Para alguns funcionários, o que acontece na Lumon fica na Lumon. No mundo da série Ruptura, da Apple TV+, eles concordaram em deixar a empresa implantar um chip que divide sua personalidade para que um lado lembre apenas o que acontece no escritório e o outro exista apenas do lado de fora. Trabalho e vida são tão perfeitamente equilibrados que nunca se encontrarão.
Criada por Dan Erickson, Ruptura segue a jornada de Mark (Adam Scott), um homem comum empregado na misteriosa divisão da Lumon chamada Macrodata Refinement (MDR) que começa a questionar as forças maiores que moldam sua vida – ou melhor, suas vidas.
A série aclamada pela crítica combina um design de produção estiloso, humor surreal e uma visão orwelliana do impacto do trabalho em escritórios na psique humana – temas não muito diferentes daqueles encontrados no clássico filme de Terry Gilliam Brazil – O Filme (1985), um dos favoritos de Erickson. “Havia aquele sentido retrofuturo, mas Ben sempre foi muito inflexível em fundamentar isso em uma lógica e em uma psicologia na qual a Lumon está tentando desorientar os trabalhadores no tempo e no espaço”, ele disse, referindo-se a Ben Stiller, que dirigiu seis dos nove episódios da primeira temporada. “Eles não têm ideia de onde poderiam estar. Eles não sabem exatamente que ano é. Há uma leve sensação estranha de atemporalidade, ou uma combinação de tempos diferentes, e para mim, isso estava expressando que não estamos na Lumon, mas que ainda estamos na Lumon.” Em um bate-papo por vídeo de sua casa em Los Angeles, Erickson, 38, falou sobre algumas das outras inspirações que ajudaram a alimentar “Ruptura”. Estes são trechos editados da conversa.
‘Quero ser John Malkovich’
“Este foi um filme realmente importante para minha formação e que me fez querer ser escritor”, disse Erickson sobre a viagem mental de Spike Jonze neste filme, escrito por Charlie Kaufman, no qual o personagem de John Cusack trabalha em um escritório apertado e um dia descobre uma passagem para a cabeça do ator John Malkovich.
“Acho que minha parte favorita é, na verdade, antes de eles encontrarem o portal”, disse Erickson. “Você tem a visão visceralmente estranha do andar 7 1/2, onde todo mundo precisa se agachar para caminhar.” A área de trabalho de Mark em Ruptura é igualmente desorientadora e alienante. “Acho que a ideia de ver um espaço familiar meio deformado e retorcido provavelmente veio direto de Quero Ser John Malkovich, disse Erickson. “Eles têm esse teto extremamente baixo; temos o amplo espaço MDR aberto com a ilha central do cubículo parecendo muito pequena para o espaço.”
‘Black Mirror: episódio White Christmas’
Transformando nossa relação com a tecnologia em pesadelos, a antológica série britânica Black Mirror é um ponto de referência natural para Ruptura. Erickson destacou este longo episódio de 2014, particularmente seu final, no qual um personagem é essencialmente condenado a um ciclo infernal. “Eu me lembro de ter sentido tanto frio e medo depois de ver isso, essa ideia devastadora de ter que experimentar essa solidão sem fim”, disse Erickson. Ele notou um paralelo no momento em que a colega de Mark, Helly (Britt Lower), tenta escapar da Lumon pela primeira vez. “É esse pesadelo de sair correndo por uma porta, e então você está simplesmente correndo de volta e percebe que está realmente preso nesse espaço liminar com esse tipo de lógica de pesadelo”, ele disse.
‘Cama de Gato’
Erickson citou Kurt Vonnegut como um de seus autores favoritos, destacando este romance de 1963. Um ponto da trama o tocou especialmente: “Penso muito sobre o desenvolvimento do ice-nine, essa tecnologia destruidora do mundo que todos concordam que não deveria existir, mas que quase nasceu da burocracia”, disse Erickson. “Na Lumon, Mark está lendo esses fluxogramas bobos enquanto orienta Helly. Essa corporatização extrema de tudo, essa ideia de que há um processo que você tem que seguir, não importa o que aconteça, e que substitui até a humanidade – eu sinto que essa é uma ideia assustadora do universo de Vonnegut.”
Ruptura também reproduz a devoção frequentemente cultuada que algumas empresas fomentam, sendo uma dessas influências a religião inventada chamada Bokonon no livro de Vonnegut. “Eu sempre disse que se eu fosse fazer uma tatuagem, seriam as palavras ‘lama da sorte’ – uma referência a uma oração que eles fazem na seção Bokonon”, disse Erickson, rindo.
‘Cidade das Sombras’ Erickson adora este thriller apocalíptico de 1999 do diretor australiano Alex Proyas, que ele considera “a definição de uma coisa genial de ficção científica noir”. “Você começa com esse mistério em torno de um assassinato e a coisa fica cada vez maior até chegar em questões como, o que é a alma? O que estamos fazendo aqui? O que é a vida?" ele disse. “As memórias dessas pessoas estão sendo apagadas e elas estão sendo colocadas nesses diferentes cenários para ver como vão reagir, se se tornarão as pessoas que deveriam ser. Se lhe disserem que você é um assassino, você se torna um assassino?” De fato, questões relativas à individualidade são parte integrante de “Ruptura”, mas a série também tem um humor particular, especialmente quando os personagens de John Turturro e Christopher Walken estão envolvidos, então não é surpresa que Erickson aprecie a justaposição de tolices e temas sombrios – um aspecto do trabalho de Proyas que o atrai. “Ele não tem medo de ser bobo, mas tudo está envolto nessas questões existenciais que ele parece continuar perguntando ao longo de sua carreira.”
Vídeo promocional da Churrascaria Sizzler
Se David Lynch tivesse feito um vídeo promocional para uma rede de churrascarias, poderia ter parecido um pouco com essa esquisitice de cinco minutos criada para a Sizzler em 1991. “Olhando para isso agora, penso, ‘Meu Deus, estamos todos em um culto?'”, disse Erickson. “O que torna o vídeo tão fascinante para mim é que eles estão basicamente igualando a Sizzler com a ideia de liberdade e a ideia de escolha, porque você pode se servir de churrasco ou se servir no bufê.” Sua empresa fictícia cria um tipo semelhante de mundo corporativo independente, com suas próprias regras e estética. “Pensei na Lumon e na maneira como eles têm controle total sobre o que seus funcionários fazem e não veem”, disse Erickson. “Se houvesse documentos ou vídeos internos, eles poderiam ter essa vantagem real da propaganda e, sem o benefício do contexto, os funcionários não reconheceriam isso pelo que realmente é. É difícil ver um culto de fora. É difícil ver a propaganda quando ela está funcionando. “Quando eles estão dentro da barriga da fera”, acrescentou, “eles não sabem que estão lá”. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES