Ele é um ideólogo que precisa ceder, convencer e dissimular. Um adepto fervoroso que nunca pode professar sua fé. Preso entre o Norte e o Sul, entre o Ocidente e o Oriente, entre um amigo e outro, ele não consegue lutar. A única arma à sua disposição é uma forma castrada de diplomacia.

Em outras palavras, trata-se de um thriller de espionagem onde os traços definidores do agente duplo são que ele não se encaixa e que ele é – quando comparado aos espiões que temos no cinema, pelo menos – só às vezes competente e mais do que um pouco sem graça.

Elenco de 'O Simpatizante' conta com Hoa Xuande, Fred Nguyen Khan e Duy Nguyen Foto: Hopper Stone/Warner Bros. Discovery via AP

O Simpatizante sinaliza desde o início que compartilha com seu protagonista a compulsão de se rebelar contra o gênero a que deveria se ater. Afinal, é uma adaptação de livro para a TV. E, ainda assim, não consegue parar de falar – ou de fazer referência – ao cinema, gênero que o romance satiriza de um jeito bastante específico (e selvagem). É claro que, na teoria, a série entende sua missão: dedica obrigatoriamente um episódio a uma paródia mordaz de Apocalypse Now e de Hearts of Darkness, o documentário sobre a produção do filme, e faz algumas observações sobre a representação asiática.

Mas, assim como seu protagonista, não consegue não demonstrar uma atração secreta pelas coisas a que deveria se opor. A série até se apresenta como um filme, começa com o reconfortante zumbido de um projetor e aquelas manchas e pontos cintilantes que vemos nos filmes dos anos 70. “Comece com o cinema” talvez seja o mantra da série (e do Capitão). Ambos espremem referências a Desejo de Matar e Emmanuelle para montar uma cena de interrogatório que acontece numa sala de cinema vazia – o que, é claro, propicia que todos comentem sobre a teatralidade da própria cena.

No seu melhor, a série desafia as expectativas de um jeito peculiar, caindo no anticlímax quando esperamos choque ou catarse – e vice-versa. No seu momento menos surpreendente, declara a intenção explícita de reenquadrar as coisas: “Nos Estados Unidos, o nome é Guerra do Vietnã. No Vietnã, é Guerra Americana”, lê-se no texto de abertura. É a declaração de um fato, mas traz um cheiro do tipo de mentalidade “olho por olho” que os americanos temeriam – e com razão. Ou, no mínimo, expressa uma vontade de cometer os crimes narrativos dos Estados Unidos contra o Vietnã ao contrário.

E, de fato, a série oferece uma versão hilária disso, apresentando Robert Downey Jr. exatamente como o tipo de vilão genérico e sem profundidade que os atores asiáticos costumam interpretar nos filmes americanos. Além de Claude, o agente da CIA, ele faz um professor orientalista careca, um senador condescendente empenhado em combater o comunismo e um autor instável. Fazê-lo interpretar todos esses papéis parece uma excelente piada sobre essas linhas revanchistas.

Sandra Oh também atua 'O Simpatizantte', que pode ser vista na HBO e Max Foto: Hopper Stone/Warner Bros. Discovery via AP

Mas, nos seus melhores momentos, a série surpreende o espectador com retratos nuançados de pessoas que não esperamos ver com nuances – como o general, cujos crimes são consideráveis, mas que Le interpreta como alguém perplexo, desesperado, indeciso e deprimido. Ou Sophia Mori (Sandra Oh), uma nipo-americana que enfrenta alguns dos mesmos hibridismos do capitão com relativa serenidade. Ou o oficial sul-vietnamita que o capitão acaba assassinando para manter seu disfarce, cuja afeição amável e acessos de generosidade podem fazer você (e o capitão) se esquecer de certas atividades horríveis das quais ele participou. É claro que esse é o trocadilho no coração do título: o simpatizante comunista acaba simpatizando demais – de um jeito que humaniza seus inimigos, prioriza seus amigos e o distrai de sua missão.

Esses tons de cinza – o melhor da série – necessariamente diminuem à medida que a trama avança. Os últimos episódios são inferiores aos três primeiros (que Park Chan-wook dirigiu). Não é uma crítica. Provavelmente era inevitável que a extraordinária confiança visual e narrativa dessa série vacilasse ao tentar ajustar o esquema ideológico no qual seus personagens operam com a história maravilhosamente confusa sobre eles que ela mesma produziu.

O Simpatizante estreou em 14 de abril na HBO e estará disponível para streaming no Max, com novos episódios indo ao ar semanalmente. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Apesar de seu estatuto de “guerra na sala de estar”, transmitida para milhares de lares americanos, são surpreendentemente poucos os programas de televisão norte-americanos sobre a Guerra no Vietnã.

