Sobre primeiro amor, 'Sismógrafo' é romance de estreia que nasce maduro


Trama de Leonardo Piana venceu o prêmio literário da cidade de Belo Horizonte e recebeu apoio do Itaú

Por Matheus Lopes Quirino

O valor de uma fotografia impressa é também a materialização do desejo ali contido. O ato de consumar uma existência em um recorte de tempo, imortal. Como nas fotos 3x4 que os namorados guardam na carteira, a prova de amor que se desdobra por gerações. O desejo parece nunca se esvair. As memórias são conservadas nestas capturas temporais tão fora de moda nos relacionamentos modernos. E são essas imagens que o protagonista Eduardo guarda, para além das impressões que leva num envelope, são os registros que cruzam seus olhos por lugares conhecidos de um passado recente na cidadezinha do interior onde viveu o despertar da adolescência (e na volta). 

Todo esse processo é revelado em Sismógrafo, romance de estreia do jovem escritor Leonardo Piana, nascido em Andradas (MG), mesma cidade onde se passa a história de Eduardo, que se apaixona por Tomás, rapaz um ano mais velho. A trama pede um começo poético, ainda que os dois tenham se cruzado pelas banalidades da adolescência. Tudo se intensifica naquela etapa em que os hormônios explodem e transformam um aperto de mãos em um prenúncio de algo maior. 

Gravurade Guignard, datada de 1961, mostra como a religião é fundamental na cartografia de cidades mineiras, com igrejas centralizadas, como visto no romance 'Sismógrafo' Foto: Museu de Arte Moderna de São Paulo
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A maturidade se revela desengonçada na rotina marcada pelos olhos cerrados dos outros garotos ao protagonista. Eduardo sente na pele o preconceito, justo quando sua privacidade é violada com o vazamento de uma fotografia. Embora seja essa uma das preocupações mais caras ao menino, que crescia numa época em que não se ouvia falar em sexting, sobressaem as divagações do jovem a respeito de um amor à margem, vivenciado na surdina para não dar o que falar. 

Sentimento universal, ainda que nivelado à sombra do interior mineiro, Andradas, às margens da Serra da Mantiqueira, não perde para a datcha (casa de veraneio) de Moscou onde Vladímir Petróvitch, personagem de 16 anos (idade de Eduardo), apaixonou-se por Zinaida. Criado por Ivan Turguêniev, seu pequeno romance Primeiro Amor é um tratado sobre como a adolescência é vertiginosa à luz  dos dilemas do coração. É elementar o impulso que Sismógrafo e Primeiro Amor tomam partindo da inocência, como se um fio saísse do mesmo novelo, séculos depois, para tratar de uma problemática muito batida, um amor de infância. Goethe, a exemplo, era mestre em construir essas sensações de primeiro espanto, tornando-se conhecido pelos jovens Wilhelm e Werther, que, como Turguêniev, reputou-se como farol para novas gerações que se aventuraram na temática do bildungsroman e o fazem até nossos dias. 

Mineiro de Andradas, Leonardo Piana voltou à cidade natal para escrever 'Sismógrafo', seu romance de estreia Foto: Joaquim Ramalho/Acervo do autor
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Sismógrafo tem uma rara beleza por ser um livro fotográfico sem imagens, sensorial, como se as palavras printadas em suas páginas montassem uma galeria de objetos singelos e, ao mesmo tempo, caros para quem se apaixonou cedo demais, pela primeira vez, o toque, e a sensação do relâmpago corroendo as vísceras. Como Piana escreve em dado momento, "O envelope pardo, posto com cuidado na última gaveta, cheio das fotos de Tomás, o volume do corpo dele ocupando sempre muito espaço no meio de tudo o que eu guardo." 

A pulsão obsessora do protagonista, o viço que lhe ata ao desejo inconcluso durante suas páginas, a brutalidade do desejo nascendo de uma paixão proibida é tratada com maturidade de quem observa a vida pelo retrovisor, sob o olhar do fotógrafo que retorna à cidade natal para fechar algumas portas entreabertas. O filme do passado reluz, como se certas fotografias nunca amarelassem na memória, algo como uma frase escrita pelo inglês Christopher Isherwood, em Adeus a Berlim, que se encaixa precisamente em Sismógrafo: “Sou uma câmera com o diafragma aberto, passiva, registrando tudo, não pensando”. Se amor é uma inciência, o escriba mostra que sabe até onde dá pé ao ambientar personagens em conflito com o espaço comprimido de um interior fadado ao atraso. Como? Embora lhes cative a proximidade nascida naquele terreno de afeto, ao som de rock psicodélico debaixo do céu estrelado da mantiqueira, o futuro é a promessa que conduz Clara, Eduardo e Tomás como a maioria dos jovens que desejam viver sem limitações espaciais e longe do provincianismo careta. 

Detalhe de dois cravos nascendo em um roseiral na cidade de Andradas, interior de Minas Gerais, onde se passa o romance 'Sismógrafo',de Leonardo Piana Foto: Tiago Queiroz/Estadão
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Nada é premeditado, a tensão leva o leitor de volta aos próprios delírios da juventude, ao frisson das primeiras vezes. "Juntos fizemos o melhor que a adolescência havia nos reservado em Andradas, em 2010, ou o pouco que tínhamos aprendido: pedimos lanches para comer em casa, enchemos copos de suco em pó com vodca barata e escutamos de novo o primeiro disco do mgmt". 

Sismógrafo foi vencedor do concurso da cidade de Belo Horizonte (2019), que já premiou escritores como Autran Dourado, Ivan Ângelo e Flavio Cafiero. Editado pela Macondo, pequena editora que publicou o aterrador Preocupações, de Ana Guadalupe, Piana  recebeu o apoio do programa Rumos, do Itaú Cultural.

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Sismógrafo 

Autor: Leonardo Piana 

Editora: Macondo 

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250 páginas. R$ 41,60

O valor de uma fotografia impressa é também a materialização do desejo ali contido. O ato de consumar uma existência em um recorte de tempo, imortal. Como nas fotos 3x4 que os namorados guardam na carteira, a prova de amor que se desdobra por gerações. O desejo parece nunca se esvair. As memórias são conservadas nestas capturas temporais tão fora de moda nos relacionamentos modernos. E são essas imagens que o protagonista Eduardo guarda, para além das impressões que leva num envelope, são os registros que cruzam seus olhos por lugares conhecidos de um passado recente na cidadezinha do interior onde viveu o despertar da adolescência (e na volta). 

Todo esse processo é revelado em Sismógrafo, romance de estreia do jovem escritor Leonardo Piana, nascido em Andradas (MG), mesma cidade onde se passa a história de Eduardo, que se apaixona por Tomás, rapaz um ano mais velho. A trama pede um começo poético, ainda que os dois tenham se cruzado pelas banalidades da adolescência. Tudo se intensifica naquela etapa em que os hormônios explodem e transformam um aperto de mãos em um prenúncio de algo maior. 

Gravurade Guignard, datada de 1961, mostra como a religião é fundamental na cartografia de cidades mineiras, com igrejas centralizadas, como visto no romance 'Sismógrafo' Foto: Museu de Arte Moderna de São Paulo

A maturidade se revela desengonçada na rotina marcada pelos olhos cerrados dos outros garotos ao protagonista. Eduardo sente na pele o preconceito, justo quando sua privacidade é violada com o vazamento de uma fotografia. Embora seja essa uma das preocupações mais caras ao menino, que crescia numa época em que não se ouvia falar em sexting, sobressaem as divagações do jovem a respeito de um amor à margem, vivenciado na surdina para não dar o que falar. 

Sentimento universal, ainda que nivelado à sombra do interior mineiro, Andradas, às margens da Serra da Mantiqueira, não perde para a datcha (casa de veraneio) de Moscou onde Vladímir Petróvitch, personagem de 16 anos (idade de Eduardo), apaixonou-se por Zinaida. Criado por Ivan Turguêniev, seu pequeno romance Primeiro Amor é um tratado sobre como a adolescência é vertiginosa à luz  dos dilemas do coração. É elementar o impulso que Sismógrafo e Primeiro Amor tomam partindo da inocência, como se um fio saísse do mesmo novelo, séculos depois, para tratar de uma problemática muito batida, um amor de infância. Goethe, a exemplo, era mestre em construir essas sensações de primeiro espanto, tornando-se conhecido pelos jovens Wilhelm e Werther, que, como Turguêniev, reputou-se como farol para novas gerações que se aventuraram na temática do bildungsroman e o fazem até nossos dias. 

