Ta-Nehisi Coates usa elemento mágico para falar sobre escravidão


Seu romance de estreia, 'A Dança da Água', trata de um escravo que descobre a capacidade de se teleportar

Por Paulo Nogueira

A melhor literatura sempre foi inconformista. Só não pode descambar em panfleto, nem em sociologia (que lida com coletivos e generalizações - cada macaco no seu galho). Nem em anátema ficcional, com o bem todinho de um lado e o mal todo do outro (por inércia, o bem ganhará moralmente, mesmo perdendo factualmente). Nem Primo Levi fez isso ao descrever o mais abominável dos horrores (o Holocausto). Até porque, quando o contexto mudar, a obra se reduzirá a um documento datado. Literatura é narrativa, conta uma história que vai de A a B, num aqui e agora, não militância nem doutrinação, por mais virtuosa que esta seja. Como arte, na literatura ética e estética são reciprocamente simbióticas, e não parasitárias. 

O escritor Ta-Nehisi Coates Foto: Elias Williams/The Washington Post

  Daí podemos avaliar o angu de caroço em que Ta-Nehisi Coates, 45, se meteu ao encarar seu primeiro romance, em plena efervescência do Black Lives Matter. Coates é um VIP da ensaística e do jornalismo americanos, ganhador do diamantino MacArthur Genius Grant (concedido, por exemplo, a Harold Bloom, Stephen Jay Gould e Susan Sontag) e autor do best-seller Entre o Mundo e Eu, em forma de carta ao filho adolescente. Ele parece postular uma “terceira via” para a dicotomia Martin Luther King/Malcolm X, daí ser alfinetado por radicais negros como Cornel West. Coates reciclou o personagem de HQ Pantera Negra, criado por Stan Lee e Jack Kirby em 1966, já no contexto da luta pelos direitos civis nos EUA. Foi a versão dele que inspirou o filme epônimo, estrelado por Chadwick Boseman, morto recentemente.  Ninguém pode acusar Coates de olho maior que a barriga: ralou dez anos na escrita de A Dança da Água. Ele assume a influência de E. L. Doctorow (e os romances Ragtime e Billy Bathgate) e um xodó que vem da infância pelos paladinos das histórias em quadrinhos. Sem confundir alhos com bugalhos: “Na minha pesquisa sobre a Guerra da Secessão, verifiquei que muita gente considerada heroica não passava de supremacista branco”.  O protagonista é Hiram, que narra a história muitos anos depois. Ele nasceu escravo numa decadente plantação de tabaco, no Sul pré-Lincoln e guerra civil. Bastardo mestiço de um fazendeiro branco e de uma negra que foi vendida pelo pai dele, Hiram descobre que detém um superpoder: a Condução, a faculdade de se teletransportar através de distâncias astronômicas. É assim que sobrevive quando uma carroça cai num rio, enquanto seu meio-irmão branco morre afogado. Mas possui também uma mirabolante memória fotográfica – só não consegue se lembrar da sua própria mãe. Hiram foge para a Filadélfia e adere aos abolicionistas, incluindo o mítico “Moisés”. Embora escravo, o narrador na primeira pessoa se exprime não numa retórica tosca (como por exemplo o Jim e o Huck de Mark Twain), porém com um léxico requintado e uma precisão verbal elegíaca e quase flaubertiana. Coates tem um ardil astucioso para a aparente inverosimilhança: “Ouvia os outros falarem, mas ouvia menos do que via, suas palavras tomavam forma como imagens, correntes de cores, linhas, texturas e formatos que eu podia guardar dentro de mim. E o meu dom era recuperar essas imagens a qualquer momento e traduzi-las de volta com as palavras exatas com que foram evocadas.”  Pena que os demais personagens batam todos na mesma tecla, o que afeta o dinamismo da trama. Vira e mexe os diálogos soam como monólogos esquemáticos, arengas justas e justificáveis, que correspondem mais a verbetes formatados do que a falas espontâneas, individualizadas e viscerais. De tantas em tantas páginas, a trama puxa o breque de mão e um novo personagem perora e vende seu peixe, com exemplos autobiográficos. Os interlocutores concordam com ele e passam a bola ao próximo orador, numa espécie de debate parlamentar estático e oposto ao ritmo épico que o autor aspira. O proverbial lapso dos ficcionistas inexperientes: narrar muito, mostrar pouco.  Por outro lado, nem a pincelada sobrenatural nem a reconstituição histórica são perrengues para Coates. Nem para seus precursores: quanto ao sobrenatural, Toni Morrison semeou-o em Amada, Octavia Butler em Laços de Sangue e Colson Whitehead (para mim um dos melhores escritores contemporâneos) em Underground Railroad. Assim como no romance de Whitehead, o protagonista de Coates se envolve com a “Rota Subterrânea” – a rede de caminhos e esconderijos secretos usada por escravos e abolicionistas como meio de fuga do Sul para o Norte. E a liberdade poética vai mais longe: “Moisés” também detém a Condução, e se revela a histórica Harriet Tubman – nascida na servidão, ela escapou do jugo e participou de 19 missões para resgatar mais de 300 escravos (desde 2016 a efígie dela substituiu a do presidente Andrew Jackson na nota de 20 dólares).  A metáfora central de A Dança da Água (Hiram recorda tudo, menos a mãe, a matriz de onde ele saiu) é pungente e poderosa, revitalizando a leitura. Afinal, um dos pecados dos EUA é não só a escravidão, mas a amnésia deliberada associada a ela e que nutre o racismo, com aquela contaminação moral tóxica que lembra o colaboracionismo tácito dos alemães que não podiam ignorar os fornos crematórios nazistas.  Como diz Coates, “raça é filha do racismo, não do pai” (cientificamente, o conceito de “raça” é espúrio e ideológico). Verdade que o tráfico transatlântico não é caso único. A Grécia Clássica, berço da civilização ocidental, tinha escravos. Já o tráfico arábico-muçulmano foi o mais devastador que a África sofreu: começando no século 7, só terminou no século 20. Hoje o comércio de pessoas é um crime contra a humanidade (o primeiro a assim classificá-lo foi o francês Victor Schoelcher, no século 19) – mas antes dos finais do século 18 não era crime em parte alguma do planeta.  E é esse branqueamento (em sentido figurado e literal), que “transfigura o roubo em caridade”, e se nutre de uma teia de imposturas e mistificações, e ainda abastece os supremacistas brancos. Daí o “homem invisível”, como em outro precursor Coates, Ralph Ellison: “Sou um homem invisível. Não, não um fantasma como aqueles de Edgar Allan Poe; nem dos filmes hollywoddianos de ectoplasma. Sou um homem de substância, de carne e osso, fibras e líquidos – e até possuo uma mente. Compreendam: sou invisível simplesmente porque as pessoas se recusam a me ver.”  A boa literatura faz a sua parte para tornar o invisível não apenas conspícuo e veemente como duradouro e arrebatador. É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

A melhor literatura sempre foi inconformista. Só não pode descambar em panfleto, nem em sociologia (que lida com coletivos e generalizações - cada macaco no seu galho). Nem em anátema ficcional, com o bem todinho de um lado e o mal todo do outro (por inércia, o bem ganhará moralmente, mesmo perdendo factualmente). Nem Primo Levi fez isso ao descrever o mais abominável dos horrores (o Holocausto). Até porque, quando o contexto mudar, a obra se reduzirá a um documento datado. Literatura é narrativa, conta uma história que vai de A a B, num aqui e agora, não militância nem doutrinação, por mais virtuosa que esta seja. Como arte, na literatura ética e estética são reciprocamente simbióticas, e não parasitárias. 

O escritor Ta-Nehisi Coates Foto: Elias Williams/The Washington Post

  Daí podemos avaliar o angu de caroço em que Ta-Nehisi Coates, 45, se meteu ao encarar seu primeiro romance, em plena efervescência do Black Lives Matter. Coates é um VIP da ensaística e do jornalismo americanos, ganhador do diamantino MacArthur Genius Grant (concedido, por exemplo, a Harold Bloom, Stephen Jay Gould e Susan Sontag) e autor do best-seller Entre o Mundo e Eu, em forma de carta ao filho adolescente. Ele parece postular uma “terceira via” para a dicotomia Martin Luther King/Malcolm X, daí ser alfinetado por radicais negros como Cornel West. Coates reciclou o personagem de HQ Pantera Negra, criado por Stan Lee e Jack Kirby em 1966, já no contexto da luta pelos direitos civis nos EUA. Foi a versão dele que inspirou o filme epônimo, estrelado por Chadwick Boseman, morto recentemente.  Ninguém pode acusar Coates de olho maior que a barriga: ralou dez anos na escrita de A Dança da Água. Ele assume a influência de E. L. Doctorow (e os romances Ragtime e Billy Bathgate) e um xodó que vem da infância pelos paladinos das histórias em quadrinhos. Sem confundir alhos com bugalhos: “Na minha pesquisa sobre a Guerra da Secessão, verifiquei que muita gente considerada heroica não passava de supremacista branco”.  O protagonista é Hiram, que narra a história muitos anos depois. Ele nasceu escravo numa decadente plantação de tabaco, no Sul pré-Lincoln e guerra civil. Bastardo mestiço de um fazendeiro branco e de uma negra que foi vendida pelo pai dele, Hiram descobre que detém um superpoder: a Condução, a faculdade de se teletransportar através de distâncias astronômicas. É assim que sobrevive quando uma carroça cai num rio, enquanto seu meio-irmão branco morre afogado. Mas possui também uma mirabolante memória fotográfica – só não consegue se lembrar da sua própria mãe. Hiram foge para a Filadélfia e adere aos abolicionistas, incluindo o mítico “Moisés”. Embora escravo, o narrador na primeira pessoa se exprime não numa retórica tosca (como por exemplo o Jim e o Huck de Mark Twain), porém com um léxico requintado e uma precisão verbal elegíaca e quase flaubertiana. Coates tem um ardil astucioso para a aparente inverosimilhança: “Ouvia os outros falarem, mas ouvia menos do que via, suas palavras tomavam forma como imagens, correntes de cores, linhas, texturas e formatos que eu podia guardar dentro de mim. E o meu dom era recuperar essas imagens a qualquer momento e traduzi-las de volta com as palavras exatas com que foram evocadas.”  Pena que os demais personagens batam todos na mesma tecla, o que afeta o dinamismo da trama. Vira e mexe os diálogos soam como monólogos esquemáticos, arengas justas e justificáveis, que correspondem mais a verbetes formatados do que a falas espontâneas, individualizadas e viscerais. De tantas em tantas páginas, a trama puxa o breque de mão e um novo personagem perora e vende seu peixe, com exemplos autobiográficos. Os interlocutores concordam com ele e passam a bola ao próximo orador, numa espécie de debate parlamentar estático e oposto ao ritmo épico que o autor aspira. O proverbial lapso dos ficcionistas inexperientes: narrar muito, mostrar pouco.  Por outro lado, nem a pincelada sobrenatural nem a reconstituição histórica são perrengues para Coates. Nem para seus precursores: quanto ao sobrenatural, Toni Morrison semeou-o em Amada, Octavia Butler em Laços de Sangue e Colson Whitehead (para mim um dos melhores escritores contemporâneos) em Underground Railroad. Assim como no romance de Whitehead, o protagonista de Coates se envolve com a “Rota Subterrânea” – a rede de caminhos e esconderijos secretos usada por escravos e abolicionistas como meio de fuga do Sul para o Norte. E a liberdade poética vai mais longe: “Moisés” também detém a Condução, e se revela a histórica Harriet Tubman – nascida na servidão, ela escapou do jugo e participou de 19 missões para resgatar mais de 300 escravos (desde 2016 a efígie dela substituiu a do presidente Andrew Jackson na nota de 20 dólares).  A metáfora central de A Dança da Água (Hiram recorda tudo, menos a mãe, a matriz de onde ele saiu) é pungente e poderosa, revitalizando a leitura. Afinal, um dos pecados dos EUA é não só a escravidão, mas a amnésia deliberada associada a ela e que nutre o racismo, com aquela contaminação moral tóxica que lembra o colaboracionismo tácito dos alemães que não podiam ignorar os fornos crematórios nazistas.  Como diz Coates, “raça é filha do racismo, não do pai” (cientificamente, o conceito de “raça” é espúrio e ideológico). Verdade que o tráfico transatlântico não é caso único. A Grécia Clássica, berço da civilização ocidental, tinha escravos. Já o tráfico arábico-muçulmano foi o mais devastador que a África sofreu: começando no século 7, só terminou no século 20. Hoje o comércio de pessoas é um crime contra a humanidade (o primeiro a assim classificá-lo foi o francês Victor Schoelcher, no século 19) – mas antes dos finais do século 18 não era crime em parte alguma do planeta.  E é esse branqueamento (em sentido figurado e literal), que “transfigura o roubo em caridade”, e se nutre de uma teia de imposturas e mistificações, e ainda abastece os supremacistas brancos. Daí o “homem invisível”, como em outro precursor Coates, Ralph Ellison: “Sou um homem invisível. Não, não um fantasma como aqueles de Edgar Allan Poe; nem dos filmes hollywoddianos de ectoplasma. Sou um homem de substância, de carne e osso, fibras e líquidos – e até possuo uma mente. Compreendam: sou invisível simplesmente porque as pessoas se recusam a me ver.”  A boa literatura faz a sua parte para tornar o invisível não apenas conspícuo e veemente como duradouro e arrebatador. É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

A melhor literatura sempre foi inconformista. Só não pode descambar em panfleto, nem em sociologia (que lida com coletivos e generalizações - cada macaco no seu galho). Nem em anátema ficcional, com o bem todinho de um lado e o mal todo do outro (por inércia, o bem ganhará moralmente, mesmo perdendo factualmente). Nem Primo Levi fez isso ao descrever o mais abominável dos horrores (o Holocausto). Até porque, quando o contexto mudar, a obra se reduzirá a um documento datado. Literatura é narrativa, conta uma história que vai de A a B, num aqui e agora, não militância nem doutrinação, por mais virtuosa que esta seja. Como arte, na literatura ética e estética são reciprocamente simbióticas, e não parasitárias. 

O escritor Ta-Nehisi Coates Foto: Elias Williams/The Washington Post

  Daí podemos avaliar o angu de caroço em que Ta-Nehisi Coates, 45, se meteu ao encarar seu primeiro romance, em plena efervescência do Black Lives Matter. Coates é um VIP da ensaística e do jornalismo americanos, ganhador do diamantino MacArthur Genius Grant (concedido, por exemplo, a Harold Bloom, Stephen Jay Gould e Susan Sontag) e autor do best-seller Entre o Mundo e Eu, em forma de carta ao filho adolescente. Ele parece postular uma “terceira via” para a dicotomia Martin Luther King/Malcolm X, daí ser alfinetado por radicais negros como Cornel West. Coates reciclou o personagem de HQ Pantera Negra, criado por Stan Lee e Jack Kirby em 1966, já no contexto da luta pelos direitos civis nos EUA. Foi a versão dele que inspirou o filme epônimo, estrelado por Chadwick Boseman, morto recentemente.  Ninguém pode acusar Coates de olho maior que a barriga: ralou dez anos na escrita de A Dança da Água. Ele assume a influência de E. L. Doctorow (e os romances Ragtime e Billy Bathgate) e um xodó que vem da infância pelos paladinos das histórias em quadrinhos. Sem confundir alhos com bugalhos: “Na minha pesquisa sobre a Guerra da Secessão, verifiquei que muita gente considerada heroica não passava de supremacista branco”.  O protagonista é Hiram, que narra a história muitos anos depois. Ele nasceu escravo numa decadente plantação de tabaco, no Sul pré-Lincoln e guerra civil. Bastardo mestiço de um fazendeiro branco e de uma negra que foi vendida pelo pai dele, Hiram descobre que detém um superpoder: a Condução, a faculdade de se teletransportar através de distâncias astronômicas. É assim que sobrevive quando uma carroça cai num rio, enquanto seu meio-irmão branco morre afogado. Mas possui também uma mirabolante memória fotográfica – só não consegue se lembrar da sua própria mãe. Hiram foge para a Filadélfia e adere aos abolicionistas, incluindo o mítico “Moisés”. Embora escravo, o narrador na primeira pessoa se exprime não numa retórica tosca (como por exemplo o Jim e o Huck de Mark Twain), porém com um léxico requintado e uma precisão verbal elegíaca e quase flaubertiana. Coates tem um ardil astucioso para a aparente inverosimilhança: “Ouvia os outros falarem, mas ouvia menos do que via, suas palavras tomavam forma como imagens, correntes de cores, linhas, texturas e formatos que eu podia guardar dentro de mim. E o meu dom era recuperar essas imagens a qualquer momento e traduzi-las de volta com as palavras exatas com que foram evocadas.”  Pena que os demais personagens batam todos na mesma tecla, o que afeta o dinamismo da trama. Vira e mexe os diálogos soam como monólogos esquemáticos, arengas justas e justificáveis, que correspondem mais a verbetes formatados do que a falas espontâneas, individualizadas e viscerais. De tantas em tantas páginas, a trama puxa o breque de mão e um novo personagem perora e vende seu peixe, com exemplos autobiográficos. Os interlocutores concordam com ele e passam a bola ao próximo orador, numa espécie de debate parlamentar estático e oposto ao ritmo épico que o autor aspira. O proverbial lapso dos ficcionistas inexperientes: narrar muito, mostrar pouco.  Por outro lado, nem a pincelada sobrenatural nem a reconstituição histórica são perrengues para Coates. Nem para seus precursores: quanto ao sobrenatural, Toni Morrison semeou-o em Amada, Octavia Butler em Laços de Sangue e Colson Whitehead (para mim um dos melhores escritores contemporâneos) em Underground Railroad. Assim como no romance de Whitehead, o protagonista de Coates se envolve com a “Rota Subterrânea” – a rede de caminhos e esconderijos secretos usada por escravos e abolicionistas como meio de fuga do Sul para o Norte. E a liberdade poética vai mais longe: “Moisés” também detém a Condução, e se revela a histórica Harriet Tubman – nascida na servidão, ela escapou do jugo e participou de 19 missões para resgatar mais de 300 escravos (desde 2016 a efígie dela substituiu a do presidente Andrew Jackson na nota de 20 dólares).  A metáfora central de A Dança da Água (Hiram recorda tudo, menos a mãe, a matriz de onde ele saiu) é pungente e poderosa, revitalizando a leitura. Afinal, um dos pecados dos EUA é não só a escravidão, mas a amnésia deliberada associada a ela e que nutre o racismo, com aquela contaminação moral tóxica que lembra o colaboracionismo tácito dos alemães que não podiam ignorar os fornos crematórios nazistas.  Como diz Coates, “raça é filha do racismo, não do pai” (cientificamente, o conceito de “raça” é espúrio e ideológico). Verdade que o tráfico transatlântico não é caso único. A Grécia Clássica, berço da civilização ocidental, tinha escravos. Já o tráfico arábico-muçulmano foi o mais devastador que a África sofreu: começando no século 7, só terminou no século 20. Hoje o comércio de pessoas é um crime contra a humanidade (o primeiro a assim classificá-lo foi o francês Victor Schoelcher, no século 19) – mas antes dos finais do século 18 não era crime em parte alguma do planeta.  E é esse branqueamento (em sentido figurado e literal), que “transfigura o roubo em caridade”, e se nutre de uma teia de imposturas e mistificações, e ainda abastece os supremacistas brancos. Daí o “homem invisível”, como em outro precursor Coates, Ralph Ellison: “Sou um homem invisível. Não, não um fantasma como aqueles de Edgar Allan Poe; nem dos filmes hollywoddianos de ectoplasma. Sou um homem de substância, de carne e osso, fibras e líquidos – e até possuo uma mente. Compreendam: sou invisível simplesmente porque as pessoas se recusam a me ver.”  A boa literatura faz a sua parte para tornar o invisível não apenas conspícuo e veemente como duradouro e arrebatador. É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

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