O tempo é o maior desafio da nova montagem de Sete Afluentes do Rio Ota. E não me refiro propriamente à duração da peça, que é de cerca de seis horas, mas aos anos que transcorreram desde sua criação. Concebida originalmente pelo canadense Robert Lepage, em 1994, e transposta ao Brasil pelas mãos de Monique Gardenberg, em 2002, a obra trazia uma espécie de panorama do século 20. Abria com uma cena em Hiroshima, quando um soldado americano conhece uma mulher que teve o rosto deformado pela bomba atômica. Seguia observando as reverberações desse encontro, em lugares como Nova York, Amsterdã e Osaka.
Atualmente, em cartaz no Sesc Pinheiros, Rio Ota é novamente assinado por Monique Gardenberg e reúne grande parte de sua equipe original. O cenário de Hélio Eichbauer, morto em 2018, foi reconstruído com seus belos quadros retangulares e vários dos intérpretes retornaram à cena para viver os mesmos papéis de outrora. Apesar de tantas semelhanças, persiste uma sensação de que alguma coisa se perdeu.
Decerto, a nostalgia não é boa conselheira. Porque nos levaria a comparar não propriamente os dois espetáculos, o de 2002 e o de 2019, mas duas sensações. Dizem-nos os estudiosos da memória, como o filósofo Henri Bergson, que o passado não é uma matéria deixada para trás, mas uma construção que se atualiza constantemente no presente. Estamos, pois, a olhar para dois acontecimentos de agora – só que um deles edulcorado e idealizado como costumam ser as recordações.
Nos anos 2000, como a peça chegava por aqui já transcorridos alguns anos de sua estreia no exterior, não havia nela uma novidade formal. Existia, porém, uma saga contada de maneira a seduzir as plateias, que não apenas suportavam as seis horas de duração, como retornavam ávidas por observar em minúcias as idas e vindas daqueles personagens. Figuras que não só cresceram à sombra da guerra, como encontraram – depois de todo o horror – motivos para renascer.
Todos os anos, no aniversário da bomba que explodiu em Hiroshima, seus habitantes colocam lanternas na água para lembrar os mortos. A sobrevivente de um campo de concentração na Polônia se torna uma monja e encontra no Japão a paz que tanto procurou. Depois de anos de recolhimento, uma mulher consegue libertar as cinzas do marido morto para, enfim, recomeçar a viver.
Há a sombra da Aids – que acomete Jeffrey O’Connor, um dos filhos do soldado americano. Em uma época em que a doença ainda era vista como uma inevitável sentença de morte, ele opta por um suicídio assistido. O desfecho é triste, mas Jeffrey tem o próprio destino nas mãos e pode partir cercado por aqueles que o amam.
Mesmo com todos os percalços, o século 20 terminava com uma sensação de renascimento. O Muro de Berlim havia caído, a Guerra Fria acabado. Insistia a esperança de que, com erros e acertos, estávamos a caminhar para frente, para um porvir em que as feridas não serão propriamente apagadas, mas capazes de nos tornar mais conscientes, mais lúcidos, mais fortes.
É então o espírito do século 21 – quando o futuro tem cores sombrias e distópicas – que enfraquece o novo Sete Afluentes do Rio Ota? Não só. No constructo de aspecto cinematográfico instaurado pelo espetáculo, capaz de viajar no tempo e no espaço, algumas falhas técnicas, mesmo que pontuais, atrapalham a fruição. Certa parcela do esmaecimento, portanto, cabe a pequenos desajustes no som, com microfones a chiar em situações inapropriadas. A outra parte do encanto perdido? É difícil dizer a quem se deve. Talvez, seja o caso de deixar de lado as comparações e louvar o que a montagem atual entrega: uma história bem contada e preciosas interpretações.
Caco Ciocler parece ainda mais familiarizado com seus papéis, Bel Kowarick e Thierry Tremouroux, que são um bem-vindo respiro para o humor, e Marjorie Estiano, a novata do elenco, consegue criar um espaço todo seu. Se estamos a falar de memória, vale dizer que essa é uma atriz para não esquecer.
SERVIÇO
OS SETE AFLUENTES DO RIO OTA
SESC PINHEIROS.
RUA PAES LEME, 195. TEL. 3095-9400.
5ª A DOM., ÀS 18H.
INGRESSO: R$ 50 (COM MEIA-ENTRADA). ATÉ O DIA 1º/12.