Mergulhe em um romance de Stephen King ou assista a uma das adaptações de seus livros para o cinema e as alegrias da vida rapidamente se transformam em terrores. Carros são armadilhas para homens perversos. O baile de formatura é um pesadelo. Cães? Completas máquinas de destruição.
Mas pergunte a Pablo Larraín, diretor de Lisey’s Story, a nova minissérie sobrenatural baseada no romance de King de 2006 e no mundo de King, e ele dirá que o terror é uma fonte de alegria. Larraín descobriu isso quando visitou King na casa do autor no Maine.
“Ele me convidou para ficar em sua casa de hóspedes e me disse: 'Você é o único hóspede, mas isso não significa que esteja sozinho', e foi embora”, disse Larraín, o diretor chileno que é mais conhecido pelo filme Jackie. “Mal consegui dormir.”
“Na manhã seguinte, ele entrou na casa com ovos e zombou de mim”, disse Larraín. King sabia que ele tinha feito o diretor sentir medo sem nenhuma razão.
Sozinho, mas nem tanto é um tema que percorre todo o corpo da obra de King e reaparece para vários personagens por meio de camadas de tempo e espaço em Lisey’s Story, que estreia sexta-feira na Apple TV +. Julianne Moore interpreta Lisey Landon, a viúva de Scott Landon, um famoso romancista (interpretado por Clive Owen) cujos traumas de infância o levaram a forjar uma conexão com um mundo em uma dimensão diferente das três que conhecemos, chamado Boo’ya Moon.
Como brilhantemente é retratado na série, Boo'ya Moon é um lugar tranquilo e belo, como um país das maravilhas pré-rafaelita. Mas também é um território ameaçador, onde figuras encapuzadas sentam-se silenciosamente dentro de um enorme anfiteatro esperando resoluções para traumas terrestres.
Nos últimos anos, houve uma série de adaptações brilhantes para a TV das obras de King, incluindo The Outsider, O domo e O nevoeiro. Mas Lisey’s Story é diferente. King disse que o romance é um de seus favoritos e que ele mesmo gostaria de adaptá-lo. E assim o fez: King escreveu a série inteira, algo que ele não tinha feito para nenhuma adaptação de um romance seu para a TV desde que escreveu a versão da minissérie para a ABC de O Iluminado (1997).
“Eu me apeguei a isso da mesma forma que você se apega a algo que ama”, disse King, 73 anos, no mês passado por telefone.
Como em muitas histórias de King, um elemento-chave de Lisey’s Story é a doença mental. O território instável entre a realidade e a paranoia é retratado com sensibilidade por Joan Allen em seu papel como a irmã de Lisey, Amanda, que é tratada em uma instituição mental para catatonia e automutilação, aflições que mascaram segredos sobrenaturais. (Jennifer Jason Leigh interpreta a terceira irmã, Darla.) Por outro lado, há Jim Dooley (Dane DeHaan), um stalker enlouquecido cuja busca obstinada pelo trabalho não publicado de Scott tem consequências violentas para a família.
Direto do Maine, King falou das muitas camadas de histórias de Lisey’s Story, das responsabilidades dos criadores de terror e de como talvez não exista nada que gere mais sustos do que a mente humana. Estes são trechos editados dessa conversa.
Por que você decidiu adaptar, entre todos os seus romances, “Lisey’s Story"?
Eu me apeguei a esse livro mesmo sem ter expectativas de que um dia fosse fazer algo com ele. Mas eu adoro este livro! Normalmente, trato meus livros como se fossem um filho que vai para a faculdade. Você espera que eles se saiam bem, mas não interfere em nada. Se eles fizerem um ótimo trabalho, você pode dizer: “Isso foi graças ao meu trabalho”. Caso contrário, pode dizer que foram eles que fizeram besteira. Se você vai estar nisso, é melhor estar em todo o processo. É um grande compromisso quando você já está na casa dos 70 anos.
Por que adaptar em episódios para televisão?
É um formato que se assemelha mais a um romance. Lisey’s Story é um livro longo. Os romances que parecem funcionar melhor como filmes são os mais curtos e simples. Não acho que Lisey’s Story funcionaria como um filme porque tem muitas camadas.
Também adoro a ideia de que se pode distribuir a história um pouco. Mas é preciso tomar cuidado, porque se vai durar oito horas, você tem que segurar a audiência.
Descobrir o que está dentro e fora dos limites quando se trata de descrever doenças mentais pode ser complicado, principalmente no gênero de terror, em que a loucura motiva quase tudo.Como você se certifica de fazer isso de maneira sensível?
É importante ver que os personagens são bem desenvolvidos e não desequilibrados - não estão ali para zombar de alguém com um problema mental ou dizer que é culpa deles. Eu não acho que seja. Você tem que ver o (personagem) doente mental como não culpado. Mesmo assim, eles precisam ser tratados ou levados para um lugar onde não possam machucar outras pessoas.
Quanto do personagem de Dane é baseado na sua própria experiência com stalkers?
Já tivemos experiências e tanto em relação a isso. Um deles invadiu nossa casa. Eu não estava lá. Tabby (a escritora Tabitha King, esposa de King) estava em casa sozinha e o cara lhe disse que tinha uma bomba. Ele tinha uma caixa, mas não havia uma bomba nela.
Havia borrachas e coisas amarradas com aquele fio metálico que fecha embalagens de pão de forma. Tabby correu para fora de casa, foi para a casa do vizinho e chamou a polícia. O cara provavelmente não era perigoso. Há outro que dirige pela vizinhança com uma van que tem a frase “Eu matei John Lennon”. Existe gente louca por todos os lados.
Dizem que no minuto em que se mostra o monstro, tira-se o poder dele. Lisey’s Story é uma série adaptada em que não se fala do monstro, mas ele é mostrado; ao contrário de The Outsider, que quase não retrata algo sobrenatural. Por que essa estratégia?
O mundo real precisa ser criado com cuidado. Você tem que costurar fantasia e horror de modo sutil para que a pessoa que assiste [a série] ou lê o livro diga “Essas são pessoas reais; eu entendo os problemas delas”. Então você diz: “vou colocar essas pessoas que você conhece e entende em uma situação diferente que provavelmente não é real”. The Outsider, tanto a série como o livro, mostram como reagimos quando nos deparamos com o inexplicável.
Lisey’s Story tem elementos que são realistas. Pablo e eu gastamos um bom tempo na pré-produção e ele disse: “Stephen, Boo’ya Moon não existe de verdade, não é? Trata-se de uma fantasia construída para a qual Scott escapa de sua doença mental, como uma válvula de escape”. Respondi: “É um lugar real, independentemente de existir antes ou de ele ter criado”. Pablo aceitou isso e tornou-se um grande fã da ideia.
Há uma cena com os personagens de Julianne e Dane que envolve um cortador de pizza e é bastante sangrenta. Seus pensamentos mudaram ao longo do tempo em relação a quais responsabilidades artistas do terror têm ao retratar violência, principalmente violência contra mulheres?
A violência contra mulheres acontece de verdade e a real questão (ao se escrever ficção) é como a mulher vai reagir a ela. Lisey responde tornando-se mais forte. Nesse sentido, ela é um exemplo a ser seguido. Aquelas cenas são difíceis de se ver, mas é como o que Hitchcock disse a respeito de Psicose: grande parte do que existe está em nossa imaginação. Nunca vemos um único corte ser realizado em Julianne Moore, ou um golpe atingir seu rosto. Você escuta sons e ouve as reações dela e as consequências, mas não os atos em si.
Minha opinião em relação ao que talvez se chame de pornografia da violência – quando você vê alguém ser esfaqueado no rosto - é que é importante se preocupar com os personagens. Não é como nos filmes da franquia Sexta-feira 13 em que você vai ao cinema para ver garotas de 16 anos serem assassinadas de 16 maneiras interessantes, seja com a arma atravessando o peito ou esmagando cabeças. Lisey’s Story é mais artístico e mais instigante mentalmente.
Você disse que 'Lisey's Story' foi provocada por uma experiência de quase morte. Como isso o fez reavaliar sua vida e trabalho?
Tive pneumonia e fiquei internado no hospital por um longo período. Estava muito doente e minha esposa aproveitou a oportunidade para redecorar meu escritório, que estava velho e em péssimas condições. Para mim, ele era quase como um terminal, o lugar para onde eu ia quando queria me lançar em outras realidades
Depois que tive alta, ela disse: “Talvez você não queira ir para o seu escritório. Você não vai gostar dele”. É óbvio que fui até lá e ele estava em um estado de transição. Todos os livros tinham sido empacotados em caixas para depois voltarem para as prateleiras. Eu estava sob efeito de diferentes remédios e ao observar o escritório, pensei que estava morto. Isso é o que acontece: você tem que dar um jeito em tudo depois que a pessoa morre. Então me dei conta de que isso daria um ótimo início de história e todo o resto dela se encaixou.
TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA