Em certo episódio de O Que Fazemos nas Sombras, ainda em 2021, o vampiro Nandor vai para Atlantic City, Nova Jersey, e se apaixona por uma máquina caça-níqueis que tem The Big Bang Theory como tema. Um tempo depois, ele fica surpreso ao descobrir que The Big Bang Theory também é uma série de TV. “Muito fiel à máquina caça-níqueis!”, ele se maravilha.
Ainda não existe uma série baseada numa máquina caça-níqueis - que eu saiba. Mas Nandor está no caminho certo: a TV hoje está cheia de coisas-baseadas-em-outras-coisas. Filmes viram séries de TV (a começar por Sombras, adaptação de um filme de 2015), assim como livros e quadrinhos de super-heróis e podcasts e mangás e videogames.
Nandor também está ligado em outro lance: “fidelidade” virou palavra de ordem para as adaptações, às vezes uma medida de autenticidade, às vezes um cassetete para policiar divergências em relação a uma história muito adorada.
É um termo que levanta muitas perguntas sem resposta: fiel a quê ou a quem? Os fãs da obra original têm mais direito à adaptação do que todos os outros? Dá para ser fiel e criativo ao mesmo tempo? As pessoas que pedem fidelidade querem isso, por acaso? Ou querem simplesmente obediência?
Em sua recente apresentação de rebranding, o Max (serviço de streaming hoje conhecido como HBO Max, que vai reduzir seu nome no final deste mês) anunciou uma lista de programação cheia de coisas baseadas em outras coisas. Além de uma nova prequela de Game of Thrones adaptada dos romances de George R.R. Martin, uma versão em série do filme de terror The Conjuring e um spinoff de Big Bang Theory (parabéns, Nandor!), Max confirmou os planos para uma série que vai reaproveitar uma das propriedades mais valiosas da Warner Bros. Discovery: os livros de Harry Potter.
Grande parte da reação se concentrou, compreensivelmente, na notícia de que J.K. Rowling iria produzir a adaptação apesar da controvérsia - mesmo entre muitos fãs de Potter - sobre suas críticas ao “novo ativismo trans”. Mas outra curiosidade na tentativa do Max de arrancar mais leite da pedra filosofal foi a descrição da série como “uma adaptação fiel”.
Fiel comparado a quê? Os livros já foram adaptados para oito filmes, cuja aderência às tramas foi tão rigorosamente vigiada quanto a prisão de Azkaban. Mas, com um tempo de tela limitado e sem acesso ao vira-tempo de Hermione Granger, foi necessário fazer cortes. Já a série, planejada para durar uma década, com cada temporada baseada em um livro, teria espaço, nas palavras de Casey Bloys, presidente da HBO, para “mergulhar fundo” - ou seja, enfiar tudo aquilo que consta das listas o-que-os-filmes-deixaram-de-fora que os superfãs adoram fazer.
Mais “fiel”, aqui, significa mais exaustivo: mais comprometido em reproduzir, com um orçamento saudável, as imagens que já estão na cabeça do leitor. E aí está o problema da fidelidade: a versão estética, assim como a religiosa, pode levar a uma percepção superior, uma inspiração superior - ou pode prender você à interpretação literal implacável de um texto.
Adaptações são um pacto com o diabo. São feitas por um motivo, para obter as vantagens do reconhecimento da marca e de um público pré-existente. Mas com isso vem o fardo das expectativas: fãs do original fazendo comparações com o material fonte, alguns querendo uma nova versão, outros procurando uma ilustração mais completa em vídeo.
Ainda pior é quando se usa a palavra “fidelidade” como disfarce para obscurantismo. Veja por exemplo os fãs de O Senhor dos Anéis que se opuseram à escalação de atores não brancos para povoar a Terra Média, ou os devotos de The Last of Us que criticaram a adaptação do videogame porque a HBO expandiu a história de dois personagens gays para um episódio inteiro, supostamente com base naquele argumento do não-tinha-isso-no-jogo.
Daisy Jones & the Six, a série do Amazon Prime Video levemente inspirada na vida real, teve uma grande chance de repensar seu material de origem. O romance de Taylor Jenkins Reid contou a história de um supergrupo fictício semelhante ao Fleetwood Mac em forma de história oral, dispositivo que funcionava na página, mas precisava ser repensado para a tela. Como Eleanor Henderson escreveu em sua resenha do romance para o New York Times, “o formato do roteiro limita inerentemente nosso acesso ao eu mais íntimo das personagens”.
Infelizmente, a adaptação de Scott Neustadter e Michael H. Weber (500 Dias com Ela) só enche linguiça. A série dedica muita energia para encenar as principais apresentações e momentos musicais do romance (que necessariamente deixava muito para a imaginação do leitor), mas os dramas pessoais e os conflitos artísticos não passam de clichês do rock ‘n’ roll. O resultado pode até ser um complemento de áudio bastante fiel ao romance. Mas, como série de TV, mais parece um flashback desajeitado de This Is Us.
Se Daisy Jones acaba sendo um cover apático, Dead Ringers do Prime Video é um experimento brilhantemente temerário. Seu material genético é o filme de terror de David Cronenberg de 1988 (vagamente baseado num romance, que, por sua vez, ecoava de longe uma história verdadeira) sobre a queda na loucura de dois ginecologistas gêmeos, ambos interpretados por Jeremy Irons.
A série de seis episódios reinventa os protagonistas gêmeos, a obstetra idealista Beverly Mantle e a ambiciosa pesquisadora biomédica Elliot Mantle, cada uma delineada com tanta clareza por Rachel Weisz que você às vezes esquece que existe uma atriz só.
A inversão de gênero das protagonistas reformula as ideias do filme original sobre a sangrenta maquinaria do parto - enraizando a história não no horror abstrato, mas na realidade das mulheres. E a série vai muito além. É uma comédia cáustica e absurda, um drama psicológico de dependência entre irmãs e uma abordagem irônica do privilégio e do capital de risco na medicina. (As irmãs cortejam uma amoral herdeira da indústria dos opioides, interpretada por Jennifer Ehle). Weisz e a escritora Alice Birch criaram um monstro maravilhoso que responde com firmeza às perguntas com as quais muitas adaptações se atrapalham: por que se esse tema é importante e por que agora?
Não posso dizer o mesmo da reformulação do Paramount+ do thriller erótico Atração Fatal (1987), com Lizzy Caplan e Joshua Jackson como os protagonistas de um caso que dá criminalmente errado. A atualização tem boas intenções, com Caplan expandindo a obsessiva e problemática coelhinha interpretada por Glenn Close. Mas acaba sendo um eco tedioso e melancólico de dramas conjugais sofisticados, como The Affair (no qual Jackson também apareceu), embora seja muito limitado pelos parâmetros da história original para ir a qualquer lugar que valha a pena.
Não deixa de ser curioso, acho eu, que um drama sobre infidelidade caia na armadilha da fidelidade. No fim das contas, adaptação não é casamento. Na melhor das hipóteses, é um relacionamento aberto. A fidelidade é uma bela qualidade na vida real, mas, quando se trata de ficção, a traição deixa a história bem melhor, inevitavelmente. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU