Sinfonia de um escândalo: como John Neschling passou de maestro-herói a investigado por corrupção


Vaidade, ambição artística, individualismo... Como o maestro John Neschling passou de grande nomeda música brasileira, responsável por transformar a Osesp em orquestra de renome internacional,a investigado em um esquema de corrupção dentro do Teatro Municipal

Por João Luiz Sampaio

Se uma ópera fosse, este texto precisaria de um prólogo. Em I Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo, há um, famoso. Por entre as cortinas fechadas, o barítono pede licença ao público. Explica que fala em nome do autor, que lhe pede para avisar que a história a ser apresentada está repleta de vida: o artista, afinal, é antes de mais nada um homem.

Mas não estamos na Calábria do século 19. E o prólogo, aqui, pode estar dividido em duas cenas. A primeira tem local definido, data e hora de início. Dia 6 de agosto de 2012, Sala São Paulo, a Orquestra da Svizzera Italiana está pronta, à espera do maestro. Pouco depois das 21 horas, entra John Neschling. É seu retorno àquele palco, três anos depois de sua traumática demissão da direção artística da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) após desentendimentos com o governo do Estado. A plateia o recebe de pé. “Volta, volta”, o grito aos poucos ganha força. Ele sorri.

A segunda cena se desenrola em outro palco, a Câmara Municipal de São Paulo. Começa na manhã da última quarta-feira, quando Neschling chega acompanhado de um advogado ao plenário para acareação com o ex-diretor da Fundação Teatro Municipal, José Luiz Herencia. Na noite anterior, a Justiça havia autorizado a condução coercitiva do maestro à CPI que investiga o teatro. Questionado pelos vereadores e acusado por Herencia o maestro responde da mesma forma durante as quase duas horas de sessão, transmitida pela internet e acompanhada de perto pela imprensa: “Permanecerei em silêncio”.

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É entre uma cena e outra que se passam os episódios que, nos últimos meses, transformaram o heroi responsável pelo projeto que fez da Osesp um novo paradigma da música de concerto brasileira em investigado em um esquema de corrupção montado dentro do Teatro Municipal. Uma história que, entre idas e vindas, fatos e versões, afirmações e desmentidos, e personagens dos mais variados, fala muito a respeito do maestro e de sua conhecida personalidade forte – mas também do modo como está estruturado o meio musical brasileiro e suas principais instituições.

‘De jeito nenhum!’. Após deixar a Osesp, em outubro de 2009, John Neschling confidenciou a amigos não ter intenção de voltar ao Brasil. Sentindo-se traído pelo conselho administrativo que ele havia pessoalmente escolhido, voltou para a Suíça. Até que, em 2010, criou em parceria com o Ministério da Cultura, então comandado por Juca Ferreira, a Companhia Brasileira de Ópera. Depois de um ano de apresentações, e de brigas internas, o maestro comunicou em seu blog o desligamento do grupo. “Parto para a Europa, pela primeira vez, desde 1997, só com passagem de ida.” Em 2013, no entanto, Juca Ferreira assumiu a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. “Sempre que algum posto em alguma orquestra ou teatro brasileiro vagava, as pessoas logo começavam a falar nele”, conta um ex-colaborador dos tempos da Osesp. “No fundo, havia a expectativa de que ele pudesse criar uma nova Osesp, um novo grande projeto.” O boato tornou-se realidade e, em fevereiro, o maestro deu sua primeira entrevista como diretor artístico do Municipal, ao lado de Herencia, novo diretor geral da fundação.

Após a conversa com os jornalistas, um fotógrafo quis fazer uma imagem de Neschling nas escadarias do Municipal. “De jeito nenhum! O que mais tem é foto de maestro subindo essa escada. Passa um tempo e estão todos descendo de volta, pegando o caminho de casa”, ele brincou. “Com um fundo de verdade”, diz uma amiga. “Ele se vê diferente dos demais maestros, sempre gostou dessa imagem de herói que o público e a imprensa criaram. Ele assumiu esse personagem, com um discurso de que, a partir da sua chegada, a situação se transformaria.” Vaidade ou ambição artística? “Quando se é ambicioso, você é capaz de realizar coisas grandiosas. Pessoas assim são polêmicas por natureza, têm uma noção de limite diferente. Elas testam esses limites e às vezes conseguem criar novas realidades”, diz um ex-colaborador.

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Flor do pântano. A chegada de Neschling ao Municipal não esteve livre de polêmicas. Além das críticas às gestões anteriores, ele cancelou projetos já contratados e diminuiu a participação de cantores brasileiros na temporada. Trouxe ao teatro estrelas como o barítono italiano Ambrogio Maestri ou o tenor argentino Marcelo Álvarez; e anunciou o investimento em uma central técnica de produção, para que São Paulo tivesse, enfim, “o grande teatro que nunca teve”, fazendo “ópera com qualidade”. “Essas posições talvez causem antipatia, façam com que ele se isole perante a classe artística. Mas são frutos de um projeto artístico sólido e claro que ele tem. Ele acredita no conceito de que ou se faz com qualidade ou é melhor não fazer”, afirma o maestro chileno Victor Hugo Toro, que foi assistente de Neschling na Osesp e o acompanhou nos primeiros meses de Municipal. “É preciso relativizar a questão do projeto sólido”, discorda uma antiga parceira de trabalho do maestro. “Não há uma preocupação com o meio musical. Há sempre a tentativa de reforçar a ideia de que aquilo que ele faz é a única flor do pântano.”

A tendência, por causa disso, é o isolamento. Foi assim na Osesp. E, com o tempo, começou a se desenhar no Municipal. Funcionários colocam o final do ano passado como um marco. “Foi quando a verba diminuiu e a temporada foi colocada em risco. Ali ficou muito claro que havia vários Municipais em questão. O que interessava ao Neschling era a sua temporada de óperas, que já não refletiam a qualidade do início da gestão”, diz um deles. Um ofício assinado pelo maestro, obtido na época pelo Estado, informava aos demais grupos da casa, orquestras, quarteto, corais, que a verba disponível seria destinada apenas à temporada lírica. Para muitos funcionários, ali o projeto de Municipal virou um projeto pessoal. “Ele foi se fechando, a relação com os músicos piorou. Só confiava na sua equipe imediata e dava a ela liberdade para constranger as pessoas”, diz um músico, referindo-se ao regente residente Eduardo Strausser e ao coordenador artístico Tomas Yaksic. Para outro, foi simbólico o abandono de ideias como a central técnica. “Ou eu faço central técnica ou eu faço a temporada”, explicou o próprio Neschling em um seminário em novembro, no Teatro São Pedro.

O golpe maior viria no momento em que o Ministério Público Estadual e a Controladoria Geral do Município identificaram um esquema de desvio de cerca de R$ 18 milhões por meio de contratos superfaturados, liderado por Herencia e William Nacked, presidente do Instituto Brasileiro de Gestão Cultural, organização social responsável pela gestão do Municipal, de quem Neschling era contratado. Os dois acabaram confessando o crime, fecharam acordos de delação premiada e acusaram o maestro de participação. Neschling se defendeu, dizendo ter sido ele o responsável pela denúncia. Fontes ligadas à Controladoria, na verdade, dizem que as investigações são anteriores. Seja como for, o fato é que a versão do maestro, corroborada pela Prefeitura, esbarrou em um detalhe: o levantamento de suspeitas em torno de contratos com o agente Valentin Proczynski, um dos empresários de Neschling no exterior, em especial pelo envolvimento do maestro na determinação de pagamentos de espetáculos feitos com a trupe catalã Fura del Baus. Um deles, Alma Brasileira, pelo qual o Municipal pagou R$ 1 milhão, não aconteceu.

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“Em abril deste ano, o foco acabou indo para ele, por causa do Alma Brasileira. E então ele passa a investir na sua defesa, fala menos com a imprensa, e mesmo internamente se fecha”, diz um interlocutor do teatro com a prefeitura. Neschling usa especialmente o Facebook para falar da questão. Explica que Proczynksi é apenas um dos muitos empresários com quem o teatro trabalha. E que essa é uma prática comum, e de forma alguma ilegal. “Internamente, ficou a sensação de que faltou uma explicação razoável para o caso. O direito de defesa é diferente da necessidade de oferecer explicações públicas quando se trabalha em uma instituição estatal. A questão não era trabalhar apenas com um agente, mas, sim, explicar por que os valores de um determinado contrato não são abertos e por que este agente tornou-se intermediário no meio do caminho da realização de um projeto”, explica este interlocutor. “Não se trata de dinheiro no bolso, mas da possível utilização do teatro como instrumento que dê acesso ao maestro no exterior, algo que lhe fez falta no momento em que ele saiu da Osesp, quando os convites lá fora diminuíram. Essa é a questão-chave. Para quem está lá dentro não parece haver participação do Neschling no esquema de Herencia ou de Nacked. Apesar do que os dois dizem, as investigações não produziram prova disso. Há, sim, a relação com os empresários, que sugere uma prática a ser investigada, pois foge dos padrões.”

No entanto, com a instauração de uma CPI na Câmara Municipal para tratar dos acontecimentos no Teatro Municipal, Neschling foi chamado a depor. Em seu depoimento, passou cinco horas e meia explicando sua atividade como diretor artístico. E, na última quarta-feira, foi levado para uma acareação com Herencia. “Quem viu percebe que não há julgamento artístico nenhum, é um julgamento político. Neschling é uma figura midiática, sua presença rende uma imagem forte. Algumas das questões, como o valor do salário (R$ 150 mil), mexem com as pessoas. Mas é mais fácil julgar do que avaliar, refletir, pensar sobre o valor de um trabalho artístico”, diz Toro. Eduardo Carnelós, advogado do maestro, segue a mesma linha: “É uma situação kafkiana. Não há provas. Nas perguntas, há apenas julgamento, a partir do que diz Herencia, um réu confesso, que não oferece provas. O viés da CPI tem sido até agora abertamente político. É show, espetáculo e, nesse processo, estão achincalhando um homem de bem”.

A prefeitura, em nota após a demissão do maestro, disse que a decisão não está relacionada ao caso Herencia/Nacked. A saída do teatro foi, segundo pessoas próximas ao maestro, um golpe duro. E inesperado. No dia 5 de setembro, no início da tarde, Neschling postou no Facebook um vídeo no qual celebrava os resultados do Festival Beethoven, e se dizia animado com o futuro. Poucas horas depois, porém, recebeu em sua casa um portador do IBGC, com a informação de que havia sido demitido. Na mesma noite, mais uma vez nas redes sociais, ele se disse traído, em especial pelo prefeito Fernando Haddad – mas não só: entre os alvos, colaboradores do maestro identificam também Eduardo Strausser, que, ao contrário de Yaksic, não colocou seu cargo à disposição e vai assumir os concertos que seriam regidos por Neschling. Segundo uma amiga, “essa questão da traição machuca muito ele”. “Mas é algo que o maestro, de certa forma, provoca. O prefeito sempre o apoiou. Mas ele se cerca de algumas pessoas, deposita confiança nelas e depois se decepciona. Alterna entre a decepção e o desejo de vingança”, diz. Sobre essa mistura de sensações o próprio maestro falou em seu Facebook, no final de agosto. “Em minh’alma habitam dois grupos de animais: num canto pastam carneiros e esvoaçam brancas pombas e noutro rosnam e esbravejam cães selvagens, loucos para destroçar o que quer que se lhes apareça no caminho”, escreveu. O único comentário do post é de Patricia Melo. “Eu, sua diabinha, grito da plateia: solta, solta!”

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Depois da demissão, Neschling tem alternado seu tempo entre a capital e o sítio no interior de São Paulo. Por meio da sua assessoria de imprensa, informou que, por estar viajando, não falaria com o Aliás até o fechamento desta edição. Pessoas próximas, porém, referem-se a um misto de indignação, tristeza e surpresa. “Imagine você receber em casa a notícia de que está sendo demitido porque seu nome está constantemente na imprensa associado a crimes que você não cometeu. É uma sordidez. Frustrado, indignado. O que mais ele poderia estar?”, pergunta Carnelós.

No final de I Pagliacci, o barítono retira a máscara e volta a se dirigir à plateia. La comèdia, diz, è finita. Mas, enquanto as investigações não terminarem, não dá para precisar um fim para a ópera da qual Neschling se tornou protagonista. “Mas há um contexto que talvez seja importante. Como chegamos a esse ponto? Nossas instituições musicais são confiadas a gestores que nada têm a ver com cultura. Não dá para colocar toda a responsabilidade sobre o Neschling. Ele colhe, de certa forma, os frutos de um mundo musical individualista que ele ajudou a criar. Neschling não é vítima nem herói”, diz uma especialista em gestão cultural. O artista, afinal, é essencialmente um homem.

Se uma ópera fosse, este texto precisaria de um prólogo. Em I Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo, há um, famoso. Por entre as cortinas fechadas, o barítono pede licença ao público. Explica que fala em nome do autor, que lhe pede para avisar que a história a ser apresentada está repleta de vida: o artista, afinal, é antes de mais nada um homem.

Mas não estamos na Calábria do século 19. E o prólogo, aqui, pode estar dividido em duas cenas. A primeira tem local definido, data e hora de início. Dia 6 de agosto de 2012, Sala São Paulo, a Orquestra da Svizzera Italiana está pronta, à espera do maestro. Pouco depois das 21 horas, entra John Neschling. É seu retorno àquele palco, três anos depois de sua traumática demissão da direção artística da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) após desentendimentos com o governo do Estado. A plateia o recebe de pé. “Volta, volta”, o grito aos poucos ganha força. Ele sorri.

A segunda cena se desenrola em outro palco, a Câmara Municipal de São Paulo. Começa na manhã da última quarta-feira, quando Neschling chega acompanhado de um advogado ao plenário para acareação com o ex-diretor da Fundação Teatro Municipal, José Luiz Herencia. Na noite anterior, a Justiça havia autorizado a condução coercitiva do maestro à CPI que investiga o teatro. Questionado pelos vereadores e acusado por Herencia o maestro responde da mesma forma durante as quase duas horas de sessão, transmitida pela internet e acompanhada de perto pela imprensa: “Permanecerei em silêncio”.

É entre uma cena e outra que se passam os episódios que, nos últimos meses, transformaram o heroi responsável pelo projeto que fez da Osesp um novo paradigma da música de concerto brasileira em investigado em um esquema de corrupção montado dentro do Teatro Municipal. Uma história que, entre idas e vindas, fatos e versões, afirmações e desmentidos, e personagens dos mais variados, fala muito a respeito do maestro e de sua conhecida personalidade forte – mas também do modo como está estruturado o meio musical brasileiro e suas principais instituições.

‘De jeito nenhum!’. Após deixar a Osesp, em outubro de 2009, John Neschling confidenciou a amigos não ter intenção de voltar ao Brasil. Sentindo-se traído pelo conselho administrativo que ele havia pessoalmente escolhido, voltou para a Suíça. Até que, em 2010, criou em parceria com o Ministério da Cultura, então comandado por Juca Ferreira, a Companhia Brasileira de Ópera. Depois de um ano de apresentações, e de brigas internas, o maestro comunicou em seu blog o desligamento do grupo. “Parto para a Europa, pela primeira vez, desde 1997, só com passagem de ida.” Em 2013, no entanto, Juca Ferreira assumiu a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. “Sempre que algum posto em alguma orquestra ou teatro brasileiro vagava, as pessoas logo começavam a falar nele”, conta um ex-colaborador dos tempos da Osesp. “No fundo, havia a expectativa de que ele pudesse criar uma nova Osesp, um novo grande projeto.” O boato tornou-se realidade e, em fevereiro, o maestro deu sua primeira entrevista como diretor artístico do Municipal, ao lado de Herencia, novo diretor geral da fundação.

Após a conversa com os jornalistas, um fotógrafo quis fazer uma imagem de Neschling nas escadarias do Municipal. “De jeito nenhum! O que mais tem é foto de maestro subindo essa escada. Passa um tempo e estão todos descendo de volta, pegando o caminho de casa”, ele brincou. “Com um fundo de verdade”, diz uma amiga. “Ele se vê diferente dos demais maestros, sempre gostou dessa imagem de herói que o público e a imprensa criaram. Ele assumiu esse personagem, com um discurso de que, a partir da sua chegada, a situação se transformaria.” Vaidade ou ambição artística? “Quando se é ambicioso, você é capaz de realizar coisas grandiosas. Pessoas assim são polêmicas por natureza, têm uma noção de limite diferente. Elas testam esses limites e às vezes conseguem criar novas realidades”, diz um ex-colaborador.

Flor do pântano. A chegada de Neschling ao Municipal não esteve livre de polêmicas. Além das críticas às gestões anteriores, ele cancelou projetos já contratados e diminuiu a participação de cantores brasileiros na temporada. Trouxe ao teatro estrelas como o barítono italiano Ambrogio Maestri ou o tenor argentino Marcelo Álvarez; e anunciou o investimento em uma central técnica de produção, para que São Paulo tivesse, enfim, “o grande teatro que nunca teve”, fazendo “ópera com qualidade”. “Essas posições talvez causem antipatia, façam com que ele se isole perante a classe artística. Mas são frutos de um projeto artístico sólido e claro que ele tem. Ele acredita no conceito de que ou se faz com qualidade ou é melhor não fazer”, afirma o maestro chileno Victor Hugo Toro, que foi assistente de Neschling na Osesp e o acompanhou nos primeiros meses de Municipal. “É preciso relativizar a questão do projeto sólido”, discorda uma antiga parceira de trabalho do maestro. “Não há uma preocupação com o meio musical. Há sempre a tentativa de reforçar a ideia de que aquilo que ele faz é a única flor do pântano.”

A tendência, por causa disso, é o isolamento. Foi assim na Osesp. E, com o tempo, começou a se desenhar no Municipal. Funcionários colocam o final do ano passado como um marco. “Foi quando a verba diminuiu e a temporada foi colocada em risco. Ali ficou muito claro que havia vários Municipais em questão. O que interessava ao Neschling era a sua temporada de óperas, que já não refletiam a qualidade do início da gestão”, diz um deles. Um ofício assinado pelo maestro, obtido na época pelo Estado, informava aos demais grupos da casa, orquestras, quarteto, corais, que a verba disponível seria destinada apenas à temporada lírica. Para muitos funcionários, ali o projeto de Municipal virou um projeto pessoal. “Ele foi se fechando, a relação com os músicos piorou. Só confiava na sua equipe imediata e dava a ela liberdade para constranger as pessoas”, diz um músico, referindo-se ao regente residente Eduardo Strausser e ao coordenador artístico Tomas Yaksic. Para outro, foi simbólico o abandono de ideias como a central técnica. “Ou eu faço central técnica ou eu faço a temporada”, explicou o próprio Neschling em um seminário em novembro, no Teatro São Pedro.

O golpe maior viria no momento em que o Ministério Público Estadual e a Controladoria Geral do Município identificaram um esquema de desvio de cerca de R$ 18 milhões por meio de contratos superfaturados, liderado por Herencia e William Nacked, presidente do Instituto Brasileiro de Gestão Cultural, organização social responsável pela gestão do Municipal, de quem Neschling era contratado. Os dois acabaram confessando o crime, fecharam acordos de delação premiada e acusaram o maestro de participação. Neschling se defendeu, dizendo ter sido ele o responsável pela denúncia. Fontes ligadas à Controladoria, na verdade, dizem que as investigações são anteriores. Seja como for, o fato é que a versão do maestro, corroborada pela Prefeitura, esbarrou em um detalhe: o levantamento de suspeitas em torno de contratos com o agente Valentin Proczynski, um dos empresários de Neschling no exterior, em especial pelo envolvimento do maestro na determinação de pagamentos de espetáculos feitos com a trupe catalã Fura del Baus. Um deles, Alma Brasileira, pelo qual o Municipal pagou R$ 1 milhão, não aconteceu.

“Em abril deste ano, o foco acabou indo para ele, por causa do Alma Brasileira. E então ele passa a investir na sua defesa, fala menos com a imprensa, e mesmo internamente se fecha”, diz um interlocutor do teatro com a prefeitura. Neschling usa especialmente o Facebook para falar da questão. Explica que Proczynksi é apenas um dos muitos empresários com quem o teatro trabalha. E que essa é uma prática comum, e de forma alguma ilegal. “Internamente, ficou a sensação de que faltou uma explicação razoável para o caso. O direito de defesa é diferente da necessidade de oferecer explicações públicas quando se trabalha em uma instituição estatal. A questão não era trabalhar apenas com um agente, mas, sim, explicar por que os valores de um determinado contrato não são abertos e por que este agente tornou-se intermediário no meio do caminho da realização de um projeto”, explica este interlocutor. “Não se trata de dinheiro no bolso, mas da possível utilização do teatro como instrumento que dê acesso ao maestro no exterior, algo que lhe fez falta no momento em que ele saiu da Osesp, quando os convites lá fora diminuíram. Essa é a questão-chave. Para quem está lá dentro não parece haver participação do Neschling no esquema de Herencia ou de Nacked. Apesar do que os dois dizem, as investigações não produziram prova disso. Há, sim, a relação com os empresários, que sugere uma prática a ser investigada, pois foge dos padrões.”

No entanto, com a instauração de uma CPI na Câmara Municipal para tratar dos acontecimentos no Teatro Municipal, Neschling foi chamado a depor. Em seu depoimento, passou cinco horas e meia explicando sua atividade como diretor artístico. E, na última quarta-feira, foi levado para uma acareação com Herencia. “Quem viu percebe que não há julgamento artístico nenhum, é um julgamento político. Neschling é uma figura midiática, sua presença rende uma imagem forte. Algumas das questões, como o valor do salário (R$ 150 mil), mexem com as pessoas. Mas é mais fácil julgar do que avaliar, refletir, pensar sobre o valor de um trabalho artístico”, diz Toro. Eduardo Carnelós, advogado do maestro, segue a mesma linha: “É uma situação kafkiana. Não há provas. Nas perguntas, há apenas julgamento, a partir do que diz Herencia, um réu confesso, que não oferece provas. O viés da CPI tem sido até agora abertamente político. É show, espetáculo e, nesse processo, estão achincalhando um homem de bem”.

A prefeitura, em nota após a demissão do maestro, disse que a decisão não está relacionada ao caso Herencia/Nacked. A saída do teatro foi, segundo pessoas próximas ao maestro, um golpe duro. E inesperado. No dia 5 de setembro, no início da tarde, Neschling postou no Facebook um vídeo no qual celebrava os resultados do Festival Beethoven, e se dizia animado com o futuro. Poucas horas depois, porém, recebeu em sua casa um portador do IBGC, com a informação de que havia sido demitido. Na mesma noite, mais uma vez nas redes sociais, ele se disse traído, em especial pelo prefeito Fernando Haddad – mas não só: entre os alvos, colaboradores do maestro identificam também Eduardo Strausser, que, ao contrário de Yaksic, não colocou seu cargo à disposição e vai assumir os concertos que seriam regidos por Neschling. Segundo uma amiga, “essa questão da traição machuca muito ele”. “Mas é algo que o maestro, de certa forma, provoca. O prefeito sempre o apoiou. Mas ele se cerca de algumas pessoas, deposita confiança nelas e depois se decepciona. Alterna entre a decepção e o desejo de vingança”, diz. Sobre essa mistura de sensações o próprio maestro falou em seu Facebook, no final de agosto. “Em minh’alma habitam dois grupos de animais: num canto pastam carneiros e esvoaçam brancas pombas e noutro rosnam e esbravejam cães selvagens, loucos para destroçar o que quer que se lhes apareça no caminho”, escreveu. O único comentário do post é de Patricia Melo. “Eu, sua diabinha, grito da plateia: solta, solta!”

Depois da demissão, Neschling tem alternado seu tempo entre a capital e o sítio no interior de São Paulo. Por meio da sua assessoria de imprensa, informou que, por estar viajando, não falaria com o Aliás até o fechamento desta edição. Pessoas próximas, porém, referem-se a um misto de indignação, tristeza e surpresa. “Imagine você receber em casa a notícia de que está sendo demitido porque seu nome está constantemente na imprensa associado a crimes que você não cometeu. É uma sordidez. Frustrado, indignado. O que mais ele poderia estar?”, pergunta Carnelós.

No final de I Pagliacci, o barítono retira a máscara e volta a se dirigir à plateia. La comèdia, diz, è finita. Mas, enquanto as investigações não terminarem, não dá para precisar um fim para a ópera da qual Neschling se tornou protagonista. “Mas há um contexto que talvez seja importante. Como chegamos a esse ponto? Nossas instituições musicais são confiadas a gestores que nada têm a ver com cultura. Não dá para colocar toda a responsabilidade sobre o Neschling. Ele colhe, de certa forma, os frutos de um mundo musical individualista que ele ajudou a criar. Neschling não é vítima nem herói”, diz uma especialista em gestão cultural. O artista, afinal, é essencialmente um homem.

