Claudia Raia já interpretou tipos distintos de mulheres no palco, desde amarguradas (Sally Bowles, em Cabaret), iludidas (Charity, em Sweet Charity) e até atrizes canastronas (Lina Lamont, em Cantando na Chuva). Agora, ela enfrenta um dos maiores desafios de sua carreira: viver a pintora Tarsila do Amaral.
“Foi uma artista cuja importância da obra se impôs, apesar de ser uma mulher tímida, quase fechada, algo totalmente diferente de mim”, conta a atriz ao Estadão. Ela é a protagonista do musical Tarsila, A Brasileira, que estreia no dia 25 de janeiro no Teatro Santander, em São Paulo.
É a realização de um projeto antigo, nascido em 2020, durante a pandemia, quando Claudia, isolada em Bragança Paulista, recebeu um telefonema de Tarsilinha, sobrinha-neta da pintora e administradora de seu acervo.
“Ela me pediu para viver sua tia-avó em um musical porque acredita que temos a mesma força. Não tive como recusar”, diz ela, que também assumiu a produção do espetáculo.
A demora para colocar o projeto em pé foi causada tanto pela pandemia de covid como pela gestação inesperada de Claudia, que foi mãe no ano passado. “Queríamos ter estreado em 2022, quando se comemorou o centenário da Semana de Arte Moderna, mas não foi possível”, explica a atriz de 57 anos.
Claudia Raia
Talvez não tenha sido uma grande infelicidade, pois Tarsila do Amaral (1886-1973) estava em Paris e não participou do evento modernista. Sua obra, porém, influenciada por vanguardas europeias, especialmente pelo cubismo, trouxe um estilo próprio, explorando formas, temáticas e cores na busca por uma pintura de caráter tipicamente brasileiro, características importantes do movimento. E ainda ela se notabilizou por quadros icônicos, como Abaporu.
”Apesar de ser um dos nomes mais aclamados na história da arte brasileira, Tarsila era uma mulher tímida, enigmática, misteriosa”, conta Claudia. “Nas pesquisas que fiz, descobri que a força dela estava justamente nessa timidez, na sua contenção, perceptível nos ombros mais pronunciados, no olhar mais baixo, mas com grande poder de ação. Era uma mulher plena, segura, mesmo tendo vivido muita coisa.”
Com o apoio garantido da família da pintora - Tarsilinha chegou a emprestar réplicas das joias da tia-avó para as fotos oficiais -, o musical, com texto e letras de Anna Toledo e José Possi Neto, que também assina a encenação e direção de arte, traz detalhes pouco conhecidos na trajetória de Tarsila.
“O lado B da pintora marca o segundo ato, onde conhecemos outra mulher, que precisou de muita coragem para suportar tantos infortúnios. Foi um pedido da família que esses fatos fossem revelados”, explica Claudia.
De fato, Tarsila enfrentou quatro casamentos frustrados, somou poucos amigos sinceros e, ignorada pela crítica de seu tempo, foi obrigada a vender quadros por encomenda até o final da vida. Sem dinheiro, precisou pintar paredes em Paris para conseguir retornar ao Brasil de uma viagem a Moscou.
Em 1965, um erro médico na cirurgia de coluna a deixou paralítica. No ano seguinte, perdeu sua única filha, Dulce. Entristecida, Tarsila chegou a procurar o médium Chico Xavier em busca de conforto espiritual.
”Talvez Tarsila desconfiasse que uma mulher independente incomoda muita gente. E talvez ela não fizesse questão de alardear sua independência - por temperamento, ou por estratégia, talvez um pouco de cada”, acredita Anna Toledo. “O que sabemos - e exploramos no palco - foi a sua tremenda habilidade de chegar onde queria sem bater de frente com ninguém, sempre através da festa e do encantamento.”
Anna Toledo
Entre os matrimônios, o destaque foi seu relacionamento com o escritor Oswald de Andrade (1890-1954), vivido na peça por Jarbas Homem de Mello, companheiro de Claudia na vida e na arte. O casamento aconteceu em 1923 e uniu duas pessoas muito distintas.
“Ele era um aventureiro, com o olhar sempre no futuro, o que o deixava livre para dizer suas verdades mesmo que isso incomodasse as pessoas”, afirma o ator, que demorou para descobrir o tom da interpretação. “Como não há grandes registros de som e imagem em movimento do Oswald, eu me apoiei muito na sua obra para criar o personagem”.
O fato é que Oswald foi o grande amor de Tarsila e juntos participaram dos grandes movimentos modernistas, como as fases Pau-Brasil e Antropofágico. “Um grande momento do musical é quando Tarsila presenteia Oswald no seu aniversário com o quadro Abaporu, em 1928″, conta Claudia.
Ela apresentava a obra como seu autorretrato, mas Oswald, enlouquecido com a figura, chamou o quadro como o registro da Antropofagia modernista nacional, que se propunha a deglutir a cultura estrangeira e adaptá-la ao Brasil. “Tarsila percebeu o valor daquele olhar e aceitou a sugestão do nome, dado por Oswald e o poeta Raul Bopp”, esclarece Claudia, lembrando que Abaporu vem do tupi e significa “homem que come gente”.
O fato de ser um musical original escrito para ela possibilitou que Claudia pudesse usar seu tom de voz natural, o de contralto. “Sempre tive de adaptar minha voz, pois não existem papeis que usam essa tonalidade”, comenta a atriz. “Claudia valoriza muito o texto cantado e as melodias (compostas por Tony Lucchesi e Guilherme Terra) destacam o ouro da sua tessitura, aproveitando os graves calorosos e a potência da sua voz”, completa Anna Toledo.
O elenco principal de Tarsila, a Brasileira foi definido por meio de escolhas de Claudia e da equipe técnica. Assim, ali estão artistas já vistos em outras montagens da atriz como Ivan Parente (que vive Menotti Del Picchia), Keila Bueno (Anita Malfatti), Carol Costa (Pagu), Dennis Pinheiro (Mario de Andrade), Reiner Tenente (Luis Martins) e Liane Maya (Olívia Guedes Penteado).
Desde que iniciou sua carreira, em 1982, com apenas 16 anos, na versão brasileira do musical A Chorus Line, Claudia Raia persegue uma independência artística. Não deixou de usar seu status de símbolo sexual quando necessário, mas soube impor papéis como o truculento Tonhão, no humorístico TV Pirata. “Diziam que não era papel para mulher bonita, mas acabou sendo um sucesso. Gosto dos desafios e, mesmo quando tenho de repetir, faço diferente. ”
Tarsila, a Brasileira é um de seus maiores desafios também como produtora. “É um musical que tem a dramaturgia como principal elemento, não fazemos concessões - eu não digo nenhuma piada durante toda a peça”, justifica. “E traz a essência da vida de Tarsila, a sofisticação e as dificuldades. Afinal, para enfrentar os problemas que ela sofreu só mesmo uma brasileira.”
Ponto a ponto - ‘Tarsila, A Brasileira’
- Tarsila do Amaral: pintora e desenhista, uma das artistas centrais da pintura brasileira e da primeira fase do movimento modernista brasileiro, com obras como O Abaporu.
- Oswald de Andrade: escritor, jornalista, dramaturgo, um dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, ficou conhecido pelo seu temperamento “irreverente e combativo”.
- Mario de Andrade: artista que atuou em várias áreas, impulsionou a poesia brasileira moderna com Pauliceia Desvairada, além de ser pioneiro no campo da etnomusicologia.
- Anita Malfatti: pintora e desenhista, fez uma exposição em 1917 que se tornou marco do movimento modernista no Brasil, apesar de criticada por Monteiro Lobato em artigo publicado no Estadão.
Serviço - ‘Tarsila, A Brasileira’
Dia: A partir de 25 de janeiro até 26 de maio (conferir no site todas as datas disponíveis)
Horários:
- Quintas-feiras, às 20h;
- Sextas-feiras, às 20h;
- Sábados, às 16h e 20h;
- Domingos, às 16h e 20h
Duração: 2h30min
Local: Teatro Santander
Endereço: Shopping JK Iguatemi - Av. Pres. Juscelino Kubitschek, 2041
Preços: de R$ 25 (balcão B meia entrada) a R$ 300 (VIP inteira)
Classificação etária: Livre, menores de 12 anos acompanhados dos pais ou responsáveis legais.