Em uma conversa com a crítica de teatro Barbara Heliodora (1923-2015), o diretor Gabriel Villela, de 65 anos, descobriu que, além da tragédia Hamlet celebrada nos palcos há quatro séculos, o dramaturgo William Shakespeare (1564-1616) tinha deixado outras duas versões menos conhecidas da mesma história. Eram meados da primeira década de 2000, e Villela encenava Fausto Zero, que partia de Urfaust, o escrito inicial de Goethe (1749-1832) para Fausto, que, nas palavras de Heliodora, copiava o modelo do bardo inglês.
Curioso, ele passou a garimpar o texto pouco divulgado em viagens aos Estados Unidos, Canadá e Europa. Até que, em 2014, o doutor em literatura inglesa e norte-americana José Roberto O’Shea fez a primeira tradução para o português desse Hamlet seminal, lançada em livro pela editora Hedra e base de uma peça encenada por Márcio Meirelles em Salvador nunca vista em São Paulo.
Primeiro Hamlet, que estreia neste sábado, 11, no Teatro Antunes Filho, do Sesc Vila Mariana, é o resultado do empenho de Villela para levar ao palco “a nascente deste rio transformador da dramaturgia universal”, como ele define. O processo atravessou quatro meses diários de ensaios e, na busca pela perfeição, o diretor, se tivesse mais fôlego e um orçamento menos enxuto, gostaria de um tempo maior para os atores e atrizes ruminarem a obra. “Mas não sou de reclamar porque o teatro sempre esteve em crise e sou acostumado a conviver com pouca água no deserto.”
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Na peça, o jovem Hamlet (interpretado por Chico Carvalho) encontra o fantasma do pai (papel de Elias Andreato). O espectro revela ter sido envenenado por seu irmão, Cláudio (vivido por Claudio Fontana), que, agora, casado com a rainha Gertred (a atriz Luciana Carnieli), assumiria o trono da Dinamarca. Atormentado diante da descoberta, o rapaz cria um plano para comprovar o crime e se vingar do assassino que tirou a vida do pai por ganância.
A história, como se percebe, é a mesma da terceira e definitiva versão, levada aos palcos brasileiros somente nas últimas duas três décadas por atores como Marco Ricca, Diogo Vilela, Wagner Moura e Thiago Lacerda, entre outros. As principais diferenças aparecem na estrutura. As cenas são mais concentradas, enxutas, e a trama acelerada, apoiada mais nas ações e menos na crise existencial do protagonista – o que facilita a compreensão do público.
“Por vícios nossos nas teorias psicanalíticas de Freud, a terceira versão se tornou popular por ser mais metafísica, explorar as dúvidas e angústias do personagem principal”, observa Villela. “Aqui, o Hamlet é menos reflexivo e muito mais dinâmico.”
Para Villela, Hamlet é uma posição de vida, um olhar transformador sobre o mundo que jamais envelhece. “Vivemos um momento de colapso do homem e todas as respostas podem ser encontradas nos clássicos”, justifica ele, que já montou Romeu e Julieta, Ricardo III, Macbeth e A Tempestade, do mesmo autor, e planeja Coriolano.
O cenário, criado por J.C. Serroni, traz o conceito de terra devastada, através de troncos de árvores incendiados, em referência às queimadas recentes no Cerrado, como no Parque Nacional das Emas. “As imagens do fogo, nas bordas do Pantanal, ficaram na minha cabeça, é onça, é jacaré, todos sendo mortos de forma naturalizada”, diz. “O nosso Hamlet mostra a decadência do homem diante da natureza devastada.”
Com o avanço dos cabelos brancos, Villela demorou, mas entendeu que não há como ser subjetivo no teatro. Ele usa como exemplo as enchentes que devastam o Rio Grande do Sul – um contraponto à destruição do fogo nas matas, mas vindo da mesma ambição desmedida que acaba com o entorno. “A catástrofe da água iguala todo mundo em uma sociedade, coloca pobre e rico, velho e jovem, todos no mesmo barco, e o teatro parece que não quer enxergar isso”, revolta-se. Villela lamenta que os artistas teimem em se afastar do espectador e prefiram falar com nichos.
Gabriel Villela
Se a composição da cena contemporânea está pautada em cima do ego, para Villela o que interessa é o caminho oposto, principalmente para o intérprete. Quanto mais o ator ficar distanciado pela máscara, melhor para o espectador se identificar com a trama. Em Primeiro Hamlet, todo o elenco, completado por Ciça de Carvalho, Ivan Vellame, André Hendges, Breno Manfredini, João Attuy e Gabriel Sobreiro, usa muita, muita maquiagem. “O Chico, por exemplo, faz do Hamlet um bicho, não dá para ninguém esquecer que, por causa da sobrevivência, ele se transforma em um assassino.”
Chico Carvalho, de 45 anos, é um devoto da estética de Villela. Os dois trabalharam juntos em cinco outros espetáculos – A Tempestade, Peer Gynt, Boca de Ouro, Estado de Sítio e Henrique IV –, e o ator rejeita a ostentação em torno do clássico personagem, objeto de cobiça e suposta prova de maturidade para muitos. “Cada vez entendo melhor que para esses grandes papeis o ator é muito mais uma voz para o texto do que o artista que deve buscar imprimir a sua leitura de acordo com a individualidade”, afirma. “Precisamos recuperar a tradição dos grandes atores britânicos, alemães e até do próprio TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) em que o intérprete é um veículo de notáveis personagens.”
Primeiro Hamlet
- Sesc Vila Mariana – Teatro Antunes Filho. Rua Pelotas, 141, Vila Mariana.
- Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h. Dias 7 e 8 de junho, sessões extras às 15h. Abre 11/5. Até 16/6
- Ingressos: R$ 50