Se uma ópera fosse, este texto precisaria de um prólogo. Em I Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo, há um, famoso. Por entre as cortinas fechadas, o barítono pede licença ao público. Explica que fala em nome do autor, que lhe pede para avisar que a história a ser apresentada está repleta de vida: o artista, afinal, é antes de mais nada um homem.

Mas não estamos na Calábria do século 19. E o prólogo, aqui, pode estar dividido em duas cenas. A primeira tem local definido, data e hora de início. Dia 6 de agosto de 2012, Sala São Paulo, a Orquestra da Svizzera Italiana está pronta, à espera do maestro. Pouco depois das 21 horas, entra John Neschling. É seu retorno àquele palco, três anos depois de sua traumática demissão da direção artística da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) após desentendimentos com o governo do Estado. A plateia o recebe de pé. “Volta, volta”, o grito aos poucos ganha força. Ele sorri.

A segunda cena se desenrola em outro palco, a Câmara Municipal de São Paulo. Começa na manhã da última quarta-feira, quando Neschling chega acompanhado de um advogado ao plenário para acareação com o ex-diretor da Fundação Teatro Municipal, José Luiz Herencia. Na noite anterior, a Justiça havia autorizado a condução coercitiva do maestro à CPI que investiga o teatro. Questionado pelos vereadores e acusado por Herencia o maestro responde da mesma forma durante as quase duas horas de sessão, transmitida pela internet e acompanhada de perto pela imprensa: “Permanecerei em silêncio”.

É entre uma cena e outra que se passam os episódios que, nos últimos meses, transformaram o heroi responsável pelo projeto que fez da Osesp um novo paradigma da música de concerto brasileira em investigado em um esquema de corrupção montado dentro do Teatro Municipal. Uma história que, entre idas e vindas, fatos e versões, afirmações e desmentidos, e personagens dos mais variados, fala muito a respeito do maestro e de sua conhecida personalidade forte – mas também do modo como está estruturado o meio musical brasileiro e suas principais instituições.

‘De jeito nenhum!’. Após deixar a Osesp, em outubro de 2009, John Neschling confidenciou a amigos não ter intenção de voltar ao Brasil. Sentindo-se traído pelo conselho administrativo que ele havia pessoalmente escolhido, voltou para a Suíça. Até que, em 2010, criou em parceria com o Ministério da Cultura, então comandado por Juca Ferreira, a Companhia Brasileira de Ópera. Depois de um ano de apresentações, e de brigas internas, o maestro comunicou em seu blog o desligamento do grupo. “Parto para a Europa, pela primeira vez, desde 1997, só com passagem de ida.” Em 2013, no entanto, Juca Ferreira assumiu a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. “Sempre que algum posto em alguma orquestra ou teatro brasileiro vagava, as pessoas logo começavam a falar nele”, conta um ex-colaborador dos tempos da Osesp. “No fundo, havia a expectativa de que ele pudesse criar uma nova Osesp, um novo grande projeto.” O boato tornou-se realidade e, em fevereiro, o maestro deu sua primeira entrevista como diretor artístico do Municipal, ao lado de Herencia, novo diretor geral da fundação.

Após a conversa com os jornalistas, um fotógrafo quis fazer uma imagem de Neschling nas escadarias do Municipal. “De jeito nenhum! O que mais tem é foto de maestro subindo essa escada. Passa um tempo e estão todos descendo de volta, pegando o caminho de casa”, ele brincou. “Com um fundo de verdade”, diz uma amiga. “Ele se vê diferente dos demais maestros, sempre gostou dessa imagem de herói que o público e a imprensa criaram. Ele assumiu esse personagem, com um discurso de que, a partir da sua chegada, a situação se transformaria.” Vaidade ou ambição artística? “Quando se é ambicioso, você é capaz de realizar coisas grandiosas. Pessoas assim são polêmicas por natureza, têm uma noção de limite diferente. Elas testam esses limites e às vezes conseguem criar novas realidades”, diz um ex-colaborador.

Flor do pântano. A chegada de Neschling ao Municipal não esteve livre de polêmicas. Além das críticas às gestões anteriores, ele cancelou projetos já contratados e diminuiu a participação de cantores brasileiros na temporada. Trouxe ao teatro estrelas como o barítono italiano Ambrogio Maestri ou o tenor argentino Marcelo Álvarez; e anunciou o investimento em uma central técnica de produção, para que São Paulo tivesse, enfim, “o grande teatro que nunca teve”, fazendo “ópera com qualidade”. “Essas posições talvez causem antipatia, façam com que ele se isole perante a classe artística. Mas são frutos de um projeto artístico sólido e claro que ele tem. Ele acredita no conceito de que ou se faz com qualidade ou é melhor não fazer”, afirma o maestro chileno Victor Hugo Toro, que foi assistente de Neschling na Osesp e o acompanhou nos primeiros meses de Municipal. “É preciso relativizar a questão do projeto sólido”, discorda uma antiga parceira de trabalho do maestro. “Não há uma preocupação com o meio musical. Há sempre a tentativa de reforçar a ideia de que aquilo que ele faz é a única flor do pântano.”

A tendência, por causa disso, é o isolamento. Foi assim na Osesp. E, com o tempo, começou a se desenhar no Municipal. Funcionários colocam o final do ano passado como um marco. “Foi quando a verba diminuiu e a temporada foi colocada em risco. Ali ficou muito claro que havia vários Municipais em questão. O que interessava ao Neschling era a sua temporada de óperas, que já não refletiam a qualidade do início da gestão”, diz um deles. Um ofício assinado pelo maestro, obtido na época pelo Estado, informava aos demais grupos da casa, orquestras, quarteto, corais, que a verba disponível seria destinada apenas à temporada lírica. Para muitos funcionários, ali o projeto de Municipal virou um projeto pessoal. “Ele foi se fechando, a relação com os músicos piorou. Só confiava na sua equipe imediata e dava a ela liberdade para constranger as pessoas”, diz um músico, referindo-se ao regente residente Eduardo Strausser e ao coordenador artístico Tomas Yaksic. Para outro, foi simbólico o abandono de ideias como a central técnica. “Ou eu faço central técnica ou eu faço a temporada”, explicou o próprio Neschling em um seminário em novembro, no Teatro São Pedro.

