Há duas semanas, na reta final dos ensaios de Cinco Poemas para a Senhora R, a atriz Denise Weinberg sonhou com o pai, o comerciante Felix Weinberg, morto há nove anos. No sonho, ele dormia em um quarto comum e, de repente, um desconhecido se aproximou e, com uma voz séria, disse para a filha: “Não atrapalha o seu pai, deixe-o descansar em paz”.
A artista acordou impressionada, mas entendeu a possível mensagem. Faz três meses, desde o início do processo do espetáculo, com dramaturgia e direção de Kiko Marques, que a memória paterna é evocada todos os dias entre os seus colegas.
O romeno Felix Weinberg foi um dos tantos judeus que chegaram ao Brasil fugidos da 2.ª Guerra Mundial. Em 1939 ele tinha 14 anos e, junto de sua mãe, começou a reconstruir a vida no Rio de Janeiro, logo se apaixonando pelo sol, pela praia e, um tempo depois, pela paraense Elza, com quem se casou e teve duas filhas.
As lembranças familiares de Denise, como as dos atores Mauro Schames e Paula Ravache, margeiam Cinco Poemas para a Senhora R, que acaba de estrear na Oficina Cultural Oswald de Andrade. Estimulados por Marques, todos contribuíram com relatos sobre os antepassados e a influência das tradições judaicas em suas vidas.
Mas a principal das histórias que inspiraram a peça é a da polonesa Rita Braun, hoje com 92 anos e morando em São Paulo desde 1946. Natural de Cracóvia, na Polônia, ela viu a guerra estourar aos 9 e, junto da mãe, foi sobrevivendo nos guetos. Uma das últimas testemunhas vivas do Holocausto, Rita relatou suas memórias no livro Fragmentos de uma Vida, lançado em 2008, que ganha reedição junto com a estreia da peça.
Cinco cenas
Marques criou cinco cenas que se cruzam baseadas nas experiências de Rita e do trio de atores. Na abertura, os intérpretes trazem à tona uma reflexão sobre a importância da montagem em um período em que se tornou comum duvidar dos fatos históricos. A seguir, Rita e uma jovem judia (interpretadas por Denise e Paula) se encontram em um cemitério e falam da relação com os mortos. No terceiro quadro, Schames vive um professor que nega o Holocausto, enquanto na quarta parte Rita relembra sua infância durante o nazismo. Por fim, os atores ponderam sobre o rumo tomado pelo mundo na atualidade.
Para Denise, trata-se de um espetáculo sobre sobreviventes. “O refugiado é como uma criança abandonada, tem um coração quebrado - meu pai, em seus delírios antes de morrer, dizia ter saudades da Romênia”, revela. A atriz avisa, porém, que o trabalho não é pautado por tristezas ou lamentações. Eles representam pessoas que buscaram a alegria para superar tragédias e tocar a vida adiante. “É importante recordar tudo isso para nunca mais esquecer, ainda mais neste mundo doente em que os genocídios não param de acontecer”.
O dramaturgo e diretor amplia o enfoque e define Cinco Poemas para a Senhora R como uma peça sobre solidariedade e pessoas preocupadas em cuidar umas das outras. “A história da Rita e sua mãe deixa isso claro porque nos guetos elas só conseguiram ficar vivas por conta dessa união”, explica.
Marques vasculhou a intimidade dos artistas à cata de memórias. Com três atores de gerações diferentes, ele observa que cada um recuperou um pouco de sua identidade nos ensaios. “Paula, por exemplo, tinha uma visão distante do judaísmo e compreendeu melhor as pessoas que a cercaram, como uma avó severa”, afirma. Nesse mergulho emotivo, Denise usa a metáfora de uma nadadora em alto-mar para sobrepor a técnica ao sentimento. “Nessa peça, enfrento o constante sobe-desce de uma onda, choro e controlo, choro e controlo, como se estivesse nadando.”
Cinco Poemas para a Senhora R
Oficina Oswald de Andrade. R. Três Rios, 363, tel. 3221-5558. 4ª a 6ª, 20h. Sáb., 15h e 18h. Gratuito. Até 20/5