“Se enfileirarmos as peças que Renata Sorrah participou, é possível retratar uma parte importante da história do teatro brasileiro”, afirma o diretor Márcio Abreu que, à frente da companhia brasileira de teatro, já realizou quatro espetáculos protagonizados pela atriz desde 2012 - o quinto, Ao Vivo [dentro da cabeça de alguém], estreia quinta-feira, 22, no Teatro do Sesi-SP, com ingressos gratuitos. “Renata tem uma sólida carreira na televisão, mas sempre foi uma referência como uma pensadora do teatro”, continua Abreu, também autor do texto.
Desde que iniciou a carreira teatral em 1967, Renata participou de clássicos como Antígona, Lágrimas Amargas de Petra von Kant, Mary Stuart e Macbeth, entre outros. Mas foi sua atuação em A Gaivota, do russo Chekhov, em 1974, que inspirou Abreu a conceber o novo espetáculo. “A montagem contava com um elenco maravilhoso, Tereza Rachel, Sérgio Britto, Cecil Thiré. Passei no teste para o papel de Nina, mas curiosamente eu arrumava desculpas para não fazer, algo como ‘já tenho uma casa alugada para as férias’. Eu não entendia a importância daquele universo criado por Chekhov. Até que um dia, dirigindo pelo Aterro do Flamengo, no Rio, em direção a um ensaio, tive uma epifania, entendi a relevância dele para as ciências, a matemática, a química, a física, a ecologia”, conta a atriz de 77 anos.
Ao saber da história, Abreu que, desde o fim da pandemia da covid-19, busca recuperar aspectos perdidos durante o isolamento, percebeu a existência de um diálogo entre a obra de Chekhov e o resgate da carreira da atriz. “Esse autor, de alguma maneira, nos relembra de assuntos essenciais, o valor da arte na vida das pessoas, os sentidos de humanidade, a importância de sonhar, de projetar os sonhos. Dar valor à memória e aos campos do imaginário. A Gaivota é uma peça que nos lembra isso. Eu queria oferecer uma peça para a Renata. Não é uma peça sobre a vida ou sobre a memória dela. Não é uma adaptação da Gaivota, mas é um diálogo com essa peça.”
Em sua concepção artística, Abreu partiu da frase que abre o livro Os Anos (Fósforo), da francesa Annie Ernaux: “Todas as imagens vão desaparecer”, o que, de uma certa forma, se aplica ao teatro, arte efêmera que só existe no momento da encenação. “Assim, o que alicerça o pensamento dramatúrgico da peça é a relação entre memória individual, memória íntima e memória coletiva”, explica o encenador que, como se tornou marca em seu trabalho, partiu de um trabalho coletivo com os artistas Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki, Bianca Manicongo, além de Renata.
“As cenas nasceram dos nossos voos livres na criação de uma ação performática”, conta Bacelar, cujo número solo em que narra, com a ajuda da voz da mãe em off, a construção de seu personagem, é um dos momentos altos do espetáculo, assim como a apresentação de Bianca, atriz trans dona de uma voz potente. “O teatro tem como missão transformar as pessoas, por isso que aqui falamos de etarismo, transfobia. Como Renata é um furacão no palco, essa missão se torna mais eficaz”, diz.
Desde 2007 na companhia, Bolzan observa que a peça traz camadas de memórias de cada um a partir da trajetória de Renata. “É um testemunho de vida”, conta. “A carreira dela é fascinante, de muito aprendizado e, por isso, temos vontade de entrar em seu pensamento.” Na mesma linha, segue Bárbara, cujo humor se destaca para tratar de temas delicados. “Dessa convivência, aprendi que, mesmo não sendo uma atriz branca, posso interpretar Nina como Renata fez há alguns anos. É um compromisso que marca o trabalho do Márcio.”
Como um farol para o elenco jovem, Renata entende as transformações como necessárias. “Não participo de projetos como esse porque simplesmente é moderno ou me destacaria. Márcio já trabalhava assim antes dessas questões estarem em voga, portanto, é um curso natural do projeto”, diz a atriz, que recebeu o Estadão para a seguinte conversa.
