A literatura do checo Franz Kafka (1883-1924) é surpreendente por deixar o leitor atônito diante de personagens que enfrentam situações intoleráveis. Do Gregor Samsa, de A Metamorfose, a Josef K., de O Processo, nenhum escapa ileso de tramas e argumentos labirínticos. Trata-se de uma obra marcada por uma linguagem literária única, na qual esconder-se, ou transformar-se em uma barata, era uma forma aliviadora de enfrentar a realidade. Assim, é reveladora a figura apresentada no musical infantil Kafka e a Boneca, que estreia neste sábado, 4, no Teatro do Sesi-SP, com ingressos gratuitos.
A trama é inspirada em um fato aparentemente real, envolvendo o escritor e uma menina. “Não há quase nenhum registro dessa história, apenas vagas referências em biografias que envolvem Kafka”, conta Marllos Silva, autor e diretor da peça. “Isso nos possibilitou preencher as lacunas de forma mais teatral.”
PARQUE
A história teria acontecido em 1923, quando Kafka viveu em Berlim com Dora Diamant, um período feliz - Kafka não gostava de nenhuma forma de compromisso sentimental, mas, nesse caso, se entregou sem reservas. Todas as tardes, ele passeava com Dora em um parque próximo, Steglitz, até ser surpreendido por uma menina, que chorava pela perda de sua boneca preferida. Para consolá-la, ele inventa uma história na qual a boneca tinha viajado. Diante da incredulidade da menina, Kafka afirma ter recebido uma carta dela. A garota pede para ver a missiva, ao que o escritor promete trazê-la no dia seguinte.
Naquela mesma tarde, Kafka escreveu a carta da boneca com a mesma seriedade que dedicou a sua própria obra, desejoso de substituir o objeto perdido por uma realidade que, segundo as leis da ficção, fosse tão persuasiva quanto verdadeira. No dia seguinte, ele leu o texto em voz alta para a menina, no qual a boneca contava sua decisão de viajar pelo mundo. Satisfeito com o resultado, Kafka se comprometeu então a escrever as cartas imaginárias durante três semanas, até encontrar um final convincente: a boneca decide se casar e, feliz, se despede.
Tal enredo é relatado no livro Kafka e a Boneca Viajante (Martins Fontes), escrito pelo espanhol Jordi Sierra i Fabra, que se baseou nos parcos relatos de Dora Diamant - as cartas, por exemplo, nunca foram encontradas. “Quando li a obra de Jordi, logo imaginei uma versão musical, pois, da mesma forma que Kafka faz com a garota, as canções nos levam para outra dimensão do espaço”, observa Marllos - que descobriu o livro em 2019, quando o leu para a filha Giulia.
MÚSICA
As observações da garotinha, aliás, orientaram o encenador no trabalho de composição. “A narrativa do livro é direta, ou seja, começa com a menina chorando pela falta da boneca. Parecia um tanto brusco, eu sentia a falta de uma curva dramática, especialmente para as pessoas que conhecem Kafka e a relação tumultuada que teve com o pai”, comenta. “Assim, abri mais espaço para o pai e a mãe da menina, que passou a se chamar Lia Hillel, uma homenagem ao diretor Yacov Hillel, morto em 2020.”
Aliás, as homenagens continuam: a boneca recebeu o nome de Marielle, em homenagem à vereadora Marielle Franco, e o pai da garota se chama Yosef, reverência aos inúmeros Josés que trabalham pela cultura. Marllos construiu uma dramaturgia que inspirava as melodias criadas por Daniel Rocha, também diretor musical do espetáculo. Segundo ele, a composição se deu a partir da suposição de como soava a paisagem sonora de um parque europeu depois da 1.ª Guerra Mundial - lembrando que a trama se passa em 1923.
O cenário de Marco Lima combina o tom sóbrio da literatura de Kafka com o colorido da imaginação da boneca. O escritor, aliás, é vivido por Marcos Lanza. “Mergulhei em sua história para descobrir caminhos, camadas e rotas”, diz ele, que atua com Bibi Valverde e Isa Camargo (revezando como Lia), Marcel Octávio, Renata Vilela, Giovanna Sassi, Fernando Palazza, Luiza Francabandiera e Rafael Aragão.
Entrevista com Marcos Lanza, intérprete de Franz Kafka
Qual material de pesquisa sobre o Kafka você utilizou?
Além de ler o livro da história onde o espetáculo foi inspirado , li alguns trechos e biografias e teses sobre ele e tb assisti um documentário chamado “quem foi Kafka " que pra mim foi super determinante para a construção do personagem !
Como foi construir esse personagem: gestos, fala, postura?
Diferente da maioria dos musicais que não temos mto tempo de fazer laboratórios, nosso preparador e diretor de movimento Fabrício Licursi nos proporcionou através de exercícios e pesquisas corporais descobertas em relação a composição do personagem
Kafka já foi personagem de alguns filmes - vc utilizou algum como inspiração?
Eu preferi não ter referência de atores interpretando Kafka justamente para descobrir camadas e intenções inspirado no nosso universo infantil!
Criar o personagem inspirado em alguém que existiu é mais difícil ou mais fácil do que viver um personagem imaginário?
Kafka é um ser humano complexo, provavelmente era cheio de maneirismos sociais mas , Nesse caso não achei tão difícil pq não temos muitos registros dele em vídeos , o que talvez tenha me permitido construir o meu Kafka pensando em como ele seria e como ele seria no meu imaginário , transportado para o universo infantil
Qual é o desafio de despertar atenção de uma plateia que deverá ter tanto adultos como crianças?
O espetáculo é cheio de momentos emblemáticos e significativos seguidos de muita emoção , talvez pra mim seja, fazer essa emoção chegar na plateia de uma forma leve e reflexiva mas que tb seja divertida