Isso me ocorreu enquanto assistia a O Simpatizante, da HBO, a elegante e irônica adaptação em sete episódios feita por Park Chan-wook e Don McKellar do romance homônimo de Viet Thanh Nguyen (2015). A série surge como uma pequena correção para essa lacuna. Entre outras coisas, ela tematiza agressivamente sua recusa em mostrar, na tela, o tipo de sofrimento extremo e gráfico dessas transmissões do horário nobre, das quais muitas vezes se diz que viraram os americanos contra a guerra.

A série narra as desventuras de um agente duplo leal aos vietcongues – chamado apenas de “o Capitão” (Hoa Xuande) – trabalhando nos Estados Unidos e fazendo de tudo para manter os norte-vietnamitas, os sul-vietnamitas e a CIA felizes. De início, sua missão era se infiltrar entre os sul-vietnamitas e levantar informações que pudessem ajudar o Norte. Ele se saiu tão bem que acabou se tornando ajudante de ordens do general encarregado da polícia secreta sul-vietnamita (Toan Le).

Ele chegou a morar na casa do general e a enganar também um agente americano chamado Claude (Robert Downey Jr.), que o recrutara ainda jovem e o treinara nas táticas de interrogatório da CIA. Quando Saigon cai e o general foge, o capitão “foge” com ele – por ordem de seu amigo de infância Man (Duy Nguyen), seu contato norte-vietnamita na contraespionagem, que quer que ele monitore as atividades do general nos Estados Unidos.

É preciso ser muito fluente em várias ideologias – e convencer no papel de adepto convicto – para fazer tudo isso. Infelizmente, a ascensão do capitão na hierarquia e a maior parte de sua espionagem mais sofisticada acontecem fora da tela. Quando o encontramos, ele está arrasado e parece estranhamente incapaz de projetar qualquer coisa remotamente parecida com o tipo de pureza ideológica que sua profissão exige. Talvez se possa atribuir isso ao pesadelo kafkiano de ter sido preso pelo seu próprio lado. A história começa ali, pelo final, em um campo de reeducação norte-vietnamita. Em vez da recepção de herói que ele esperava, o capitão é jogado em uma cela sufocante, onde recebe a ordem de escrever a “confissão” que estrutura a série. “Comece pelo cinema”, diz um de seus captores.

O capitão não obedece. Em vez disso, escreve as seguintes linhas: “Sou um espião. Um infiltrado. Um fantasma. Um homem de duas caras. Minha maldição é ver todas as questões de ambos os lados. Era um agente comunista infiltrado no Sul”. É, quer ele entenda ou não, um pequeno ato de rebelião. Não só não começa pelo cinema: começa por ele. Em vez de uma confissão feita sob medida para a estrutura ideológica do partido, ele escreve... um livro de memórias.

Não é a primeira vez. O capitão (ficamos sabendo) já passou um ano inteiro sem conseguir apresentar um relato que provasse a seus camaradas que ele foi “reeducado” com sucesso. Em vez de apresentar um documento simples e devidamente arrependido, com todos os detalhes que seus superiores insistem que ele está suprimindo, o capitão não consegue evitar os floreios. Metalinguagem. Sentimentalidades. Ele segue apresentando aos revolucionários rascunhos melosos e cheios de reviravoltas, tão barrocos e dramáticos que um comandante supervisor – cujas intervenções editoriais apimentam a série – zomba dele por encerrar sua confissão com aquele barbarismo ocidental: um cliffhanger, um suspense para prender a atenção do leitor.

Robert Downey Jr. em cena de 'O Simpatizante' Foto: Warner Bros. Discovery via AP

Se parece mais engraçado do que deveria, você já está entendendo algo crucial sobre O Simpatizante: para um público que espera certas coisas dos thrillers de espionagem e das histórias americanas sobre o Vietnã, o tom parece um pouco errado. Que um comunista leal e dedicado acabe sendo preso pelos próprios vietcongues parece correto e apropriado: é o tipo de tragédia vaga e anticomunista que os americanos esperam e produzem. Que a punição do capitão assuma a forma de uma série de encontros sisifianos com um editor exigente e sempre insatisfeito é hilário. E assim vai a série, com situações extremamente engraçadas sobrepostas a situações bem esquemáticas que podemos (e devemos) reconhecer como desesperadamente sérias, até mesmo terríveis. Só não é o tipo de violência que estávamos esperando.

Xuande faz um trabalho heroico ancorando esses tons conflitantes e humanizando o ninho ligeiramente esquemático de contradições que aos poucos paralisa seu personagem. O capitão, dizem-nos (talvez mais vezes do que o necessário), é um agente duplo em mais de um sentido. Meio vietnamita e meio francês, foi cruelmente rejeitado pelos mundos oriental e ocidental – mundos que ele precisa aprender a enfrentar e dominar.