O golpe maior viria no momento em que o Ministério Público Estadual e a Controladoria Geral do Município identificaram um esquema de desvio de cerca de R$ 18 milhões por meio de contratos superfaturados, liderado por Herencia e William Nacked, presidente do Instituto Brasileiro de Gestão Cultural, organização social responsável pela gestão do Municipal, de quem Neschling era contratado. Os dois acabaram confessando o crime, fecharam acordos de delação premiada e acusaram o maestro de participação. Neschling se defendeu, dizendo ter sido ele o responsável pela denúncia. Fontes ligadas à Controladoria, na verdade, dizem que as investigações são anteriores. Seja como for, o fato é que a versão do maestro, corroborada pela Prefeitura, esbarrou em um detalhe: o levantamento de suspeitas em torno de contratos com o agente Valentin Proczynski, um dos empresários de Neschling no exterior, em especial pelo envolvimento do maestro na determinação de pagamentos de espetáculos feitos com a trupe catalã Fura del Baus. Um deles, Alma Brasileira, pelo qual o Municipal pagou R$ 1 milhão, não aconteceu.

“Em abril deste ano, o foco acabou indo para ele, por causa do Alma Brasileira. E então ele passa a investir na sua defesa, fala menos com a imprensa, e mesmo internamente se fecha”, diz um interlocutor do teatro com a prefeitura. Neschling usa especialmente o Facebook para falar da questão. Explica que Proczynksi é apenas um dos muitos empresários com quem o teatro trabalha. E que essa é uma prática comum, e de forma alguma ilegal. “Internamente, ficou a sensação de que faltou uma explicação razoável para o caso. O direito de defesa é diferente da necessidade de oferecer explicações públicas quando se trabalha em uma instituição estatal. A questão não era trabalhar apenas com um agente, mas, sim, explicar por que os valores de um determinado contrato não são abertos e por que este agente tornou-se intermediário no meio do caminho da realização de um projeto”, explica este interlocutor. “Não se trata de dinheiro no bolso, mas da possível utilização do teatro como instrumento que dê acesso ao maestro no exterior, algo que lhe fez falta no momento em que ele saiu da Osesp, quando os convites lá fora diminuíram. Essa é a questão-chave. Para quem está lá dentro não parece haver participação do Neschling no esquema de Herencia ou de Nacked. Apesar do que os dois dizem, as investigações não produziram prova disso. Há, sim, a relação com os empresários, que sugere uma prática a ser investigada, pois foge dos padrões.”

No entanto, com a instauração de uma CPI na Câmara Municipal para tratar dos acontecimentos no Teatro Municipal, Neschling foi chamado a depor. Em seu depoimento, passou cinco horas e meia explicando sua atividade como diretor artístico. E, na última quarta-feira, foi levado para uma acareação com Herencia. “Quem viu percebe que não há julgamento artístico nenhum, é um julgamento político. Neschling é uma figura midiática, sua presença rende uma imagem forte. Algumas das questões, como o valor do salário (R$ 150 mil), mexem com as pessoas. Mas é mais fácil julgar do que avaliar, refletir, pensar sobre o valor de um trabalho artístico”, diz Toro. Eduardo Carnelós, advogado do maestro, segue a mesma linha: “É uma situação kafkiana. Não há provas. Nas perguntas, há apenas julgamento, a partir do que diz Herencia, um réu confesso, que não oferece provas. O viés da CPI tem sido até agora abertamente político. É show, espetáculo e, nesse processo, estão achincalhando um homem de bem”.

A prefeitura, em nota após a demissão do maestro, disse que a decisão não está relacionada ao caso Herencia/Nacked. A saída do teatro foi, segundo pessoas próximas ao maestro, um golpe duro. E inesperado. No dia 5 de setembro, no início da tarde, Neschling postou no Facebook um vídeo no qual celebrava os resultados do Festival Beethoven, e se dizia animado com o futuro. Poucas horas depois, porém, recebeu em sua casa um portador do IBGC, com a informação de que havia sido demitido. Na mesma noite, mais uma vez nas redes sociais, ele se disse traído, em especial pelo prefeito Fernando Haddad – mas não só: entre os alvos, colaboradores do maestro identificam também Eduardo Strausser, que, ao contrário de Yaksic, não colocou seu cargo à disposição e vai assumir os concertos que seriam regidos por Neschling. Segundo uma amiga, “essa questão da traição machuca muito ele”. “Mas é algo que o maestro, de certa forma, provoca. O prefeito sempre o apoiou. Mas ele se cerca de algumas pessoas, deposita confiança nelas e depois se decepciona. Alterna entre a decepção e o desejo de vingança”, diz. Sobre essa mistura de sensações o próprio maestro falou em seu Facebook, no final de agosto. “Em minh’alma habitam dois grupos de animais: num canto pastam carneiros e esvoaçam brancas pombas e noutro rosnam e esbravejam cães selvagens, loucos para destroçar o que quer que se lhes apareça no caminho”, escreveu. O único comentário do post é de Patricia Melo. “Eu, sua diabinha, grito da plateia: solta, solta!”

Depois da demissão, Neschling tem alternado seu tempo entre a capital e o sítio no interior de São Paulo. Por meio da sua assessoria de imprensa, informou que, por estar viajando, não falaria com o Aliás até o fechamento desta edição. Pessoas próximas, porém, referem-se a um misto de indignação, tristeza e surpresa. “Imagine você receber em casa a notícia de que está sendo demitido porque seu nome está constantemente na imprensa associado a crimes que você não cometeu. É uma sordidez. Frustrado, indignado. O que mais ele poderia estar?”, pergunta Carnelós.

No final de I Pagliacci, o barítono retira a máscara e volta a se dirigir à plateia. La comèdia, diz, è finita. Mas, enquanto as investigações não terminarem, não dá para precisar um fim para a ópera da qual Neschling se tornou protagonista. “Mas há um contexto que talvez seja importante. Como chegamos a esse ponto? Nossas instituições musicais são confiadas a gestores que nada têm a ver com cultura. Não dá para colocar toda a responsabilidade sobre o Neschling. Ele colhe, de certa forma, os frutos de um mundo musical individualista que ele ajudou a criar. Neschling não é vítima nem herói”, diz uma especialista em gestão cultural. O artista, afinal, é essencialmente um homem.

