Fenômeno editorial da última década, a escritora italiana Elena Ferrante é um mistério – o que só aumenta o interesse em torno de sua obra. Concede raríssimas entrevistas, sempre por e-mail e intermediadas por agentes, não se conhece a sua imagem e já se questionou, inclusive, que, por trás desse pseudônimo, estaria um homem.
A tetralogia napolitana, formada pelos romances A Amiga Genial, História do Novo Sobrenome, História de Quem Foge e de Quem Fica e História da Menina Perdida, foi publicada entre 2011 e 2014 e vendeu mais de 16 milhões de exemplares em 48 países. Em 2018, a história das amigas Lenu e Lila ganhou versão para o audiovisual em série da HBO, assim como o romance A Filha Perdida, lançado na Itália em 2006, que virou filme da Netflix em 2021.
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É justamente A Filha Perdida o primeiro livro de Ferrante a ganhar adaptação teatral para os palcos brasileiros. Sob a direção de Fernanda Castello Branco e Paula Weinfeld, o espetáculo protagonizado por Juliana Araujo, Maristela Chelala e Alex Huszar estreia no Sesc Bom Retiro nesta sexta, 28, com a expectativa de despertar o interesse da vasta gama de leitores da italiana.
“Existe uma apreensão que é nossa também, a de entender como quem leu o livro ou viu o filme vai encarar a adaptação”, diz Fernanda. “Ferrante não está no terreno discursivo, como a maioria das peças atuais, por isso criamos apontamentos de uma linguagem capaz de reproduzir o espelhamento entre as personagens.”
Como Fernanda define, A Filha Perdida traz uma história aparentemente simples que se revela repleta de significados no seu desenvolvimento. Leda (interpretada por Maristela) é uma professora universitária que tira férias em uma praia e, ao observar a jovem Nina (papel de Juliana) brincando tão à vontade com a filha pequena, é invadida pelas memórias de um passado que inclui a negação à maternidade.
“Leda comete um ato impensado, quase absurdo, pega a boneca da garota e não consegue devolver, mas não se trata de uma vilã, é só uma mulher complexa, como são as personagens da Ferrante”, explica a codiretora. “Ela não se encaixou no modelo de mãe esperado pela sociedade e, como diz a Maristela em uma das falas da peça, ‘às vezes, a gente precisa fugir para não morrer’.”
A ideia de adaptar A Filha Perdida partiu de Juliana Araujo, de 39 anos, idealizadora da peça e autora da dramaturgia. Em agosto de 2020, no começo da pandemia, a atriz cedeu ao impulso de enviar um e-mail para a editora italiana de Ferrante, manifestando o ambicioso desejo de levar a obra ao teatro.
Uma resposta com um motivador “a autora se interessa pelo projeto” entrou na sua caixa de mensagens dois meses depois e começaram as negociações em relação aos direitos autorais. Juliana ofereceu 10% sobre qualquer verba que entrasse para a viabilização da montagem e, para a sua surpresa, recebeu um sinal verde. “O dinheiro foi quase uma formalidade, percebi que há um profundo interesse em espalhar a sua obra pelo mundo”, conta.
Juliana é mãe de Morena, de 7 anos, e de Antônia, de 3, e conheceu a escritora justamente por meio de A Filha Perdida. Em 2017, com a primeira menina recém-nascida, ela pulava de curiosidade ao ouvir os comentários sobre a tetralogia que dominavam as conversas dos amigos. Só que seria impossível, entre a amamentação, as fraldas e o puerpério, encarar quatro livros, e a mãe novata recorreu a um romance mais curto.
“Eu me identifiquei muito mais como filha que como a mãe que tinha acabado de me tornar”, revela ela, sobre A Filha Perdida, que releu outras cinco vezes. “A relação com a minha mãe sempre foi pouco confortável e nós nos distanciamos ao longo da vida a ponto de ela mal conhecer as minhas filhas.”
A inspiração para a dramaturgia veio em um momento de descanso, não por acaso na beira de uma praia. Em novembro de 2023, Juliana viajou com o marido, o jornalista Ivan Marsiglia, e as filhas para Caraíva, no litoral baiano, e, ao colocar a canga na areia, visualizou a primeira cena embalada por uma canção de ninar.
Ela se esqueceu do sol, se trancou na pousada e, em quatro dias, formatou o texto de A Filha Perdida antes de voltar a São Paulo. “Ferrante produz uma literatura sofisticada estruturada nas referências de um folhetim e aborda temas pesados, sensíveis de um jeito direto e envolvente”, declara. “Procurei misturar gêneros, como a comicidade, o suspense e até o terror, respeitando o estilo dela.”
Nos últimos meses, em meio aos ensaios da peça, Juliana entendeu que o teatro não seria um canal de terapia para resolver suas pendências familiares. “A personagem fala que a mãe grita, que não tem vergonha de se expor em público e, às vezes, me enxergo em situações parecidas com as que vivi, mas as relações que estabeleci entre o real e a ficção param por aí”, garante. “Como proteção, eu fui me distanciando o máximo possível da personagem para que essa carga dramática não respingasse em mim ou nas minhas filhas.”
A Filha Perdida
- Teatro do Sesc Bom Retiro (Alameda Nothmann, 185, Campos Elíseos)
- Sexta e sábado, 20h; domingo e feriado, 18h.
- Ingressos: R$ 50
- Até 28/7. Estreia 28/6