Mineiro de Andradas, Leonardo Piana voltou à cidade natal para escrever 'Sismógrafo', seu romance de estreia Foto: Joaquim Ramalho/Acervo do autor

Sismógrafo tem uma rara beleza por ser um livro fotográfico sem imagens, sensorial, como se as palavras printadas em suas páginas montassem uma galeria de objetos singelos e, ao mesmo tempo, caros para quem se apaixonou cedo demais, pela primeira vez, o toque, e a sensação do relâmpago corroendo as vísceras. Como Piana escreve em dado momento, "O envelope pardo, posto com cuidado na última gaveta, cheio das fotos de Tomás, o volume do corpo dele ocupando sempre muito espaço no meio de tudo o que eu guardo." 

A pulsão obsessora do protagonista, o viço que lhe ata ao desejo inconcluso durante suas páginas, a brutalidade do desejo nascendo de uma paixão proibida é tratada com maturidade de quem observa a vida pelo retrovisor, sob o olhar do fotógrafo que retorna à cidade natal para fechar algumas portas entreabertas. O filme do passado reluz, como se certas fotografias nunca amarelassem na memória, algo como uma frase escrita pelo inglês Christopher Isherwood, em Adeus a Berlim, que se encaixa precisamente em Sismógrafo: “Sou uma câmera com o diafragma aberto, passiva, registrando tudo, não pensando”. Se amor é uma inciência, o escriba mostra que sabe até onde dá pé ao ambientar personagens em conflito com o espaço comprimido de um interior fadado ao atraso. Como? Embora lhes cative a proximidade nascida naquele terreno de afeto, ao som de rock psicodélico debaixo do céu estrelado da mantiqueira, o futuro é a promessa que conduz Clara, Eduardo e Tomás como a maioria dos jovens que desejam viver sem limitações espaciais e longe do provincianismo careta. 

Detalhe de dois cravos nascendo em um roseiral na cidade de Andradas, interior de Minas Gerais, onde se passa o romance 'Sismógrafo',de Leonardo Piana Foto: Tiago Queiroz/Estadão

 

Nada é premeditado, a tensão leva o leitor de volta aos próprios delírios da juventude, ao frisson das primeiras vezes. "Juntos fizemos o melhor que a adolescência havia nos reservado em Andradas, em 2010, ou o pouco que tínhamos aprendido: pedimos lanches para comer em casa, enchemos copos de suco em pó com vodca barata e escutamos de novo o primeiro disco do mgmt". 

Sismógrafo foi vencedor do concurso da cidade de Belo Horizonte (2019), que já premiou escritores como Autran Dourado, Ivan Ângelo e Flavio Cafiero. Editado pela Macondo, pequena editora que publicou o aterrador Preocupações, de Ana Guadalupe, Piana  recebeu o apoio do programa Rumos, do Itaú Cultural.

Sismógrafo 

Autor: Leonardo Piana 

Editora: Macondo 

250 páginas. R$ 41,60

O valor de uma fotografia impressa é também a materialização do desejo ali contido. O ato de consumar uma existência em um recorte de tempo, imortal. Como nas fotos 3x4 que os namorados guardam na carteira, a prova de amor que se desdobra por gerações. O desejo parece nunca se esvair. As memórias são conservadas nestas capturas temporais tão fora de moda nos relacionamentos modernos. E são essas imagens que o protagonista Eduardo guarda, para além das impressões que leva num envelope, são os registros que cruzam seus olhos por lugares conhecidos de um passado recente na cidadezinha do interior onde viveu o despertar da adolescência (e na volta). 

Todo esse processo é revelado em Sismógrafo, romance de estreia do jovem escritor Leonardo Piana, nascido em Andradas (MG), mesma cidade onde se passa a história de Eduardo, que se apaixona por Tomás, rapaz um ano mais velho. A trama pede um começo poético, ainda que os dois tenham se cruzado pelas banalidades da adolescência. Tudo se intensifica naquela etapa em que os hormônios explodem e transformam um aperto de mãos em um prenúncio de algo maior. 