Se uma ópera fosse, este texto precisaria de um prólogo. Em I Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo, há um, famoso. Por entre as cortinas fechadas, o barítono pede licença ao público. Explica que fala em nome do autor, que lhe pede para avisar que a história a ser apresentada está repleta de vida: o artista, afinal, é antes de mais nada um homem.

Mas não estamos na Calábria do século 19. E o prólogo, aqui, pode estar dividido em duas cenas. A primeira tem local definido, data e hora de início. Dia 6 de agosto de 2012, Sala São Paulo, a Orquestra da Svizzera Italiana está pronta, à espera do maestro. Pouco depois das 21 horas, entra John Neschling. É seu retorno àquele palco, três anos depois de sua traumática demissão da direção artística da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) após desentendimentos com o governo do Estado. A plateia o recebe de pé. “Volta, volta”, o grito aos poucos ganha força. Ele sorri.

A segunda cena se desenrola em outro palco, a Câmara Municipal de São Paulo. Começa na manhã da última quarta-feira, quando Neschling chega acompanhado de um advogado ao plenário para acareação com o ex-diretor da Fundação Teatro Municipal, José Luiz Herencia. Na noite anterior, a Justiça havia autorizado a condução coercitiva do maestro à CPI que investiga o teatro. Questionado pelos vereadores e acusado por Herencia o maestro responde da mesma forma durante as quase duas horas de sessão, transmitida pela internet e acompanhada de perto pela imprensa: “Permanecerei em silêncio”.

É entre uma cena e outra que se passam os episódios que, nos últimos meses, transformaram o heroi responsável pelo projeto que fez da Osesp um novo paradigma da música de concerto brasileira em investigado em um esquema de corrupção montado dentro do Teatro Municipal. Uma história que, entre idas e vindas, fatos e versões, afirmações e desmentidos, e personagens dos mais variados, fala muito a respeito do maestro e de sua conhecida personalidade forte – mas também do modo como está estruturado o meio musical brasileiro e suas principais instituições.

‘De jeito nenhum!’. Após deixar a Osesp, em outubro de 2009, John Neschling confidenciou a amigos não ter intenção de voltar ao Brasil. Sentindo-se traído pelo conselho administrativo que ele havia pessoalmente escolhido, voltou para a Suíça. Até que, em 2010, criou em parceria com o Ministério da Cultura, então comandado por Juca Ferreira, a Companhia Brasileira de Ópera. Depois de um ano de apresentações, e de brigas internas, o maestro comunicou em seu blog o desligamento do grupo. “Parto para a Europa, pela primeira vez, desde 1997, só com passagem de ida.” Em 2013, no entanto, Juca Ferreira assumiu a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. “Sempre que algum posto em alguma orquestra ou teatro brasileiro vagava, as pessoas logo começavam a falar nele”, conta um ex-colaborador dos tempos da Osesp. “No fundo, havia a expectativa de que ele pudesse criar uma nova Osesp, um novo grande projeto.” O boato tornou-se realidade e, em fevereiro, o maestro deu sua primeira entrevista como diretor artístico do Municipal, ao lado de Herencia, novo diretor geral da fundação.

Após a conversa com os jornalistas, um fotógrafo quis fazer uma imagem de Neschling nas escadarias do Municipal. “De jeito nenhum! O que mais tem é foto de maestro subindo essa escada. Passa um tempo e estão todos descendo de volta, pegando o caminho de casa”, ele brincou. “Com um fundo de verdade”, diz uma amiga. “Ele se vê diferente dos demais maestros, sempre gostou dessa imagem de herói que o público e a imprensa criaram. Ele assumiu esse personagem, com um discurso de que, a partir da sua chegada, a situação se transformaria.” Vaidade ou ambição artística? “Quando se é ambicioso, você é capaz de realizar coisas grandiosas. Pessoas assim são polêmicas por natureza, têm uma noção de limite diferente. Elas testam esses limites e às vezes conseguem criar novas realidades”, diz um ex-colaborador.

Flor do pântano. A chegada de Neschling ao Municipal não esteve livre de polêmicas. Além das críticas às gestões anteriores, ele cancelou projetos já contratados e diminuiu a participação de cantores brasileiros na temporada. Trouxe ao teatro estrelas como o barítono italiano Ambrogio Maestri ou o tenor argentino Marcelo Álvarez; e anunciou o investimento em uma central técnica de produção, para que São Paulo tivesse, enfim, “o grande teatro que nunca teve”, fazendo “ópera com qualidade”. “Essas posições talvez causem antipatia, façam com que ele se isole perante a classe artística. Mas são frutos de um projeto artístico sólido e claro que ele tem. Ele acredita no conceito de que ou se faz com qualidade ou é melhor não fazer”, afirma o maestro chileno Victor Hugo Toro, que foi assistente de Neschling na Osesp e o acompanhou nos primeiros meses de Municipal. “É preciso relativizar a questão do projeto sólido”, discorda uma antiga parceira de trabalho do maestro. “Não há uma preocupação com o meio musical. Há sempre a tentativa de reforçar a ideia de que aquilo que ele faz é a única flor do pântano.”

A tendência, por causa disso, é o isolamento. Foi assim na Osesp. E, com o tempo, começou a se desenhar no Municipal. Funcionários colocam o final do ano passado como um marco. “Foi quando a verba diminuiu e a temporada foi colocada em risco. Ali ficou muito claro que havia vários Municipais em questão. O que interessava ao Neschling era a sua temporada de óperas, que já não refletiam a qualidade do início da gestão”, diz um deles. Um ofício assinado pelo maestro, obtido na época pelo Estado, informava aos demais grupos da casa, orquestras, quarteto, corais, que a verba disponível seria destinada apenas à temporada lírica. Para muitos funcionários, ali o projeto de Municipal virou um projeto pessoal. “Ele foi se fechando, a relação com os músicos piorou. Só confiava na sua equipe imediata e dava a ela liberdade para constranger as pessoas”, diz um músico, referindo-se ao regente residente Eduardo Strausser e ao coordenador artístico Tomas Yaksic. Para outro, foi simbólico o abandono de ideias como a central técnica. “Ou eu faço central técnica ou eu faço a temporada”, explicou o próprio Neschling em um seminário em novembro, no Teatro São Pedro.

