Aos 86 anos, Ivan Ângelo não pensa em parar de escrever. Profissional das letras desde os anos 1950, ele estreou na literatura com o conto Culpado Sem Crime, premiado pela prefeitura de Belo Horizonte em 1954. Em 1959, saiu sua primeira seleta de contos, Homem Sofrendo No Quarto, para, em 1961, começar a esboçar A Festa, que revela a veia de contista do escritor ao explicitar o cruzamento dos gêneros literários – o romance foi publicado 15 anos depois, em 1976, quando a ditadura militar abrandava.
Com A Festa, Ivan Ângelo ganhou seu primeiro prêmio Jabuti, feito que voltou a acontecer em 1996, pelo livro Amor? (Companhia das Letras), publicado um ano antes. Mudou-se para São Paulo nos anos 1960 e trabalhou em diversos jornais e revistas, fazendo do jornalismo seu ganha pão. Sex Shop Miscelânea Libidinosa (Faria e Silva), é um apanhado de contos, crônicas e aforismos reunidos durante anos de produção em ritmo quase industrial.
Os dilemas amorosos são marca de sua obra, sua vasta produção de crônicas, algumas delas no volume. Em entrevista ao Estadão, o autor reflete sobre as possibilidades da escrita, o sexo como produto literário e o Brasil.
Ivan, qual foi o insight para escrever ‘Sex Shop’?
O livro foi-se escrevendo, nesses mais de quarenta anos. Contos que se encaixaram bem naquelas revistas de mulher pelada, apesar de muito elaborados literariamente. Nem sei se os leitores típicos daquelas publicações chegaram a apreciá-los como matéria excitante. Artigos que são tentativas de refinar o trato dos homens com os delicados equipamentos femininos. Descrições poetizadas de alguns desses equipamentos. Informações proveitosas sobre as loucuras do mundo obscuro, tratadas com mão leve e sem intenção de escândalo. Poemas, se é que posso chamá-los assim, que brincam com palavras e seus sentidos marotos. Tem material inédito e não inédito. Achei que era bom o momento de publicá-lo em livro porque o Brasil se tornou metáfora de uma sex shop.
Qual foi o papel da literatura na sua educação sexual?
Sou de um tempo em que não havia educação sexual. Éramos todos mal educados, meninos e meninas, não no sentido de grosseiros. O que havia era curiosidade e buscas: o método era como o braile, na ponta dos dedos acendiam-se as luzes do entendimento. Isso antes da fase de leitura dos livros. Os livros eram coisa de pré-adolescentes e adolescentes, abriam horizontes de aventuras, paixões, geografias e mistérios, inclusive os gozosos. Sempre dava para encontrar um livrinho de sacanagem. Para quem procura, até dicionário serve. A partir dos libertários libertinos da época da Revolução Francesa e depois, com os autores do realismo, muita literatura erótica foi impressa no mundo, e o que nos caía em uma das mãos dava ideias à outra. Isso não era uma adequada educação sexual, mas cumpria a sua função digamos pedagógica. Depois, com as grossuras das últimas décadas do século vinte, vieram os livros feitos só para isso, só para excitar, e aí já não podemos falar de literatura.
Ivan Ângelo
Muitos autores trataram o sexo com versatilidade e lirismo, como Hilda Hilst, por exemplo. Como o senhor vê essa profusão da literatura erótica para além da sacanagem?
Tenho certa preguiça de ler esses livros monocórdios, narrativas que se repetem descrevendo cenas de sexo, sambinha de uma nota só. Quando, nos anos 1950 e 1960 as editoras no mundo inteiro abriram-se para os livros que tratavam abertamente do sexo, isso era demolidor, ousado. Três décadas antes D. H. Lawrence não conseguia editoras para O Amante de Lady Chatterley, temerosas das condenações moralistas, James Joyce e sua editora sofreram perseguições com o Ulysses. Os livros de Henry Miller, Tópico de Câncer e Trópico de Capricórnio, escritos na década de 1930, só foram liberados nos Estados Unidos na década de 1960, e continuaram proibidos aqui, na ditadura militar. Quero dizer, aprecio esses livros em que o sexo faz parte do assunto mas não são o assunto. Não é o caso de Hilda Hilst, claro, mas é o de muitos. Gosto da literatura erótica produzida por mulheres, creio que é por causa do ponto de vista, ela amplia a visão que nós homens temos da mulher.
Dizem que o Brasil fica cada dia mais careta. Sex Shop, então, seria uma provocação com o tal país ‘imbrochável’?
Imbrochável? O país está politicamente brocha, não há mais paixão, entusiasmo, fogo, calor político. Sex Shop se refere mais à vitrine do que às ações. O Brasil se exibe pelado, nas ruas, nos shows, na televisão, nas praias, mas as pessoas se amam menos, casam menos, é mais um show. Só o bolsonarista trepa, mas é nas motocicletas. O impotente, o reprimido e o inibido apelam para a violência, com a qual compensam a falta de sexo amoroso. Vemos violência por toda parte e em todos os níveis, do rico ao pobre, qualquer divergência se resolve na agressão, no tiro, no espancamento.
Lembro de um conto de Ignácio de Loyola Brandão, ‘Obscenidades de Uma Dona de Casa’, que chegou até ser censurado à época, por falar abertamente dos desejos de uma mulher. Já aconteceu algo parecido com o sr.?
Censura moralista? Não. Também não cheguei a escrever dentro dessa temática quando havia oficialmente esse tipo de censura no Brasil. Nelson Rodrigues foi censurado por imoralidade. Muitos outros autores foram, obras foram proibidas. Isso felizmente acabou, vivemos um período em que as donas de casa podem buscar prazeres numa sex shop.
Ivan Ângelo
Seu romance ‘A Festa’ continua sendo uma leitura essencial para compreender o período turbulento da ditadura, como foi o processo de escrita?
Para compreender o período da ditadura e dos seus absurdos, as gerações de mais de quarenta anos deveriam estudar a biografia detalhada do presidente da República que temos aí. Ele é um produto daquilo, foi formatado lá, estudou com os militares. Ideias, estilo, ações, limitações, arrogância, preconceitos, desrespeito à Constituição, destruição da natureza, insensibilidade, maldade, grosseria, machismo, ódio, sadismo, está tudo lá. Quanto ao romance A Festa, eu trabalhava, desde 1963, em Belo Horizonte, nesse projeto, que foi interrompido pelo golpe de Estado de 1964. O pano de fundo ainda não era a ditadura, claro. Eu tinha a estrutura planejada e três capítulos prontos, se podemos chamar assim, três contos, na verdade. Parei tudo, fiquei trabalhando com jornalismo e publicidade, e no fim do ano seguinte, 1965, vim para São Paulo, para ajudar a fazer o Jornal da Tarde. O projeto do romance ficou parado uns dez anos. Quando o retomei, em 74, as impossibilidades do Brasil daquele tempo, que centrei em 1970, tornaram-se o tema estruturante do livro. Eu o terminei em 1975. Ainda se matava gente sob tortura na prisões da ditadura, como mataram o jornalista Vlado Herzog e o operário Manoel Fiel Filho. Depois de recusado por duas editoras, por medo dos prejuízos de uma possível proibição, o romance foi publicado em 1976 por uma pequena editora do bairro de Perdizes, a Vertente, do Wladyr Nader.
Ainda em ‘A Festa’, o sr. cruzou Romance e Conto, gêneros canônicos literários, ao que a crítica chama de Caleidoscópio. Como foi subverter esses gêneros canônicos e criar ‘A Festa’?
A ideia era essa, e quanto ao gênero literário chamei-o na capa de “romance/contos”. Tomemos uma festa. As pessoas que estão participando dela têm todas uma história anterior, lógico. Pelo meu projeto, algumas das principais personagens relacionadas com a festa teriam suas histórias anteriores àquele momento contadas em contos. Seriam reunidas com outros convidados nos flashes do episódio chamado Antes da Festa. Depois viria a parte da festa em si, e finalmente viria a parte que se chamaria Depois da Festa, na qual se contariam fatos posteriores e consequentes à festa. Acabei eliminando a parte da festa, que seria um longo travelling cinematográfico dentro da festa. Por que eliminei? Achei que ia dificultar para o leitor, e também porque poderia parecer exibicionismo técnico. Mas não deixei de mostrar no próprio livro como seria essa parte eliminada. Respondendo à sua pergunta, sobre subverter gêneros, a intenção não foi bem essa, foi mostrar ao leitor que uma festa não é só uma festa, que um país não é uma abstração.
Ivan Ângelo
O sr. trabalhou muitos anos no Jornal da Tarde e em revistas, como a Vejinha, esta última passagem como cronista. Como o senhor vê o espaço da literatura na imprensa?
Os jornais brasileiros sempre gostaram desse espaço de criação que é a crônica. Fui cronista de jornais por muitos anos, depois de revista, na Vejinha. É um espaço de exercícios de estilo para os escritores, nos melhores casos, e de fruição literária dos leitores, também nos melhores casos. O Jornal da Tarde foi um caso em que repórteres podiam buscar um estilo literário em suas matérias, editores e redatores procuravam acabamento literário na edição do material. Isso foi, digamos, um luxo na imprensa, como foi também a revista Realidade. O espaço dedicado hoje aos criadores de literatura, poetas e ficcionistas, e à crítica aprofundada, tem diminuído, em comparação com os gloriosos anos sessentas e setentas e oitentas, e também em comparação com os espaços dados às áreas de entretenimento, mas acho essa ajuda da imprensa fundamental para divulgação, avaliação e registro histórico.
Ivan, quais são suas referências literárias e quais projetos você tem em mente?
Referências são as artes, as linguagens todas, os processos que procuro entender. Não só as artes, outras expressões e processos da sociedade também. Meus projetos atuais são, primeiro, sobreviver, segundo, manter-me lúcido e com a agilidade possível para além dos 86 anos completados neste fevereiro. Projetos literários? Terminar um romance que já vai bem adiantado, a que dei o nome de O Inferno Não é Igual para Todos. Acho que vai ficar bom. Outro projeto é terminar um livro de conversas com crianças, tipo filosofia para crianças, que tem o título provisório de Conversações com Algum Avô. E por fim publicar uns quatro livros que estão prontos, de histórias policiais, de crônicas só de amor, de prosa não ficcional e de encontros amorosos com Minas Gerais.