Spike Lee, exultante no 'epicentro' do 11 de Setembro e da covid-19


Estreia na HBO a série documental 'New York Epicenters: 9/11 - 2021 ½', em que Spike Lee faz um caleidoscópio de testemunhos das duas tragédias

Por Reggie Ugwu
Atualização:

NOVA YORK - Spike Lee, como a cidade de onde vem, exala uma intrépida resiliência. A expressão tranquila do seu rosto diz: “Me coloque à prova”. Em Nova York existe essa sensação de que as provações nos aguardam de todo o lado, como se fosse um direito inato, sejam coisas do cotidiano (aguentar o cheiro do lixo nos dias de verão) ou catastróficas (os atentados do 11 de setembro, o primeiro surto da covid-19).

O diretor Spike Lee em sua casa, em 2020; ele fala agora sobre 'NYC Epicenters 9/11-2021 1/2' Foto: Andre D. Wagner/The New York Times

Em sua nova série documental, New York Epicenters: 9/11 - 2021 ½ - o primeiro dos seus quatro episódios estreou no domingo na HBO - Spike Lee lembra o espírito infatigável de Nova York. Dezenas de nova-iorquinos, envolvidos por um tênue brilho azul diante de um pano de fundo preto, prestam seu depoimento em entrevistas que relatam cada fase dos dois desastres. Os dois primeiros episódios focam na pandemia; os dois posteriores retomam os ataques contra o World Trade Center.

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Muitos dos rostos são bem conhecidos - o senador Chuck Summer, o prefeito Bill de Blasio, Rosie Perez - mas a maior parte da história é contada da perspectiva dos que foram menos vistos e que mais viram: trabalhadores da saúde, bombeiros, ativistas e sobreviventes. Eles formam uma espécie de coro tendo Spike Lee como maestro, abrandando as coisas ou as acelerando à medida que as lembranças individuais se harmonizam e divergem.

Recentemente conversei com Spike Lee num bate-papo por vídeo sobre a série, sua própria sensação de dor, e porque ele ainda questiona o que causou o colapso dos edifícios do World Trade Center. Abaixo trechos da conversa.

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Como nasceu a ideia desta série? Por que o senhor quis realizar um documentário unindo a experiência de Nova York com a covid e o 11 de setembro?

 Bem, algo que é ignorado é que sou um realizador de documentários também. Mas para mim, ainda prevalece a narrativa. Não coloquei os dois fatos segmentados, como duas categorias diferentes. E sou nova-iorquino. Não gosto da palavra aniversário, mas passados 20 anos desde o 11 de setembro, e com as pessoas com frequência falando de Nova York durante a covid, “Este é o epicentro” foi algo natural.

O que você viu como conexão entre os dois eventos?

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Acho que estamos honrando as pessoas que perderam suas vidas, pessoas que perderam a vida com doenças relacionadas aos atentados do 11 de setembro. E também os mais de 600.000 americanos que não estão mais aqui por causa da covid. Mais americanos morreram em consequência da covid do que os que perderam a vida na Segunda Guerra Mundial, na Guerra da Coreia, Vietnã, Iraque, e ironicamente no Afeganistão, no total.

Você entrevistou mais de 200 pessoas para a série - líderes políticos e atores, trabalhadores da saúde e ativistas. Quem você buscou?

Bom, tivemos excelentes pesquisadores - Judy Alei comandou uma equipe fenomenal. E pessoas que eu conhecia, pessoas sobre as quais eu li no The New York Times. Eu quis ser o mais equilibrado possível, um caleidoscópio de testemunhas. É como as chamamos: são testemunhas. As únicas pessoas que disseram não foram os policiais de Nova York. Eles não aparecem bem. E aquela cena (da polícia atacando manifestantes do Black Lives Matter em 2020) não mente. Eles estavam arrebentando cabeças).

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Eles não quiseram falar com você? Não poderiam se defender?

Eles viram Faça a Coisa Certa.

 O que mais o deixou comovido?

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O mais comovente para mim, não incluindo as cenas de arquivo, foram as entrevistas com pessoas que perderam seus entes queridos. Foram entrevistas duras porque elas sabiam porque estavam ali. E sabiam que teriam de responder a perguntas. E elas abriram seu coração. Foi muito comovente. Para mim, não consigo apreender o que passaram. Mas ver - é difícil fazer perguntas que você sabe que vai deixar a pessoa prostrada. Não é fácil, nem divertido. Mas tive que fazer essas perguntas.

