Confinamento, isolamento, luto são palavras que se tornaram comuns durante a pandemia. Mas elas sempre fizeram parte do vocabulário cinematográfico de M. Night Shyamalan, que se preparava para a segunda temporada da série Servant, que estreia nesta sexta na Apple TV+, quando tudo fechou por causa da covid-19. Na parede à sua frente durante entrevista por videoconferência ao Estadão, o cineasta olha para pôsteres de Os Pássaros, de Alfred Hitchcock, por exemplo, “em que as pessoas estão isoladas e precisam lidar com suas crenças”, descreveu. O Exorcista (1973), de William Friedkin, também está lá. “Também confinados num sobrado”, disse. “Eu sempre gostei de histórias grandiosas, mas contadas de uma única locação, focadas numa comunidade. A pandemia apenas fez com que todos se sentissem assim. Mas eu sempre falo de distanciamento da sociedade, do que nos dá medo e das coisas que nos separam uns dos outros.”
Na primeira temporada de Servant, a jovem babá Leanne (Nell Tiger Free) chegava à casa confortável do casal Sean (Toby Kebbell) e Dorothy (Lauren Ambrose) para cuidar do bebê do casal. Sendo um projeto assinado por Shyamalan, claro que nem tudo é o que parece. Uma tragédia aconteceu ali, coisas aparentemente sobrenaturais começam a pipocar, e os mistérios vão se acumulando durante os episódios.
A não ser por algumas poucas cenas, quase tudo se passa dentro das paredes do sobrado na Filadélfia, decorado com bom gosto, à exceção do antiquado quarto da funcionária, a babá. A construção também é dotada de porão e sótão, onde o estranho acontece. “É muito interessante falar de coisas dolorosas e estressantes nessa casa enorme de onde essas pessoas privilegiadas não podem escapar”, disse Kebbell ao Estadão.
Esse cenário durante a pandemia foi uma experiência no mínimo curiosa para os atores. “Certamente, fez muito sentido estar trabalhando numa série em que estamos aprisionados dentro desse sobrado com esta única família”, disse Ambrose, que faz uma famosa repórter de televisão. “Especialmente porque tivemos de ficar em confinamento no meio da filmagem.” Kebbell disse que até o fato de Sean, um chef de cozinha, perder o olfato e o paladar coincidiu com o que muita gente passa na vida real. “Fora que os personagens guardam um segredo dentro de casa, então o resto do mundo é motivo de pânico”, disse.
Rupert Grint, que faz o irmão de Dorothy e está por dentro dos mistérios da família, não tem certeza se entrar nesta outra casa é o melhor escapismo em tempos de pandemia. Mas a série lida com luto e as coisas a que nos apegamos nos momentos de perda, como a fé, o que pode criar identificação com a experiência mundial do momento. “A série é muito sobre gente que não vive o luto quando deveria”, disse Grint. “Julian gosta de parecer engraçado, sarcástico, é barulhento, mas no fim é tudo uma fachada. Na segunda temporada, descobrimos um pouco mais por que ele está agindo assim.” Os novos episódios também revelam as motivações de Sean, que tem uma mudança de posição. “Ele sempre foi o cético, só que agora quer descobrir o que está acontecendo e vai explorar as dicas dadas por Leanne do que pode ser”, disse Kebbell. Segundo Tiger Free, a relação de todos os personagens com a fé muda um pouco.
Mas o segundo ano de Servant é principalmente uma luta de poder entre Dorothy e Leanne. “Minha personagem perde a vulnerabilidade que era sua base e está determinada a ficar com seu bebê. Foi muito diferente explorar sua força”, disse Lauren Ambrose. “Para mim é interessante como as coisas continuam se transformando na série. Não sabemos o que está acontecendo.” A doce Leanne também está em processo de transformação. “Ela está amadurecendo muito. Ao final desta temporada, vai estar quase irreconhecível”, disse Tiger Free, conhecida como a princesa Myrcella Baratheon de Game of Thrones.
Em relação à primeira temporada, há uma mudança perceptível de tom. “Antes, era mais mistério. Agora é um suspense dramático”, disse Grint. A terceira temporada já foi confirmada pelo Apple TV+ e Shyamalan já mapeou a história até a quarta.
2 perguntas para o diretor M. Night Shyamalan
Fez alguma mudança para a segunda temporada? No fim da primeira, estava ansioso com a relação com o público e sem saber claramente o rumo que íamos tomar. Não dava para ficar apenas apresentando coisas novas. Quando a pandemia aconteceu, eu estava no meio desse processo. Consegui mapear tudo. Quando terminei, tinha quatro temporadas na mão.
Você não dirige tudo, como num filme? Eu estou trazendo diretores em quem acredito. Todos são imigrantes, exceto minha filha, que nasceu nos EUA (risos). Muitas mulheres. Isso é importante para mim. Dou total liberdade, mas eu preparo a mesa. Faço uma leitura com os atores e o diretor do episódio. Digo a cada um qual a intenção de cada momento e o que precisamos. E aí cada um fica sozinho.