As comédias provocativas de Steve Martin e Martin Short normalmente têm uma simples proposta: simplesmente colocar os dois juntos. Mesmo quando relembraram seus anos de amizade e colaboração numa entrevista por vídeo no início deste verão, não deixaram de entrar no ritmo familiar de cutucarem afetivamente um ao outro.
Quando Martin fazia uma autorreflexão, “se pudesse falar sobre mim mesmo por um segundo”, seu parceiro na tela viu que tinha ali uma oportunidade.
“Não gostaria que fosse diferente”, Short rapidamente interveio.
Alguns momentos depois Short fez um panorama do seu próprio trabalho - “Durante toda minha carreira tenho satirizado o narcisismo”, disse - e chegou a sua hora de receber o troco.
Martin respondeu: “exceto para você, não é uma sátira”.
Eles fazem esse tipo de alfinetadas verbais rápidas comumente. Mas o que acontece quando você tira esses atores veteranos da sua zona de conforto e os coloca numa série de TV interpretando comediantes decrépitos, decadentes? E quando se juntam com um terceiro ator que de nenhuma maneira faz parte do seu grupo demográfico, no caso uma atriz, Selena Gomez? E se a série não for apenas uma paródia implacável da vida em Nova York, mas também sobre assassinatos misteriosos?
Esta é a premissa improvável, mas excepcionalmente eficaz de Only Murders in the Building, que estreia na terça-feira no Star+. A série, em que Selena Gomez, Martin Short e Steve Martin interpretam moradores díspares de um prédio que acabam se juntando devido à morte de um vizinho, é uma história de mistério cômica que também inspira uma outra pergunta básica: como essa história surgiu?
A resposta não vem do algoritmo de um computador ou de um jogo de dardos, mas foi um processo que se desenvolveu por vários anos. E acabou resultando numa série que traz Selena Gomez, atriz e cantora pop, de volta à televisão para seu primeiro trabalho numa série desde o seu grande sucesso de Wizards of Waverly Place, em 2000, e tem no elenco Steve Martin no seu primeiro papel na TV.
Realizar Only Murders in the Building foi um processo de descoberta dos três atores principais da série, que mostrou a Short e Martin que sua rotina bem elaborada tinha espaço para novas artimanhas e novos colegas de equipe e também que Selena Gomez tinha plena capacidade para assumir o papel ao lado dos dois colegas veteranos.
Como Selena explicou numa outra entrevista por telefone, trabalhar ao lado de Steve Martin e Martin Short foi algo compreensivelmente amedrontador. “Eles não sabiam o que esperar de uma pessoa de 29 anos de idade, e não me conheciam muito bem", disse ela. "Nós estávamos nos conhecendo".
Mas ela chegou com seu jeito burlão e um genuíno entusiasmo pelo gênero de história criminal, e, como sua personagem, forjou uma conexão surpreendente com seus parceiros da história.
“Na vida real, se eu tivesse conhecido dois homens mais velhos que se dedicavam a resolver mistérios, eu estabeleceria um vínculo forte com eles da mesma maneira”, disse ela.
O conceito central da série já vinha sendo nutrido por Martin há anos. Ele disse ter pensado nele numa festa cujo anfitrião sugeriu que escrevesse alguma coisa para os três outros convidados que descreveu apenas como “velhos atores da Broadway”.
Como Martin relembrou. “a ideia me veio à cabeça imediatamente, de que eles viviam num prédio e todos eram interessados em crimes. Mas não tinham energia para ir ao centro da cidade, de modo que praticavam assassinatos no prédio”.
Martin 76 anos é um ator culturalmente eclético cuja produção inclui desenhos animados, shows na Broadway e música de banjo (Ele também ofereceu um anúncio para um livro meu publicado em 2018). Segundo suas próprias palavras, ele não tinha interesse em fazer a série até que Short, 71 anos, sugeriu que fizessem algum trabalho juntos.
“Marty me disse, ‘você sabe, está velho - nós poderíamos fazer isso'", disse Martin.
Mas o caminho de fato para sua parceria no show foi mais elaborado. Durante algum tempo Martin foi cortejado por produtores de TV, como Dan Fogelman, criador de séries como This is Us da NBC.
Quando Fogelman e seu parceiro de produção Jess Rosenthal almoçaram com Martin há alguns anos, eles esperavam ter um encontro memorável com um dos seus heróis de comédia, mas poucos resultados tangíveis.
"Eu não acho que Steve opera de um lugar de, o que é um veículo que eu posso criar para mim mesmo"? Fogelman disse. "Ele pensa: 'Qual é uma ideia que eu acho engraçada ou interessante?' Então, provavelmente é preciso alguém cutucando-o para fazê-lo ele mesmo".
Mas Martin disse que observou que ele próprio estava sentindo saudade da familiaridade de uma produção diante da câmera, lembrando da comédia romântica Simplesmente Complicado, de 2009, em que contracenou com Meryl Streep e Alec Baldwin.