Gravurade Guignard, datada de 1961, mostra como a religião é fundamental na cartografia de cidades mineiras, com igrejas centralizadas, como visto no romance 'Sismógrafo' Foto: Museu de Arte Moderna de São Paulo

A maturidade se revela desengonçada na rotina marcada pelos olhos cerrados dos outros garotos ao protagonista. Eduardo sente na pele o preconceito, justo quando sua privacidade é violada com o vazamento de uma fotografia. Embora seja essa uma das preocupações mais caras ao menino, que crescia numa época em que não se ouvia falar em sexting, sobressaem as divagações do jovem a respeito de um amor à margem, vivenciado na surdina para não dar o que falar. 

Sentimento universal, ainda que nivelado à sombra do interior mineiro, Andradas, às margens da Serra da Mantiqueira, não perde para a datcha (casa de veraneio) de Moscou onde Vladímir Petróvitch, personagem de 16 anos (idade de Eduardo), apaixonou-se por Zinaida. Criado por Ivan Turguêniev, seu pequeno romance Primeiro Amor é um tratado sobre como a adolescência é vertiginosa à luz  dos dilemas do coração. É elementar o impulso que Sismógrafo e Primeiro Amor tomam partindo da inocência, como se um fio saísse do mesmo novelo, séculos depois, para tratar de uma problemática muito batida, um amor de infância. Goethe, a exemplo, era mestre em construir essas sensações de primeiro espanto, tornando-se conhecido pelos jovens Wilhelm e Werther, que, como Turguêniev, reputou-se como farol para novas gerações que se aventuraram na temática do bildungsroman e o fazem até nossos dias. 

Mineiro de Andradas, Leonardo Piana voltou à cidade natal para escrever 'Sismógrafo', seu romance de estreia Foto: Joaquim Ramalho/Acervo do autor

Sismógrafo tem uma rara beleza por ser um livro fotográfico sem imagens, sensorial, como se as palavras printadas em suas páginas montassem uma galeria de objetos singelos e, ao mesmo tempo, caros para quem se apaixonou cedo demais, pela primeira vez, o toque, e a sensação do relâmpago corroendo as vísceras. Como Piana escreve em dado momento, "O envelope pardo, posto com cuidado na última gaveta, cheio das fotos de Tomás, o volume do corpo dele ocupando sempre muito espaço no meio de tudo o que eu guardo." 

A pulsão obsessora do protagonista, o viço que lhe ata ao desejo inconcluso durante suas páginas, a brutalidade do desejo nascendo de uma paixão proibida é tratada com maturidade de quem observa a vida pelo retrovisor, sob o olhar do fotógrafo que retorna à cidade natal para fechar algumas portas entreabertas. O filme do passado reluz, como se certas fotografias nunca amarelassem na memória, algo como uma frase escrita pelo inglês Christopher Isherwood, em Adeus a Berlim, que se encaixa precisamente em Sismógrafo: “Sou uma câmera com o diafragma aberto, passiva, registrando tudo, não pensando”. Se amor é uma inciência, o escriba mostra que sabe até onde dá pé ao ambientar personagens em conflito com o espaço comprimido de um interior fadado ao atraso. Como? Embora lhes cative a proximidade nascida naquele terreno de afeto, ao som de rock psicodélico debaixo do céu estrelado da mantiqueira, o futuro é a promessa que conduz Clara, Eduardo e Tomás como a maioria dos jovens que desejam viver sem limitações espaciais e longe do provincianismo careta. 

Detalhe de dois cravos nascendo em um roseiral na cidade de Andradas, interior de Minas Gerais, onde se passa o romance 'Sismógrafo',de Leonardo Piana Foto: Tiago Queiroz/Estadão

 

Nada é premeditado, a tensão leva o leitor de volta aos próprios delírios da juventude, ao frisson das primeiras vezes. "Juntos fizemos o melhor que a adolescência havia nos reservado em Andradas, em 2010, ou o pouco que tínhamos aprendido: pedimos lanches para comer em casa, enchemos copos de suco em pó com vodca barata e escutamos de novo o primeiro disco do mgmt". 

Sismógrafo foi vencedor do concurso da cidade de Belo Horizonte (2019), que já premiou escritores como Autran Dourado, Ivan Ângelo e Flavio Cafiero. Editado pela Macondo, pequena editora que publicou o aterrador Preocupações, de Ana Guadalupe, Piana  recebeu o apoio do programa Rumos, do Itaú Cultural.

Sismógrafo 

Autor: Leonardo Piana 

Editora: Macondo 

250 páginas. R$ 41,60

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