Fiquei surpreso como você apareceu em muitos desses momentos. Vemos como você entra na discussão dando uma palavra de apoio e encorajamento. O que passou pela sua cabeça quando estava sentado ao lado de uma pessoa abrindo o seu coração daquela maneira?

Tentei não as interromper. Não fui bem-sucedido o tempo todo, mas faz parte do meu trabalho. Quis que as pessoas fossem informadas. E isto é muito importante: acho que elas confiaram em mim. As pessoas, não a polícia de Nova York, confiaram que esse documentário não seria uma exploração. E não quero trair sua confiança.

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Ouvir que 600 mil morreram de covid, ou mais de três mil morreram nos ataques de 11 de setembro, esses são apenas números. Mas esses números são de seres humanos. Pessoas que eram amadas por suas esposas, filhos, amigos, parentes. Quem são elas? Quem são esses afegãos que estavam no trem de aterrissagem do avião e caíram? Você tem de mostrar o elemento humano, sabe. Não se trata apenas de números.

Os atentados de 11 de setembro completam 20 anos em 2021 Foto: Richard Drew / AP

Outra coisa que o documentário mostra, de maneira crua, é que a vida continua. Se você assistiu a Uma família de pernas para o ar, perdi minha mãe quanto estava iniciando a faculdade. Ela não chegou a ver nada dos meus trabalhos. E está comigo o tempo todo, mas, você sabe, a vida segue em frente. Nas entrevistas com essas pessoas que perderam entes queridos, senti que as entendia muito bem. Você não consegue substituir o amor de um ser querido e vai ter saudades dele a vida inteira, mas a vida tem de continuar. Acho que é algo muito importante mostrar isso neste filme.

Acha que sua própria experiência de perder sua mãe o ajudou a se conectar com aquelas pessoas?

Claro. Minha mãe, meus avós. Cada pessoa é diferente. Mas perder quem você ama é perder quem você ama. Assim, posso dizer que sei o que é uma perda, mesmo hoje.

 Como você lida com o enfrentamento dessa dor depois de 20 anos?

Com compaixão. Lembra da atriz LaChanze?

Sim, seu marido, Calvin Gooding, morreu nos atentados de 11 de setembro quando ela estava grávida.

Eu chorei por ela. Aquilo me derrubou. Não para negar a perda de outros, mas quando ela teve uma crise, eu também fiquei mal. Mas esse é o meu trabalho. Mas há muito humor no filme, também, o que não foi planejado, mas houve momentos em que o humor simplesmente apareceu. / Tradução de Terezinha Martino

NOVA YORK - Spike Lee, como a cidade de onde vem, exala uma intrépida resiliência. A expressão tranquila do seu rosto diz: “Me coloque à prova”. Em Nova York existe essa sensação de que as provações nos aguardam de todo o lado, como se fosse um direito inato, sejam coisas do cotidiano (aguentar o cheiro do lixo nos dias de verão) ou catastróficas (os atentados do 11 de setembro, o primeiro surto da covid-19).

O diretor Spike Lee em sua casa, em 2020; ele fala agora sobre 'NYC Epicenters 9/11-2021 1/2' Foto: Andre D. Wagner/The New York Times

Em sua nova série documental, New York Epicenters: 9/11 - 2021 ½ - o primeiro dos seus quatro episódios estreou no domingo na HBO - Spike Lee lembra o espírito infatigável de Nova York. Dezenas de nova-iorquinos, envolvidos por um tênue brilho azul diante de um pano de fundo preto, prestam seu depoimento em entrevistas que relatam cada fase dos dois desastres. Os dois primeiros episódios focam na pandemia; os dois posteriores retomam os ataques contra o World Trade Center.

Muitos dos rostos são bem conhecidos - o senador Chuck Summer, o prefeito Bill de Blasio, Rosie Perez - mas a maior parte da história é contada da perspectiva dos que foram menos vistos e que mais viram: trabalhadores da saúde, bombeiros, ativistas e sobreviventes. Eles formam uma espécie de coro tendo Spike Lee como maestro, abrandando as coisas ou as acelerando à medida que as lembranças individuais se harmonizam e divergem.

Recentemente conversei com Spike Lee num bate-papo por vídeo sobre a série, sua própria sensação de dor, e porque ele ainda questiona o que causou o colapso dos edifícios do World Trade Center. Abaixo trechos da conversa.

Como nasceu a ideia desta série? Por que o senhor quis realizar um documentário unindo a experiência de Nova York com a covid e o 11 de setembro?

 Bem, algo que é ignorado é que sou um realizador de documentários também. Mas para mim, ainda prevalece a narrativa. Não coloquei os dois fatos segmentados, como duas categorias diferentes. E sou nova-iorquino. Não gosto da palavra aniversário, mas passados 20 anos desde o 11 de setembro, e com as pessoas com frequência falando de Nova York durante a covid, “Este é o epicentro” foi algo natural.

O que você viu como conexão entre os dois eventos?

Acho que estamos honrando as pessoas que perderam suas vidas, pessoas que perderam a vida com doenças relacionadas aos atentados do 11 de setembro. E também os mais de 600.000 americanos que não estão mais aqui por causa da covid. Mais americanos morreram em consequência da covid do que os que perderam a vida na Segunda Guerra Mundial, na Guerra da Coreia, Vietnã, Iraque, e ironicamente no Afeganistão, no total.

Você entrevistou mais de 200 pessoas para a série - líderes políticos e atores, trabalhadores da saúde e ativistas. Quem você buscou?

Bom, tivemos excelentes pesquisadores - Judy Alei comandou uma equipe fenomenal. E pessoas que eu conhecia, pessoas sobre as quais eu li no The New York Times. Eu quis ser o mais equilibrado possível, um caleidoscópio de testemunhas. É como as chamamos: são testemunhas. As únicas pessoas que disseram não foram os policiais de Nova York. Eles não aparecem bem. E aquela cena (da polícia atacando manifestantes do Black Lives Matter em 2020) não mente. Eles estavam arrebentando cabeças).

Eles não quiseram falar com você? Não poderiam se defender?

Eles viram Faça a Coisa Certa.

 O que mais o deixou comovido?

O mais comovente para mim, não incluindo as cenas de arquivo, foram as entrevistas com pessoas que perderam seus entes queridos. Foram entrevistas duras porque elas sabiam porque estavam ali. E sabiam que teriam de responder a perguntas. E elas abriram seu coração. Foi muito comovente. Para mim, não consigo apreender o que passaram. Mas ver - é difícil fazer perguntas que você sabe que vai deixar a pessoa prostrada. Não é fácil, nem divertido. Mas tive que fazer essas perguntas.

Fiquei surpreso como você apareceu em muitos desses momentos. Vemos como você entra na discussão dando uma palavra de apoio e encorajamento. O que passou pela sua cabeça quando estava sentado ao lado de uma pessoa abrindo o seu coração daquela maneira?

Tentei não as interromper. Não fui bem-sucedido o tempo todo, mas faz parte do meu trabalho. Quis que as pessoas fossem informadas. E isto é muito importante: acho que elas confiaram em mim. As pessoas, não a polícia de Nova York, confiaram que esse documentário não seria uma exploração. E não quero trair sua confiança.

Ouvir que 600 mil morreram de covid, ou mais de três mil morreram nos ataques de 11 de setembro, esses são apenas números. Mas esses números são de seres humanos. Pessoas que eram amadas por suas esposas, filhos, amigos, parentes. Quem são elas? Quem são esses afegãos que estavam no trem de aterrissagem do avião e caíram? Você tem de mostrar o elemento humano, sabe. Não se trata apenas de números.

Os atentados de 11 de setembro completam 20 anos em 2021 Foto: Richard Drew / AP

Outra coisa que o documentário mostra, de maneira crua, é que a vida continua. Se você assistiu a Uma família de pernas para o ar, perdi minha mãe quanto estava iniciando a faculdade. Ela não chegou a ver nada dos meus trabalhos. E está comigo o tempo todo, mas, você sabe, a vida segue em frente. Nas entrevistas com essas pessoas que perderam entes queridos, senti que as entendia muito bem. Você não consegue substituir o amor de um ser querido e vai ter saudades dele a vida inteira, mas a vida tem de continuar. Acho que é algo muito importante mostrar isso neste filme.

Acha que sua própria experiência de perder sua mãe o ajudou a se conectar com aquelas pessoas?

Claro. Minha mãe, meus avós. Cada pessoa é diferente. Mas perder quem você ama é perder quem você ama. Assim, posso dizer que sei o que é uma perda, mesmo hoje.

 Como você lida com o enfrentamento dessa dor depois de 20 anos?

Com compaixão. Lembra da atriz LaChanze?

Sim, seu marido, Calvin Gooding, morreu nos atentados de 11 de setembro quando ela estava grávida.

Eu chorei por ela. Aquilo me derrubou. Não para negar a perda de outros, mas quando ela teve uma crise, eu também fiquei mal. Mas esse é o meu trabalho. Mas há muito humor no filme, também, o que não foi planejado, mas houve momentos em que o humor simplesmente apareceu. / Tradução de Terezinha Martino

NOVA YORK - Spike Lee, como a cidade de onde vem, exala uma intrépida resiliência. A expressão tranquila do seu rosto diz: “Me coloque à prova”. Em Nova York existe essa sensação de que as provações nos aguardam de todo o lado, como se fosse um direito inato, sejam coisas do cotidiano (aguentar o cheiro do lixo nos dias de verão) ou catastróficas (os atentados do 11 de setembro, o primeiro surto da covid-19).

O diretor Spike Lee em sua casa, em 2020; ele fala agora sobre 'NYC Epicenters 9/11-2021 1/2' Foto: Andre D. Wagner/The New York Times

Em sua nova série documental, New York Epicenters: 9/11 - 2021 ½ - o primeiro dos seus quatro episódios estreou no domingo na HBO - Spike Lee lembra o espírito infatigável de Nova York. Dezenas de nova-iorquinos, envolvidos por um tênue brilho azul diante de um pano de fundo preto, prestam seu depoimento em entrevistas que relatam cada fase dos dois desastres. Os dois primeiros episódios focam na pandemia; os dois posteriores retomam os ataques contra o World Trade Center.

Muitos dos rostos são bem conhecidos - o senador Chuck Summer, o prefeito Bill de Blasio, Rosie Perez - mas a maior parte da história é contada da perspectiva dos que foram menos vistos e que mais viram: trabalhadores da saúde, bombeiros, ativistas e sobreviventes. Eles formam uma espécie de coro tendo Spike Lee como maestro, abrandando as coisas ou as acelerando à medida que as lembranças individuais se harmonizam e divergem.

Recentemente conversei com Spike Lee num bate-papo por vídeo sobre a série, sua própria sensação de dor, e porque ele ainda questiona o que causou o colapso dos edifícios do World Trade Center. Abaixo trechos da conversa.

Como nasceu a ideia desta série? Por que o senhor quis realizar um documentário unindo a experiência de Nova York com a covid e o 11 de setembro?

 Bem, algo que é ignorado é que sou um realizador de documentários também. Mas para mim, ainda prevalece a narrativa. Não coloquei os dois fatos segmentados, como duas categorias diferentes. E sou nova-iorquino. Não gosto da palavra aniversário, mas passados 20 anos desde o 11 de setembro, e com as pessoas com frequência falando de Nova York durante a covid, “Este é o epicentro” foi algo natural.

O que você viu como conexão entre os dois eventos?

Acho que estamos honrando as pessoas que perderam suas vidas, pessoas que perderam a vida com doenças relacionadas aos atentados do 11 de setembro. E também os mais de 600.000 americanos que não estão mais aqui por causa da covid. Mais americanos morreram em consequência da covid do que os que perderam a vida na Segunda Guerra Mundial, na Guerra da Coreia, Vietnã, Iraque, e ironicamente no Afeganistão, no total.

Você entrevistou mais de 200 pessoas para a série - líderes políticos e atores, trabalhadores da saúde e ativistas. Quem você buscou?

Bom, tivemos excelentes pesquisadores - Judy Alei comandou uma equipe fenomenal. E pessoas que eu conhecia, pessoas sobre as quais eu li no The New York Times. Eu quis ser o mais equilibrado possível, um caleidoscópio de testemunhas. É como as chamamos: são testemunhas. As únicas pessoas que disseram não foram os policiais de Nova York. Eles não aparecem bem. E aquela cena (da polícia atacando manifestantes do Black Lives Matter em 2020) não mente. Eles estavam arrebentando cabeças).

Eles não quiseram falar com você? Não poderiam se defender?

Eles viram Faça a Coisa Certa.

 O que mais o deixou comovido?

O mais comovente para mim, não incluindo as cenas de arquivo, foram as entrevistas com pessoas que perderam seus entes queridos. Foram entrevistas duras porque elas sabiam porque estavam ali. E sabiam que teriam de responder a perguntas. E elas abriram seu coração. Foi muito comovente. Para mim, não consigo apreender o que passaram. Mas ver - é difícil fazer perguntas que você sabe que vai deixar a pessoa prostrada. Não é fácil, nem divertido. Mas tive que fazer essas perguntas.

Fiquei surpreso como você apareceu em muitos desses momentos. Vemos como você entra na discussão dando uma palavra de apoio e encorajamento. O que passou pela sua cabeça quando estava sentado ao lado de uma pessoa abrindo o seu coração daquela maneira?

Tentei não as interromper. Não fui bem-sucedido o tempo todo, mas faz parte do meu trabalho. Quis que as pessoas fossem informadas. E isto é muito importante: acho que elas confiaram em mim. As pessoas, não a polícia de Nova York, confiaram que esse documentário não seria uma exploração. E não quero trair sua confiança.

Ouvir que 600 mil morreram de covid, ou mais de três mil morreram nos ataques de 11 de setembro, esses são apenas números. Mas esses números são de seres humanos. Pessoas que eram amadas por suas esposas, filhos, amigos, parentes. Quem são elas? Quem são esses afegãos que estavam no trem de aterrissagem do avião e caíram? Você tem de mostrar o elemento humano, sabe. Não se trata apenas de números.

Os atentados de 11 de setembro completam 20 anos em 2021 Foto: Richard Drew / AP

Outra coisa que o documentário mostra, de maneira crua, é que a vida continua. Se você assistiu a Uma família de pernas para o ar, perdi minha mãe quanto estava iniciando a faculdade. Ela não chegou a ver nada dos meus trabalhos. E está comigo o tempo todo, mas, você sabe, a vida segue em frente. Nas entrevistas com essas pessoas que perderam entes queridos, senti que as entendia muito bem. Você não consegue substituir o amor de um ser querido e vai ter saudades dele a vida inteira, mas a vida tem de continuar. Acho que é algo muito importante mostrar isso neste filme.

Acha que sua própria experiência de perder sua mãe o ajudou a se conectar com aquelas pessoas?

Claro. Minha mãe, meus avós. Cada pessoa é diferente. Mas perder quem você ama é perder quem você ama. Assim, posso dizer que sei o que é uma perda, mesmo hoje.

 Como você lida com o enfrentamento dessa dor depois de 20 anos?

Com compaixão. Lembra da atriz LaChanze?

Sim, seu marido, Calvin Gooding, morreu nos atentados de 11 de setembro quando ela estava grávida.

Eu chorei por ela. Aquilo me derrubou. Não para negar a perda de outros, mas quando ela teve uma crise, eu também fiquei mal. Mas esse é o meu trabalho. Mas há muito humor no filme, também, o que não foi planejado, mas houve momentos em que o humor simplesmente apareceu. / Tradução de Terezinha Martino

NOVA YORK - Spike Lee, como a cidade de onde vem, exala uma intrépida resiliência. A expressão tranquila do seu rosto diz: “Me coloque à prova”. Em Nova York existe essa sensação de que as provações nos aguardam de todo o lado, como se fosse um direito inato, sejam coisas do cotidiano (aguentar o cheiro do lixo nos dias de verão) ou catastróficas (os atentados do 11 de setembro, o primeiro surto da covid-19).

O diretor Spike Lee em sua casa, em 2020; ele fala agora sobre 'NYC Epicenters 9/11-2021 1/2' Foto: Andre D. Wagner/The New York Times

Em sua nova série documental, New York Epicenters: 9/11 - 2021 ½ - o primeiro dos seus quatro episódios estreou no domingo na HBO - Spike Lee lembra o espírito infatigável de Nova York. Dezenas de nova-iorquinos, envolvidos por um tênue brilho azul diante de um pano de fundo preto, prestam seu depoimento em entrevistas que relatam cada fase dos dois desastres. Os dois primeiros episódios focam na pandemia; os dois posteriores retomam os ataques contra o World Trade Center.

Muitos dos rostos são bem conhecidos - o senador Chuck Summer, o prefeito Bill de Blasio, Rosie Perez - mas a maior parte da história é contada da perspectiva dos que foram menos vistos e que mais viram: trabalhadores da saúde, bombeiros, ativistas e sobreviventes. Eles formam uma espécie de coro tendo Spike Lee como maestro, abrandando as coisas ou as acelerando à medida que as lembranças individuais se harmonizam e divergem.

Recentemente conversei com Spike Lee num bate-papo por vídeo sobre a série, sua própria sensação de dor, e porque ele ainda questiona o que causou o colapso dos edifícios do World Trade Center. Abaixo trechos da conversa.

Como nasceu a ideia desta série? Por que o senhor quis realizar um documentário unindo a experiência de Nova York com a covid e o 11 de setembro?

 Bem, algo que é ignorado é que sou um realizador de documentários também. Mas para mim, ainda prevalece a narrativa. Não coloquei os dois fatos segmentados, como duas categorias diferentes. E sou nova-iorquino. Não gosto da palavra aniversário, mas passados 20 anos desde o 11 de setembro, e com as pessoas com frequência falando de Nova York durante a covid, “Este é o epicentro” foi algo natural.

O que você viu como conexão entre os dois eventos?

Acho que estamos honrando as pessoas que perderam suas vidas, pessoas que perderam a vida com doenças relacionadas aos atentados do 11 de setembro. E também os mais de 600.000 americanos que não estão mais aqui por causa da covid. Mais americanos morreram em consequência da covid do que os que perderam a vida na Segunda Guerra Mundial, na Guerra da Coreia, Vietnã, Iraque, e ironicamente no Afeganistão, no total.

Você entrevistou mais de 200 pessoas para a série - líderes políticos e atores, trabalhadores da saúde e ativistas. Quem você buscou?

Bom, tivemos excelentes pesquisadores - Judy Alei comandou uma equipe fenomenal. E pessoas que eu conhecia, pessoas sobre as quais eu li no The New York Times. Eu quis ser o mais equilibrado possível, um caleidoscópio de testemunhas. É como as chamamos: são testemunhas. As únicas pessoas que disseram não foram os policiais de Nova York. Eles não aparecem bem. E aquela cena (da polícia atacando manifestantes do Black Lives Matter em 2020) não mente. Eles estavam arrebentando cabeças).

Eles não quiseram falar com você? Não poderiam se defender?

Eles viram Faça a Coisa Certa.

 O que mais o deixou comovido?

O mais comovente para mim, não incluindo as cenas de arquivo, foram as entrevistas com pessoas que perderam seus entes queridos. Foram entrevistas duras porque elas sabiam porque estavam ali. E sabiam que teriam de responder a perguntas. E elas abriram seu coração. Foi muito comovente. Para mim, não consigo apreender o que passaram. Mas ver - é difícil fazer perguntas que você sabe que vai deixar a pessoa prostrada. Não é fácil, nem divertido. Mas tive que fazer essas perguntas.

Fiquei surpreso como você apareceu em muitos desses momentos. Vemos como você entra na discussão dando uma palavra de apoio e encorajamento. O que passou pela sua cabeça quando estava sentado ao lado de uma pessoa abrindo o seu coração daquela maneira?

Tentei não as interromper. Não fui bem-sucedido o tempo todo, mas faz parte do meu trabalho. Quis que as pessoas fossem informadas. E isto é muito importante: acho que elas confiaram em mim. As pessoas, não a polícia de Nova York, confiaram que esse documentário não seria uma exploração. E não quero trair sua confiança.

Ouvir que 600 mil morreram de covid, ou mais de três mil morreram nos ataques de 11 de setembro, esses são apenas números. Mas esses números são de seres humanos. Pessoas que eram amadas por suas esposas, filhos, amigos, parentes. Quem são elas? Quem são esses afegãos que estavam no trem de aterrissagem do avião e caíram? Você tem de mostrar o elemento humano, sabe. Não se trata apenas de números.

Os atentados de 11 de setembro completam 20 anos em 2021 Foto: Richard Drew / AP

Outra coisa que o documentário mostra, de maneira crua, é que a vida continua. Se você assistiu a Uma família de pernas para o ar, perdi minha mãe quanto estava iniciando a faculdade. Ela não chegou a ver nada dos meus trabalhos. E está comigo o tempo todo, mas, você sabe, a vida segue em frente. Nas entrevistas com essas pessoas que perderam entes queridos, senti que as entendia muito bem. Você não consegue substituir o amor de um ser querido e vai ter saudades dele a vida inteira, mas a vida tem de continuar. Acho que é algo muito importante mostrar isso neste filme.

Acha que sua própria experiência de perder sua mãe o ajudou a se conectar com aquelas pessoas?

Claro. Minha mãe, meus avós. Cada pessoa é diferente. Mas perder quem você ama é perder quem você ama. Assim, posso dizer que sei o que é uma perda, mesmo hoje.

 Como você lida com o enfrentamento dessa dor depois de 20 anos?

Com compaixão. Lembra da atriz LaChanze?

Sim, seu marido, Calvin Gooding, morreu nos atentados de 11 de setembro quando ela estava grávida.

Eu chorei por ela. Aquilo me derrubou. Não para negar a perda de outros, mas quando ela teve uma crise, eu também fiquei mal. Mas esse é o meu trabalho. Mas há muito humor no filme, também, o que não foi planejado, mas houve momentos em que o humor simplesmente apareceu. / Tradução de Terezinha Martino

NOVA YORK - Spike Lee, como a cidade de onde vem, exala uma intrépida resiliência. A expressão tranquila do seu rosto diz: “Me coloque à prova”. Em Nova York existe essa sensação de que as provações nos aguardam de todo o lado, como se fosse um direito inato, sejam coisas do cotidiano (aguentar o cheiro do lixo nos dias de verão) ou catastróficas (os atentados do 11 de setembro, o primeiro surto da covid-19).

O diretor Spike Lee em sua casa, em 2020; ele fala agora sobre 'NYC Epicenters 9/11-2021 1/2' Foto: Andre D. Wagner/The New York Times

Em sua nova série documental, New York Epicenters: 9/11 - 2021 ½ - o primeiro dos seus quatro episódios estreou no domingo na HBO - Spike Lee lembra o espírito infatigável de Nova York. Dezenas de nova-iorquinos, envolvidos por um tênue brilho azul diante de um pano de fundo preto, prestam seu depoimento em entrevistas que relatam cada fase dos dois desastres. Os dois primeiros episódios focam na pandemia; os dois posteriores retomam os ataques contra o World Trade Center.

Muitos dos rostos são bem conhecidos - o senador Chuck Summer, o prefeito Bill de Blasio, Rosie Perez - mas a maior parte da história é contada da perspectiva dos que foram menos vistos e que mais viram: trabalhadores da saúde, bombeiros, ativistas e sobreviventes. Eles formam uma espécie de coro tendo Spike Lee como maestro, abrandando as coisas ou as acelerando à medida que as lembranças individuais se harmonizam e divergem.

Recentemente conversei com Spike Lee num bate-papo por vídeo sobre a série, sua própria sensação de dor, e porque ele ainda questiona o que causou o colapso dos edifícios do World Trade Center. Abaixo trechos da conversa.

Como nasceu a ideia desta série? Por que o senhor quis realizar um documentário unindo a experiência de Nova York com a covid e o 11 de setembro?

 Bem, algo que é ignorado é que sou um realizador de documentários também. Mas para mim, ainda prevalece a narrativa. Não coloquei os dois fatos segmentados, como duas categorias diferentes. E sou nova-iorquino. Não gosto da palavra aniversário, mas passados 20 anos desde o 11 de setembro, e com as pessoas com frequência falando de Nova York durante a covid, “Este é o epicentro” foi algo natural.

O que você viu como conexão entre os dois eventos?