Em ‘Ao Vivo’, você faz apenas uma referência da sua carreira, citando Fernanda Montenegro e Juliana Carneiro da Cunha, com quem você dividiu a cena na clássica montagem de ‘Lágrimas Amargas de Petra von Kant’, em 1982. Por quê?
Porque, naquela época, eu me sentia comendo pastel na feira do Olimpo (risos). É uma lembrança de que o público de uma certa idade tem imensa saudade, pois foi uma comoção. Era a história de seis mulheres em um momento em que os sentimentos femininos não eram tão discutidos.
Você não pensou em citar alguma personagem de novela?
Não me passou pela cabeça porque todo mundo já saberia do que se tratava, eu queria uma lembrança do teatro. E não tenho nenhum ressentimento contra essas personagens da televisão. Talvez só a mulher do meme, que é como a Nazaré, de Senhora do Destino (2004), é conhecida hoje porque as novas gerações só conhecem a Nazaré pelo Instagram e pelos memes, especialmente o Nazaré Confusa. Só uma vez essa lembrança me incomodou. Foi em Curitiba, durante o festival de teatro. Passei por um bar onde estavam alguns jovens e um deles gritou: “olha a mulher do meme!”. Meu deus, eu estava lá com uma peça séria, dando duro, e sou reconhecida como a mulher do meme (risos). Mas em geral eu gosto, porque é uma personagem que interpretei há 20 anos e continua lembrada, a chama continua acesa.
Na verdade, os memes fazem sucesso até no exterior.
Sim, tenho uma sobrinha que mora em Nova York e o meme lá é conhecido como Math Lady ou Confused Lady. O dentista dela quase teve um troço quando soube que a Nazaré é tia dela (risos). E o meme até foi usado durante a campanha presidencial americana de 2016, quando o associaram a Hilary Clinton (foi uma piada sobre o debate dela com Donald Trump).
Você fica incomodada por ser lembrada por personagens assim? Beatriz Segall não gostava de sempre ser associada a Odete Roitman, a vilã de ‘Vale Tudo’ (1988).
Sim, ela não gostava e eu entendo. Mas eu não me importo, não me incomodo. Porque sei que é algo inerente à televisão. Então, me acostumo.
Aliás, já foi anunciado para o próximo ano o remake de ‘Vale Tudo’, na qual você interpretou a inesquecível Heleninha Roitman, filha alcoólatra da vilã. O que pensa disso?
Confio que será um bom remake, é o que está parecendo. Isso porque o plano é seguir a ideia do original, ou seja, apresentar um retrato detalhado do Brasil do momento. (O autor) Gilberto Braga foi genial, foi preciso na crítica da sociedade brasileira da época. O mesmo deve acontecer agora. Outro fator positivo é que o remake deverá ter atores negros em papéis de destaque, o que não aconteceu em 1988. Também haverá mais respeito pelo casal homossexual - na época, eram duas mulheres, o público não aceitou e uma delas acabou morrendo. Agora é diferente.
O papel de vilão de uma história normalmente é cobiçado por atores e atrizes porque a vilania, na arte, é estimulante. Você também tem essa preferência?
Não tenho. Na verdade, não me lembro de ter interpretado alguma vilã - talvez apenas Karen, de Petra von Kant, porque era inescrupulosa. Mas eu a interpretava sem pensar dessa forma. Fiz, sim, mulheres neuróticas como a Nazaré, mas era engraçada, tinha humor, tudo dava errado para ela, não era aquela vilã típica.
Aos 77 anos, como você lida com o fenômeno social complexo que consiste em discriminar ou ter preconceito contra pessoas com base na idade?
É uma forma de violência porque é um preconceito. Estou aprendendo a envelhecer. É difícil porque não é fácil aceitar. Acho estranho quando uma pessoa diz que é muito bom ficar velho. Não, não é. As escolhas que você normalmente faz, ou não, mudam. Também é diferente a forma como você se coloca no mundo, nas suas relações. É uma transformação muito grande, que exige também muito esforço. O ideal é aproveitar as coisas ótimas. Por sorte, tenho uma profissão muito acolhedora, que me permite ficar velhinha e ainda continuar trabalhando.