Com ar de menino travesso, metido em um smoking, Lars Von Trier, então um cineasta com apenas três longas no currículo, encerrava cada episódio da série The Kingdom, que ele fez nos anos 1990, convidando o espectador a assistir ao próximo capítulo. Em The Kingdom Exodus, a terceira temporada, que chega 25 anos após a segunda na plataforma de streaming Mubi, ele não aparece, por motivos de vaidade, explica. O diretor dinamarquês, de 66 anos, eterno enfant terrible do cinema de autor mundial, anunciou em agosto estar com Parkinson.
É por isso que a entrevista sobre The Kingdom Exodus, durante o Festival de Veneza, no qual a série foi exibida fora de competição, é feita por videoconferência. Von Trier contou estar melhor que na época da filmagem. E mostrou que continua com aquele humor sarcástico de sempre.
The Kingdom Exodus ainda usa a câmera frenética das duas primeiras temporadas, mas a imagem granulada foi abandonada. Mais maduro, Von Trier arrisca como nunca e faz graça de si mesmo, falando de uma mulher (Bodil Jorgensen) que sofre de sonambulismo e quer porque quer ser tratada na área de neurologia do hospital The Kingdom, por ser fã da série. Novamente, as coisas mais absurdas acontecem naquele hospital.
Quando sentiu que era o momento certo para voltar ao mundo de The Kingdom?
A ideia era ter feito logo após as duas primeiras temporadas. Mas a atriz Kirsten Rolffes, que interpretou a personagem principal, morreu. Aí, depois de uma pausa, eu precisava de um projeto. E The Kingdom foi o mais fácil e divertido. Eu me diverti muito escrevendo. Porque o diálogo e as respostas apareciam de repente e me surpreendiam.
Por que decidiu originalmente que ‘The Kingdom’ se passaria em um hospital?
Na época, foi muito baseado na série francesa chamada Belphegor, que vi quando era criança e se passava no Louvre, em Paris. E aquele era um lugar perfeito, porque era um labirinto, você não sabia onde estava o tempo todo. Eu via essas mesmas características em um hospital.
Acredita que está na hora de irmos além da dualidade de gênero?
Devo dizer que não concordo com você. Porque para mim é uma questão de encontrar o indivíduo. E quanto mais grupos você colocar, mais você consegue encontrar o código da pessoa. Para mim, saber que você é mulher ou aparenta ser mulher é só uma pequena informação que me faz trabalhar de uma forma especial. Minha mãe era a presidente da sociedade feminina dinamarquesa. E já faz muito tempo, mas ela era muito forte. Ela não acreditava que mulheres e homens deveriam ter forçosamente o mesmo número, porque, como mulher, não queria ter um emprego só por ser mulher. Essa era a opinião dela, e a minha também.
Mas não acha que em alguns casos isso se aplica?
Na Dinamarca, agora, eu vejo com meus filhos que as meninas são muito mais espertas que os meninos. Eles estão apenas brincando de alguma coisa estúpida, enquanto as meninas estão estudando. Elas vão assumir em pouco tempo todas as posições mais altas. Não temos de fazer nada a respeito disso. Não acho que tenhamos um problema tão grande. Mas tenho certeza de que outros países são muito mais restritos, eles têm um problema muito grande. Mas, quando olho para meninos e meninas, agora, as meninas estão muito na frente.
A televisão mudou muito desde que você fez ‘The Kingdom’ pela primeira vez. Você sentiu a necessidade ou a vontade de ajustar um pouco as coisas e ser ainda mais ousado do que naquela época?
Tenho um ditado que torna muito difícil trabalhar, mas tenho muito medo de fazer um filme de homem velho. Vi todos os filmes de Ingmar Bergman. Aí assisti a Fanny & Alexander e vi um homem que estava vendendo todas as suas boas ideias para o mainstream. Para mim, foi uma pena. Tenho certeza de que muitas pessoas gostam de Fanny & Alexander, mas para mim, como especialista, não fiquei feliz. E há muitos exemplos em que os diretores têm uma casa grande demais, e a única maneira de pagar por isso é buscar mais filmes comerciais, quando sua produção está diminuindo. E isso pode ser muito prejudicial para o cinema.
Você é um dos poucos cineastas que ainda conseguem fazer as pessoas aplaudirem em cena aberta, como aconteceu na sessão de ‘The Kingdom Exodus’ em Veneza, e também abandonar o filme no meio. Como é isso?
Quando mostramos Elemento de um Crime, meu primeiro filme, em Cannes, descobri um hábito muito estranho, porque, quando as pessoas se levantavam para ir embora, a cadeira fazia um barulho, assim: fup! Então, em determinado momento do filme, eu comecei a ouvir fup, fup, fup, fup, fup, fup, fup, fup. Foi uma espécie de sinfonia de pessoas saindo. Naquela época, eu já achava bom que algumas pessoas gostassem e outras não. Você tem de entrar no filme. Se você não consegue, é melhor sair. É uma escolha do espectador permanecer ou não.
Como você está de saúde?
Estou bem. Tremo um pouco. E tenho de me acostumar com isso. Mas é difícil, claro. Estou muito melhor que quando filmamos. Então, temo que você ainda vá sofrer, pois haverá outros filmes meus que ainda terá de assistir (risos).