Acho que estamos honrando as pessoas que perderam suas vidas, pessoas que perderam a vida com doenças relacionadas aos atentados do 11 de setembro. E também os mais de 600.000 americanos que não estão mais aqui por causa da covid. Mais americanos morreram em consequência da covid do que os que perderam a vida na Segunda Guerra Mundial, na Guerra da Coreia, Vietnã, Iraque, e ironicamente no Afeganistão, no total.

Você entrevistou mais de 200 pessoas para a série - líderes políticos e atores, trabalhadores da saúde e ativistas. Quem você buscou?

Bom, tivemos excelentes pesquisadores - Judy Alei comandou uma equipe fenomenal. E pessoas que eu conhecia, pessoas sobre as quais eu li no The New York Times. Eu quis ser o mais equilibrado possível, um caleidoscópio de testemunhas. É como as chamamos: são testemunhas. As únicas pessoas que disseram não foram os policiais de Nova York. Eles não aparecem bem. E aquela cena (da polícia atacando manifestantes do Black Lives Matter em 2020) não mente. Eles estavam arrebentando cabeças).

Eles não quiseram falar com você? Não poderiam se defender?

Eles viram Faça a Coisa Certa.

 O que mais o deixou comovido?

O mais comovente para mim, não incluindo as cenas de arquivo, foram as entrevistas com pessoas que perderam seus entes queridos. Foram entrevistas duras porque elas sabiam porque estavam ali. E sabiam que teriam de responder a perguntas. E elas abriram seu coração. Foi muito comovente. Para mim, não consigo apreender o que passaram. Mas ver - é difícil fazer perguntas que você sabe que vai deixar a pessoa prostrada. Não é fácil, nem divertido. Mas tive que fazer essas perguntas.

Fiquei surpreso como você apareceu em muitos desses momentos. Vemos como você entra na discussão dando uma palavra de apoio e encorajamento. O que passou pela sua cabeça quando estava sentado ao lado de uma pessoa abrindo o seu coração daquela maneira?

Tentei não as interromper. Não fui bem-sucedido o tempo todo, mas faz parte do meu trabalho. Quis que as pessoas fossem informadas. E isto é muito importante: acho que elas confiaram em mim. As pessoas, não a polícia de Nova York, confiaram que esse documentário não seria uma exploração. E não quero trair sua confiança.

Ouvir que 600 mil morreram de covid, ou mais de três mil morreram nos ataques de 11 de setembro, esses são apenas números. Mas esses números são de seres humanos. Pessoas que eram amadas por suas esposas, filhos, amigos, parentes. Quem são elas? Quem são esses afegãos que estavam no trem de aterrissagem do avião e caíram? Você tem de mostrar o elemento humano, sabe. Não se trata apenas de números.

Os atentados de 11 de setembro completam 20 anos em 2021 Foto: Richard Drew / AP

Outra coisa que o documentário mostra, de maneira crua, é que a vida continua. Se você assistiu a Uma família de pernas para o ar, perdi minha mãe quanto estava iniciando a faculdade. Ela não chegou a ver nada dos meus trabalhos. E está comigo o tempo todo, mas, você sabe, a vida segue em frente. Nas entrevistas com essas pessoas que perderam entes queridos, senti que as entendia muito bem. Você não consegue substituir o amor de um ser querido e vai ter saudades dele a vida inteira, mas a vida tem de continuar. Acho que é algo muito importante mostrar isso neste filme.

Acha que sua própria experiência de perder sua mãe o ajudou a se conectar com aquelas pessoas?

Claro. Minha mãe, meus avós. Cada pessoa é diferente. Mas perder quem você ama é perder quem você ama. Assim, posso dizer que sei o que é uma perda, mesmo hoje.

 Como você lida com o enfrentamento dessa dor depois de 20 anos?

Com compaixão. Lembra da atriz LaChanze?

Sim, seu marido, Calvin Gooding, morreu nos atentados de 11 de setembro quando ela estava grávida.

Eu chorei por ela. Aquilo me derrubou. Não para negar a perda de outros, mas quando ela teve uma crise, eu também fiquei mal. Mas esse é o meu trabalho. Mas há muito humor no filme, também, o que não foi planejado, mas houve momentos em que o humor simplesmente apareceu. / Tradução de Terezinha Martino

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