Quando esse filme foi concluído, “na verdade não senti muita vontade de voltar ao cinema, tinha saudade de trabalhar com pessoas". Voltar a atuar e ocasionalmente oferecer ideias e diálogos de um roteiro de alguma coisa que alguém estivesse encarregado de fazer era “o nível perfeito de contribuição sem que precisasse fazer isso a vida inteira”.
Trinta e cinco anos depois e a série do Hulu selecionou Martin no papel de Charles, um ator vagamente famoso de um drama de TV antigo e Martin Short como Oliver, um outrora conhecido diretor da Broadway ansiando por mais uma oportunidade de brilhar.
John Hoffman, que é o showrunner de Only Murders in the Building e divide com Steve Martin a sua criação, disse que o ponto crucial da série não era a idade dos principais atores, mas a ideia de “três pessoas solitárias que encontram um sentido de conexão”. Observando seu trabalho na comédia Grace e Frankie, da Netflix, Hoffman disse: “Naquela série já há muita coisa sobre pessoas envelhecendo e questões que envolvem isso. E conscientemente eu me disse que não faria algo similar novamente”.
Mesmo assim, quando Hoffman e seus colegas traçaram a nova série, tiveram cuidado para não retratar os três personagens principais muito similares. Recordando essas conversas, Hoffman disse: "Não queremos um alienígena no mundo deles? O que não estamos esperando, isso não faz sentido?".
A solução foi ter Charles e Oliver fazendo uma aliança incômoda com um terceiro personagem, Mabel, uma jovem sarcástica que não fala muito sobre como consegue viver no prédio ou porque está tão interessada no crime central da história. Fogelman disse que Selena Gomez foi o arquétipo que os produtores usaram quando esboçaram a personagem e depois soube para sua surpresa que ela estava realmente interessada no papel.
Selena Gomez, que é fã de thrillers psicológicos e participou do Crimecon, um evento que dura uma semana dedicado à resolução de casos criminais não resolvidos, disse que sentiu uma certa familiaridade com a personagem Mabel. Ela pensou a respeito e disse “bom, não sou assim tão enigmática”, mas acrescentou, “na verdade, sabe, talvez eu seja. Mas não sou tão intensa quanto ela”.
Houve alguma ansiedade na primeira mesa de leitura do roteiro, realizada por videoconferência e que foi a primeira vez que as três estrelas se apresentaram juntas. Mas em sua conclusão, "houve telefonemas indo e voltando entre Steve, Marty, Dan e eu", disse Hoffman. "Estávamos apenas loucos por Selena".
Selena Gomez foi produtora executiva da série da Netflix chamada 13 Reasons Why e foi apresentadora de uma série de culinária na HBO Max, Selena + Chef, e sua filmografia inclui o thriller Spring Breakers - Garotas Perigosas, de Harmony Korine, e a comédia zumbi de Jim Jarmusch Os Mortos não Morrem. Mas disse que esperava que Only Murders in the Building teria seus próprios desafios.
“Você pode ver que no primeiro episódio eu estava muito tímida. Mas durante toda a temporada estou mais solta e mais à vontade”.
Tanto Martin Short como Steve Martin elogiaram Selena pelo seu talento como comediante e a capacidade de colocar no seu lugar seus vetustos e rabugentos personagens.
Martin comparou a dinâmica com a famosa cena de Harry e Sally - Feitos Um para o Outro, na Katz's Delicatessen, cuja piada "I'll have what she's having" (Vou querer o mesmo que ela) é feita por uma observadora interpretado por Estelle Reiner.
Duas pessoas podem estar em cena, mas a risada vem quando entra uma terceira pessoa que está observando”, disse ele. “Selena consegue realmente isso”. Ela tem esta postura, tipo: 'Vocês são duas crianças?'".
Enquanto isso, Short e Martin se viram passando ainda mais tempo juntos durante a realização da série, no set e nas viagens de volta para casa, durante as quais eles compartilhariam um passeio de carro e trocariam fofocas. "Foi durante a covid, portanto não tivemos opções", disse Short.
"Estávamos na bolha um do outro", acrescentou Martin.
Diante do salto incomun que Only Murders in the Building representou para cada um dos seus atores, eles tentam alcançar um equilíbrio certo entre se preocupar com seu sucesso e se mostrar indiferentes quanto às suas perspectivas futuras.
Martin citou um adágio que atribuiu ao amigo e ator Richard E. Grant dizendo: “você coloca seu coração e sua alma em alguma coisa, os seus sonhos, suas grandes esperanças. Mas depois percebe que é somente mais um título na gaveta”.
Quando Martin Short ouviu isto, não se conteve. “É um pensamento muito otimista”, disse sarcasticamente. “Você sabe o que mais acontece, eventualmente? Você dá risada, ama seus filhos, tem um AVC e morre”.
Martin adotou um tom de grandeza exagerado e respondeu: “Seja bem-vindo!”.
Tradução de Terezinha Martino