Silvina Ocampo narra a perda da ingenuidade em 'As Convidadas'


Seleta de contos traz enredos marcados pelo insólito, a violência e a crueldade

Por Diogo de Hollanda
Atualização:

Um recolhimento voluntário – ou forçado pelas circunstâncias – é invocado com frequência para tentar explicar a atenção discreta que, por muito tempo, a escritora argentina Silvina Ocampo recebeu do público e da própria crítica. Era como se seu nome, apesar dos méritos que lhe identificavam, estivesse sempre empalidecido por aqueles que a circundavam – entre os quais o marido, Adolfo Bioy Casares, o amigo Jorge Luis Borges (companheiro inseparável de Bioy) e a irmã mais velha, Victoria, fundadora da revista Sur e uma das intelectuais mais influentes do país. Foi quase no fim da década de 1990, com a reedição de seus livros e a multiplicação de trabalhos acadêmicos, que a obra de Silvina – morta em 1993, aos 90 anos – atingiu maior alcance, sendo considerada por muitos a maior escritora argentina e um nome imprescindível da ficção em língua espanhola.  Esta valorização é influenciada por diversos fatores, entre os quais o interesse crescente pela literatura escrita por mulheres e a maior abertura, no âmbito acadêmico, para autores que, em outros momentos, poderiam ser preteridos por não se conectarem com questões tidas como emergenciais do ponto de vista político. Além disso, a própria vida de Silvina – a relação conturbada com Victoria, o peculiar casamento com Bioy e os supostos casos com outras mulheres – atrai novos leitores. Um bom estímulo a essa curiosidade foi dado em 2018 pelo perfil La Hermana Menor: Un Retrato de Silvina Ocampo (Anagrama), escrito por Mariana Enríquez, uma das possíveis herdeiras da literatura de Silvina. 

Um cenário soturno toma contadas figuras na obra de Iberê Camargo Foto: Fundação Iberê Camargo

Nascida em 1903, em Buenos Aires, Silvina foi a sexta e última filha de uma família abastada, dona de vastas porções de terra e de uma fortuna acumulada por gerações. Seu desejo inicial era ser pintora, mas foi na literatura, principalmente no conto, que encontrou sua vocação. Estreou no gênero em 1937 e, ao todo, dedicou oito livros à narrativa breve, dos quais apenas dois publicados no Brasil – A Fúria, publicada em 2019 pela Companhia das Letras, e As Convidadas, que acaba de chegar às livrarias pela mesma editora

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as crianças encarnam o indecifrável: guardam, por vezes, segredos infranqueáveis e se lançam, com frequência, a atitudes desmedidas

Lançado originalmente em 1961, dois anos depois de A Fúria, As Convidadas é o quarto livro de contos de Silvina.  A obra reúne 43 relatos, a maioria curtos, como costumam ser os contos de Silvina. Personagens centrais de sua literatura, como crianças e empregados, têm participação expressiva nos enredos marcados pelo insólito, a violência e a crueldade. Presentes em quase metade das narrativas, as crianças encarnam o indecifrável: guardam, por vezes, segredos infranqueáveis e se lançam, com frequência, a atitudes desmedidas, como a do menino que, castigado pelo avô, decide se vingar cravando uma faca em seu peito. Igualmente notáveis são os personagens subalternos – muitos no âmbito doméstico, como empregadas, mordomos, porteiros, preceptora, e outros em funções diversas mas também associadas a segmentos mais pobres, como garçons, costureiras e mecânico.

A escritora argentina Silvina Ocampo, autora de 'As Convidadas' Foto: Pepe Fernandez
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Estes personagens, longe de um tratamento esquemático, tensionam a trama com sua ambiguidade, ora agredidos, ora agressores, trazendo nesta oscilação elementos como inveja e perversidade. Às vezes, mais do que tudo, são testemunhas do insólito, como a empregada de As Convidadas, surpreendida com a inesperada festa do menino deixado em casa durante as férias dos patrões. “Às cinco da tarde bateram na porta. A empregada foi abrir, achando que era um entregador ou um carteiro. Mas Lucio sabia quem batia. Não podiam ser senão elas, as convidadas.”

Assombradas pelo ciúme e pela traição, as histórias de amor precipitam-se na morte ou na certeza do fim. Em Anel de Fumaça, uma menina rica se apaixona por um rapaz pobre, a quem propõe que se suicidem, sabendo da impossibilidade de ficarem juntos. Contrapondo-se a esses elementos, um humor refinado se manifesta em muitos contos, como o da família atendida num restaurante por um garçom sabidamente morto ou o do médico que se notabiliza por inventar patologias.  Nesta experiência de leitura, há uma sensação de perda de ingenuidade (e a constatação ruborizada de que ainda se tinha ingenuidade). Muito além do universo temático, a desestabilização provocada pelos contos é operada por uma voz narrativa particularíssima, não raro materializada em narradores não confiáveis, que abrem brechas para duvidarmos do relato. Trata-se, em suma, de uma literatura de tal forma singular que, para Bioy Casares, não se parecia à de nenhum outro escritor – como se a única influência de Silvina tivesse sido ela própria.

AS CONVIDADAS 

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SILVINA OCAMPO 

COMPANHIA DAS LETRAS 

264 PÁGINAS 

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R$ 79,90 ou 39,90 (E-book) 

Um recolhimento voluntário – ou forçado pelas circunstâncias – é invocado com frequência para tentar explicar a atenção discreta que, por muito tempo, a escritora argentina Silvina Ocampo recebeu do público e da própria crítica. Era como se seu nome, apesar dos méritos que lhe identificavam, estivesse sempre empalidecido por aqueles que a circundavam – entre os quais o marido, Adolfo Bioy Casares, o amigo Jorge Luis Borges (companheiro inseparável de Bioy) e a irmã mais velha, Victoria, fundadora da revista Sur e uma das intelectuais mais influentes do país. Foi quase no fim da década de 1990, com a reedição de seus livros e a multiplicação de trabalhos acadêmicos, que a obra de Silvina – morta em 1993, aos 90 anos – atingiu maior alcance, sendo considerada por muitos a maior escritora argentina e um nome imprescindível da ficção em língua espanhola.  Esta valorização é influenciada por diversos fatores, entre os quais o interesse crescente pela literatura escrita por mulheres e a maior abertura, no âmbito acadêmico, para autores que, em outros momentos, poderiam ser preteridos por não se conectarem com questões tidas como emergenciais do ponto de vista político. Além disso, a própria vida de Silvina – a relação conturbada com Victoria, o peculiar casamento com Bioy e os supostos casos com outras mulheres – atrai novos leitores. Um bom estímulo a essa curiosidade foi dado em 2018 pelo perfil La Hermana Menor: Un Retrato de Silvina Ocampo (Anagrama), escrito por Mariana Enríquez, uma das possíveis herdeiras da literatura de Silvina. 

Um cenário soturno toma contadas figuras na obra de Iberê Camargo Foto: Fundação Iberê Camargo

Nascida em 1903, em Buenos Aires, Silvina foi a sexta e última filha de uma família abastada, dona de vastas porções de terra e de uma fortuna acumulada por gerações. Seu desejo inicial era ser pintora, mas foi na literatura, principalmente no conto, que encontrou sua vocação. Estreou no gênero em 1937 e, ao todo, dedicou oito livros à narrativa breve, dos quais apenas dois publicados no Brasil – A Fúria, publicada em 2019 pela Companhia das Letras, e As Convidadas, que acaba de chegar às livrarias pela mesma editora

as crianças encarnam o indecifrável: guardam, por vezes, segredos infranqueáveis e se lançam, com frequência, a atitudes desmedidas

Lançado originalmente em 1961, dois anos depois de A Fúria, As Convidadas é o quarto livro de contos de Silvina.  A obra reúne 43 relatos, a maioria curtos, como costumam ser os contos de Silvina. Personagens centrais de sua literatura, como crianças e empregados, têm participação expressiva nos enredos marcados pelo insólito, a violência e a crueldade. Presentes em quase metade das narrativas, as crianças encarnam o indecifrável: guardam, por vezes, segredos infranqueáveis e se lançam, com frequência, a atitudes desmedidas, como a do menino que, castigado pelo avô, decide se vingar cravando uma faca em seu peito. Igualmente notáveis são os personagens subalternos – muitos no âmbito doméstico, como empregadas, mordomos, porteiros, preceptora, e outros em funções diversas mas também associadas a segmentos mais pobres, como garçons, costureiras e mecânico.

A escritora argentina Silvina Ocampo, autora de 'As Convidadas' Foto: Pepe Fernandez

Estes personagens, longe de um tratamento esquemático, tensionam a trama com sua ambiguidade, ora agredidos, ora agressores, trazendo nesta oscilação elementos como inveja e perversidade. Às vezes, mais do que tudo, são testemunhas do insólito, como a empregada de As Convidadas, surpreendida com a inesperada festa do menino deixado em casa durante as férias dos patrões. “Às cinco da tarde bateram na porta. A empregada foi abrir, achando que era um entregador ou um carteiro. Mas Lucio sabia quem batia. Não podiam ser senão elas, as convidadas.”

Assombradas pelo ciúme e pela traição, as histórias de amor precipitam-se na morte ou na certeza do fim. Em Anel de Fumaça, uma menina rica se apaixona por um rapaz pobre, a quem propõe que se suicidem, sabendo da impossibilidade de ficarem juntos. Contrapondo-se a esses elementos, um humor refinado se manifesta em muitos contos, como o da família atendida num restaurante por um garçom sabidamente morto ou o do médico que se notabiliza por inventar patologias.  Nesta experiência de leitura, há uma sensação de perda de ingenuidade (e a constatação ruborizada de que ainda se tinha ingenuidade). Muito além do universo temático, a desestabilização provocada pelos contos é operada por uma voz narrativa particularíssima, não raro materializada em narradores não confiáveis, que abrem brechas para duvidarmos do relato. Trata-se, em suma, de uma literatura de tal forma singular que, para Bioy Casares, não se parecia à de nenhum outro escritor – como se a única influência de Silvina tivesse sido ela própria.

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SILVINA OCAMPO 

COMPANHIA DAS LETRAS 

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R$ 79,90 ou 39,90 (E-book) 

Um recolhimento voluntário – ou forçado pelas circunstâncias – é invocado com frequência para tentar explicar a atenção discreta que, por muito tempo, a escritora argentina Silvina Ocampo recebeu do público e da própria crítica. Era como se seu nome, apesar dos méritos que lhe identificavam, estivesse sempre empalidecido por aqueles que a circundavam – entre os quais o marido, Adolfo Bioy Casares, o amigo Jorge Luis Borges (companheiro inseparável de Bioy) e a irmã mais velha, Victoria, fundadora da revista Sur e uma das intelectuais mais influentes do país. Foi quase no fim da década de 1990, com a reedição de seus livros e a multiplicação de trabalhos acadêmicos, que a obra de Silvina – morta em 1993, aos 90 anos – atingiu maior alcance, sendo considerada por muitos a maior escritora argentina e um nome imprescindível da ficção em língua espanhola.  Esta valorização é influenciada por diversos fatores, entre os quais o interesse crescente pela literatura escrita por mulheres e a maior abertura, no âmbito acadêmico, para autores que, em outros momentos, poderiam ser preteridos por não se conectarem com questões tidas como emergenciais do ponto de vista político. Além disso, a própria vida de Silvina – a relação conturbada com Victoria, o peculiar casamento com Bioy e os supostos casos com outras mulheres – atrai novos leitores. Um bom estímulo a essa curiosidade foi dado em 2018 pelo perfil La Hermana Menor: Un Retrato de Silvina Ocampo (Anagrama), escrito por Mariana Enríquez, uma das possíveis herdeiras da literatura de Silvina. 

Um cenário soturno toma contadas figuras na obra de Iberê Camargo Foto: Fundação Iberê Camargo

Nascida em 1903, em Buenos Aires, Silvina foi a sexta e última filha de uma família abastada, dona de vastas porções de terra e de uma fortuna acumulada por gerações. Seu desejo inicial era ser pintora, mas foi na literatura, principalmente no conto, que encontrou sua vocação. Estreou no gênero em 1937 e, ao todo, dedicou oito livros à narrativa breve, dos quais apenas dois publicados no Brasil – A Fúria, publicada em 2019 pela Companhia das Letras, e As Convidadas, que acaba de chegar às livrarias pela mesma editora

as crianças encarnam o indecifrável: guardam, por vezes, segredos infranqueáveis e se lançam, com frequência, a atitudes desmedidas

Lançado originalmente em 1961, dois anos depois de A Fúria, As Convidadas é o quarto livro de contos de Silvina.  A obra reúne 43 relatos, a maioria curtos, como costumam ser os contos de Silvina. Personagens centrais de sua literatura, como crianças e empregados, têm participação expressiva nos enredos marcados pelo insólito, a violência e a crueldade. Presentes em quase metade das narrativas, as crianças encarnam o indecifrável: guardam, por vezes, segredos infranqueáveis e se lançam, com frequência, a atitudes desmedidas, como a do menino que, castigado pelo avô, decide se vingar cravando uma faca em seu peito. Igualmente notáveis são os personagens subalternos – muitos no âmbito doméstico, como empregadas, mordomos, porteiros, preceptora, e outros em funções diversas mas também associadas a segmentos mais pobres, como garçons, costureiras e mecânico.

A escritora argentina Silvina Ocampo, autora de 'As Convidadas' Foto: Pepe Fernandez

Estes personagens, longe de um tratamento esquemático, tensionam a trama com sua ambiguidade, ora agredidos, ora agressores, trazendo nesta oscilação elementos como inveja e perversidade. Às vezes, mais do que tudo, são testemunhas do insólito, como a empregada de As Convidadas, surpreendida com a inesperada festa do menino deixado em casa durante as férias dos patrões. “Às cinco da tarde bateram na porta. A empregada foi abrir, achando que era um entregador ou um carteiro. Mas Lucio sabia quem batia. Não podiam ser senão elas, as convidadas.”

Assombradas pelo ciúme e pela traição, as histórias de amor precipitam-se na morte ou na certeza do fim. Em Anel de Fumaça, uma menina rica se apaixona por um rapaz pobre, a quem propõe que se suicidem, sabendo da impossibilidade de ficarem juntos. Contrapondo-se a esses elementos, um humor refinado se manifesta em muitos contos, como o da família atendida num restaurante por um garçom sabidamente morto ou o do médico que se notabiliza por inventar patologias.  Nesta experiência de leitura, há uma sensação de perda de ingenuidade (e a constatação ruborizada de que ainda se tinha ingenuidade). Muito além do universo temático, a desestabilização provocada pelos contos é operada por uma voz narrativa particularíssima, não raro materializada em narradores não confiáveis, que abrem brechas para duvidarmos do relato. Trata-se, em suma, de uma literatura de tal forma singular que, para Bioy Casares, não se parecia à de nenhum outro escritor – como se a única influência de Silvina tivesse sido ela própria.

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