Jornalista, escritora e ativista política, Patrícia Galvão, a Pagú (1910-1962), personificou um famoso clichê, foi “uma mulher à frente do seu tempo”. Usava calça comprida, pintava o rosto e fumava em público no começo da década de 1930, mas, principalmente, defendia ideias transgressoras em uma época que o silêncio era a recomendação.
Aos 42 anos, a atriz Martha Nowill reconhece que até bem pouco tempo carregava uma visão superficial da ex-mulher do poeta Oswald de Andrade (1890-1954). Nada além da musa do movimento antropofágico e militante comunista, lições aprendidas na escola e capazes de minimizar uma biografia profunda e trágica. “É curioso que Pagú era prima em terceiro grau da minha bisavó materna e muita gente, inclusive, comentava que tínhamos uma certa semelhança física, meus olhos lembravam os dela.”
Com o nascimento de seus gêmeos, Ben e Max, em fevereiro de 2021, no auge da pandemia, Martha, que também é escritora, se sentiu desafiada a recuperar o seu lugar de fala adormecido pela maternidade. “Eu vivia descobertas lindas com meus filhos, mas me percebia sufocada, aprisionada”, afirma. Foi por meio da voz de Pagú, mesmo que muitas décadas as separassem, que a atriz se reconectou como artista e mulher, assumindo anseios não tão diferentes dos que, na intimidade, provocaram a sua futura personagem.
Sob a direção de Elias Andreato, o monólogo Pagú - Até Onde Chega a Sonda, que estreou no Espaço Cênico do Sesc Pompeia, funde essas figuras femininas. Muitas vezes é evidenciada a identidade de uma e de outra, mas, em boa parte da encenação, os limites são levemente borrados para deixar o espectador tirar as próprias conclusões. “A dramaturgia criada pela Martha mostra duas mulheres que têm em comum a força do pensamento, a expressão pela escrita e a determinação de atingir uma autocompreensão em meio às dificuldades do cotidiano”, explica Andreato.
Martha roteirizou a peça com base em um manuscrito inédito de Pagú, datado de 1939, época de sua prisão durante a ditadura de Getúlio Vargas. Reflexões sobre a violência política, pressões machistas e dilemas da maternidade, como a saudade do filho Rudá, criado por Oswald, aparecem no diário. “Acredito que Pagú tenha encontrado na escrita um alívio para não enlouquecer na prisão e, para mim, esse trabalho também foi uma válvula de escape”, diz a artista.
O texto original, no entanto, era duro, complexo, difícil de ser encenado. Em uma primeira etapa, a protagonista contou com a consultoria da atriz Isabel Teixeira, que desenvolve um método batizado de “escrita na cena” e adapta as falas à embocadura dos intérpretes. Martha gravou depoimentos sobre situações corriqueiras, como uma noite em claro com os filhos ou uma ida ao cabeleireiro, que, decupados por Isabel, serviram de exercício junto aos originais de Pagú. “Meu recorte é contar tudo o que senti lendo os manuscritos no meu caos pessoal que foi o puerpério”, define Martha.
Sutileza
Andreato entrou no processo em maio e, por seis meses, comandou leituras e ensaios que confrontaram Martha diante de Pagú para, depois de tanta aproximação, afastá-las em busca de uma interpretação crítica, porém não menos delicada. “Alcançamos uma sutileza que Martha chega a questionar algumas posições de Pagú sem deixar de lado a admiração nutrida por ela.”
O diretor ainda salienta que a peça sublinha as fragilidades de uma mulher em um momento de privação da liberdade e a necessidade de uma artista de se manter produtiva e levar a sua voz ao encontro de um interlocutor. “Temos em cena duas mulheres intensas e amorosas e, nessa hora, por mais que fique claro se é Pagú ou Martha, tanto faz, o público deve abstrair e ser levado pela emoção”, aposta Andreato.
Pagu - Até Onde Chega a Sonda
Sesc Pompeia. Rua Clélia, 93, tel. (11) 3871-7700.
3ª a 6ª, 20h30 (em 9 e 16/12 também haverá sessão às 17h30).
R$ 30 / R$ 15. Até 16/12.