Depois da morte da mãe, seu único vínculo de verdade é com os dois melhores amigos de infância, Bon (Fred Nguyen Khan) e Man. Bon luta pelo Sul. Man luta pelo Norte. O capitão fica secretamente do lado de Man e abertamente do lado de Bon. Sua posição é, como sempre, instável e torturante. Ele é um ideólogo que precisa ceder, convencer e dissimular. Um adepto fervoroso que nunca pode professar sua fé. Preso entre o Norte e o Sul, entre o Ocidente e o Oriente, entre um amigo e outro, ele não consegue lutar. A única arma à sua disposição é uma forma castrada de diplomacia.

Em outras palavras, trata-se de um thriller de espionagem onde os traços definidores do agente duplo são que ele não se encaixa e que ele é – quando comparado aos espiões que temos no cinema, pelo menos – só às vezes competente e mais do que um pouco sem graça.

Elenco de 'O Simpatizante' conta com Hoa Xuande, Fred Nguyen Khan e Duy Nguyen Foto: Hopper Stone/Warner Bros. Discovery via AP

O Simpatizante sinaliza desde o início que compartilha com seu protagonista a compulsão de se rebelar contra o gênero a que deveria se ater. Afinal, é uma adaptação de livro para a TV. E, ainda assim, não consegue parar de falar – ou de fazer referência – ao cinema, gênero que o romance satiriza de um jeito bastante específico (e selvagem). É claro que, na teoria, a série entende sua missão: dedica obrigatoriamente um episódio a uma paródia mordaz de Apocalypse Now e de Hearts of Darkness, o documentário sobre a produção do filme, e faz algumas observações sobre a representação asiática.

Mas, assim como seu protagonista, não consegue não demonstrar uma atração secreta pelas coisas a que deveria se opor. A série até se apresenta como um filme, começa com o reconfortante zumbido de um projetor e aquelas manchas e pontos cintilantes que vemos nos filmes dos anos 70. “Comece com o cinema” talvez seja o mantra da série (e do Capitão). Ambos espremem referências a Desejo de Matar e Emmanuelle para montar uma cena de interrogatório que acontece numa sala de cinema vazia – o que, é claro, propicia que todos comentem sobre a teatralidade da própria cena.

No seu melhor, a série desafia as expectativas de um jeito peculiar, caindo no anticlímax quando esperamos choque ou catarse – e vice-versa. No seu momento menos surpreendente, declara a intenção explícita de reenquadrar as coisas: “Nos Estados Unidos, o nome é Guerra do Vietnã. No Vietnã, é Guerra Americana”, lê-se no texto de abertura. É a declaração de um fato, mas traz um cheiro do tipo de mentalidade “olho por olho” que os americanos temeriam – e com razão. Ou, no mínimo, expressa uma vontade de cometer os crimes narrativos dos Estados Unidos contra o Vietnã ao contrário.

E, de fato, a série oferece uma versão hilária disso, apresentando Robert Downey Jr. exatamente como o tipo de vilão genérico e sem profundidade que os atores asiáticos costumam interpretar nos filmes americanos. Além de Claude, o agente da CIA, ele faz um professor orientalista careca, um senador condescendente empenhado em combater o comunismo e um autor instável. Fazê-lo interpretar todos esses papéis parece uma excelente piada sobre essas linhas revanchistas.

Sandra Oh também atua 'O Simpatizantte', que pode ser vista na HBO e Max Foto: Hopper Stone/Warner Bros. Discovery via AP

Mas, nos seus melhores momentos, a série surpreende o espectador com retratos nuançados de pessoas que não esperamos ver com nuances – como o general, cujos crimes são consideráveis, mas que Le interpreta como alguém perplexo, desesperado, indeciso e deprimido. Ou Sophia Mori (Sandra Oh), uma nipo-americana que enfrenta alguns dos mesmos hibridismos do capitão com relativa serenidade. Ou o oficial sul-vietnamita que o capitão acaba assassinando para manter seu disfarce, cuja afeição amável e acessos de generosidade podem fazer você (e o capitão) se esquecer de certas atividades horríveis das quais ele participou. É claro que esse é o trocadilho no coração do título: o simpatizante comunista acaba simpatizando demais – de um jeito que humaniza seus inimigos, prioriza seus amigos e o distrai de sua missão.

Esses tons de cinza – o melhor da série – necessariamente diminuem à medida que a trama avança. Os últimos episódios são inferiores aos três primeiros (que Park Chan-wook dirigiu). Não é uma crítica. Provavelmente era inevitável que a extraordinária confiança visual e narrativa dessa série vacilasse ao tentar ajustar o esquema ideológico no qual seus personagens operam com a história maravilhosamente confusa sobre eles que ela mesma produziu.

O Simpatizante estreou em 14 de abril na HBO e estará disponível para streaming no Max, com novos episódios indo ao ar semanalmente. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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