O golpe maior viria no momento em que o Ministério Público Estadual e a Controladoria Geral do Município identificaram um esquema de desvio de cerca de R$ 18 milhões por meio de contratos superfaturados, liderado por Herencia e William Nacked, presidente do Instituto Brasileiro de Gestão Cultural, organização social responsável pela gestão do Municipal, de quem Neschling era contratado. Os dois acabaram confessando o crime, fecharam acordos de delação premiada e acusaram o maestro de participação. Neschling se defendeu, dizendo ter sido ele o responsável pela denúncia. Fontes ligadas à Controladoria, na verdade, dizem que as investigações são anteriores. Seja como for, o fato é que a versão do maestro, corroborada pela Prefeitura, esbarrou em um detalhe: o levantamento de suspeitas em torno de contratos com o agente Valentin Proczynski, um dos empresários de Neschling no exterior, em especial pelo envolvimento do maestro na determinação de pagamentos de espetáculos feitos com a trupe catalã Fura del Baus. Um deles, Alma Brasileira, pelo qual o Municipal pagou R$ 1 milhão, não aconteceu.

“Em abril deste ano, o foco acabou indo para ele, por causa do Alma Brasileira. E então ele passa a investir na sua defesa, fala menos com a imprensa, e mesmo internamente se fecha”, diz um interlocutor do teatro com a prefeitura. Neschling usa especialmente o Facebook para falar da questão. Explica que Proczynksi é apenas um dos muitos empresários com quem o teatro trabalha. E que essa é uma prática comum, e de forma alguma ilegal. “Internamente, ficou a sensação de que faltou uma explicação razoável para o caso. O direito de defesa é diferente da necessidade de oferecer explicações públicas quando se trabalha em uma instituição estatal. A questão não era trabalhar apenas com um agente, mas, sim, explicar por que os valores de um determinado contrato não são abertos e por que este agente tornou-se intermediário no meio do caminho da realização de um projeto”, explica este interlocutor. “Não se trata de dinheiro no bolso, mas da possível utilização do teatro como instrumento que dê acesso ao maestro no exterior, algo que lhe fez falta no momento em que ele saiu da Osesp, quando os convites lá fora diminuíram. Essa é a questão-chave. Para quem está lá dentro não parece haver participação do Neschling no esquema de Herencia ou de Nacked. Apesar do que os dois dizem, as investigações não produziram prova disso. Há, sim, a relação com os empresários, que sugere uma prática a ser investigada, pois foge dos padrões.”

No entanto, com a instauração de uma CPI na Câmara Municipal para tratar dos acontecimentos no Teatro Municipal, Neschling foi chamado a depor. Em seu depoimento, passou cinco horas e meia explicando sua atividade como diretor artístico. E, na última quarta-feira, foi levado para uma acareação com Herencia. “Quem viu percebe que não há julgamento artístico nenhum, é um julgamento político. Neschling é uma figura midiática, sua presença rende uma imagem forte. Algumas das questões, como o valor do salário (R$ 150 mil), mexem com as pessoas. Mas é mais fácil julgar do que avaliar, refletir, pensar sobre o valor de um trabalho artístico”, diz Toro. Eduardo Carnelós, advogado do maestro, segue a mesma linha: “É uma situação kafkiana. Não há provas. Nas perguntas, há apenas julgamento, a partir do que diz Herencia, um réu confesso, que não oferece provas. O viés da CPI tem sido até agora abertamente político. É show, espetáculo e, nesse processo, estão achincalhando um homem de bem”.

A prefeitura, em nota após a demissão do maestro, disse que a decisão não está relacionada ao caso Herencia/Nacked. A saída do teatro foi, segundo pessoas próximas ao maestro, um golpe duro. E inesperado. No dia 5 de setembro, no início da tarde, Neschling postou no Facebook um vídeo no qual celebrava os resultados do Festival Beethoven, e se dizia animado com o futuro. Poucas horas depois, porém, recebeu em sua casa um portador do IBGC, com a informação de que havia sido demitido. Na mesma noite, mais uma vez nas redes sociais, ele se disse traído, em especial pelo prefeito Fernando Haddad – mas não só: entre os alvos, colaboradores do maestro identificam também Eduardo Strausser, que, ao contrário de Yaksic, não colocou seu cargo à disposição e vai assumir os concertos que seriam regidos por Neschling. Segundo uma amiga, “essa questão da traição machuca muito ele”. “Mas é algo que o maestro, de certa forma, provoca. O prefeito sempre o apoiou. Mas ele se cerca de algumas pessoas, deposita confiança nelas e depois se decepciona. Alterna entre a decepção e o desejo de vingança”, diz. Sobre essa mistura de sensações o próprio maestro falou em seu Facebook, no final de agosto. “Em minh’alma habitam dois grupos de animais: num canto pastam carneiros e esvoaçam brancas pombas e noutro rosnam e esbravejam cães selvagens, loucos para destroçar o que quer que se lhes apareça no caminho”, escreveu. O único comentário do post é de Patricia Melo. “Eu, sua diabinha, grito da plateia: solta, solta!”

Depois da demissão, Neschling tem alternado seu tempo entre a capital e o sítio no interior de São Paulo. Por meio da sua assessoria de imprensa, informou que, por estar viajando, não falaria com o Aliás até o fechamento desta edição. Pessoas próximas, porém, referem-se a um misto de indignação, tristeza e surpresa. “Imagine você receber em casa a notícia de que está sendo demitido porque seu nome está constantemente na imprensa associado a crimes que você não cometeu. É uma sordidez. Frustrado, indignado. O que mais ele poderia estar?”, pergunta Carnelós.

No final de I Pagliacci, o barítono retira a máscara e volta a se dirigir à plateia. La comèdia, diz, è finita. Mas, enquanto as investigações não terminarem, não dá para precisar um fim para a ópera da qual Neschling se tornou protagonista. “Mas há um contexto que talvez seja importante. Como chegamos a esse ponto? Nossas instituições musicais são confiadas a gestores que nada têm a ver com cultura. Não dá para colocar toda a responsabilidade sobre o Neschling. Ele colhe, de certa forma, os frutos de um mundo musical individualista que ele ajudou a criar. Neschling não é vítima nem herói”, diz uma especialista em gestão cultural. O artista, afinal, é essencialmente um homem.

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