Pelos versos do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616), Sofia Nestrovski lança a pergunta guia de seu novo livro: “Qual é a sua substância, do que você é feito?/ Quantas sombras esquisitas te acompanham?”. O excerto faz parte de um dos sonetos mais conhecidos do autor, o de número 53, e abarca em tão poucas palavras o questionamento da matéria. A alma. Um dilema que atravessa a ciência, passa pela religião e, para ser explicado, começa-se pela literatura.
Para responder às perguntas do poeta, nasceu A História Invisível, pequeno livro de 100 páginas que carrega consigo já um fardo: ser criança. Uma saga contada em várias fábulas, a protagonista, que também se chama Sofia, é uma criança solitária que quer se tornar invisível.
Seu desejo é realizado depois da garota descobrir que em seu aquário vive um peixe mágico, eles conversam e, juntos, imaginam como é a vida dentro da redoma de vidro. A menina observa a água, reflete sobre a translucência, os raios solares. Fenômenos elementares da física e química explicados com poesia, graça.
Na prosa de Nestrovski, que lançou no semestre passado As 20 Mil Léguas de Charles Darwin (também pela Fósforo), a ciência é contada com contornos literários. A autora consegue fazer essa interseção entre a literatura e os fenômenos do universo. Já em sua História Invisível, a licença poética da ficção permite lições de observação da natureza com intervenções do poético atrelado ao fantástico e ao místico, como o sapo que conversa como Absolem ou mesmo o Nada, um peixe com ares de sabichão.
“Sofia tirou a mão do aquário e fechou bem rápido, a luz não reagiu. Virou a palma para a luz. Silêncio. O peixe, de dentro do aquário, sussurrou: “in-vi-sí-vel”. Sofia continuou olhando para a própria mão, diante da luz”, escreve a autora, sobre o momento em que a personagem começa a transformação. “Sofia decidiu testar a outra mão, e testou todas as formas: de garra, coelho, pedra, papel, tesoura. Todos diziam a mesma coisa: essas mãos estão sem borda nem recheio. A luz passava direto”.
No começo de sua caminhada, a protagonista se esconde em uma velha árvore em frente a sua casa. Ao adentrar a fissura que se revela no tronco, naquele espaço vazio onde a paz da escuridão reina, a garota reflete sobre a existência, mas sem pretensão alguma. Como todas as crianças. E esse pequeno ato de rebeldia contra os pais confere à garotinha um sopro de liberdade imenso. Imaginem só, se embarafustar dentro de uma árvore para observar aquela arquitetura ancestral. A partir deste contato com o mundo vegetal, surge a revelação do mundo místico.
A incursão da personagem na toca lembra a protagonista mais famosa do escritor Lewis Carroll (1832-1898), Alice, a menina que conheceu o País das Maravilhas no clássico da literatura inglesa. Assim como a personagem de Carroll, Sofia passará por provações de natureza filosófica. Mas seu objetivo não é voltar para a casa, e sim se encontrar conforme adentra uma floresta, algo parecido com o que propôs o alemão Patrick Süskind em seu romance A História do Senhor Sommer, com um garotinho que vivia subindo em árvores na Floresta Negra.
A solidão das personagens de Sofia Nestrovski é uma característica notada desde a HQ, lançada com a ilustradora Deborah Salles, Viagem Em Volta de Uma Ervilha, que narra a viagem da escritora com sua gata em um mundo psicodélico dentro do próprio apartamento. Essa atmosfera onírica é também influência de Shakespeare na obra da escritora. Autor de O Sonho de Uma Noite de Verão, o dramaturgo criou seu mundo influenciado pela atmosfera do fantástico. Gnomos, fadas, lendas, são alguns dos recursos que tanto Shakespeare, quanto Nestrovski usam em seus livros para construir atmosferas não lineares, mas que, para quem sonha, parecem fazer todo sentido.
Sentimentos essenciais são evocados pelo recurso do onírico. Personagens fantásticas dão maior credibilidade às sensações primárias, como a angústia, o medo, a ansiedade. Talvez esse seja o trunfo das pequenas fábulas criadas: mostrar que, mesmo sozinho, a natureza por si só é companheira.
Como o banal não preenche a vida de Sofia, eis que a ficção é o chamado irrecusável para suprir as lânguidas tardes. E o humor vem a favor: “Quem é a mais bela?/Bem mais que a Isabela?/Sem orelha nem moela? Todo mundo gosta dela: É ela! É ela!/A nossa mortadela!”.
Com belas ilustrações de Danilo Zamboni, A História Invisível é uma saga que parece chegar à fronteira do Paraíso mas, de fato, nunca adentra seus limites. Há uma vertigem que acompanha a personagem, pois “Caminhando , sem nunca parar, talvez seguisse assim por anos.” Sofia segue seu caminho passando por inúmeras metamorfoses, como peixe, árvore, rã, ou o Nada, que, a um passo do abismo, pode simbolizar a totalidade da vida, a presença do invisível.