Em uma das passagens do espetáculo Leonardo da Vinci – A Obra Oculta, o ator Cacá Carvalho, que interpreta o gênio renascentista italiano, conversa com a imagem da mulher pintada em Mona Lisa, o seu quadro mais famoso. “Leonardo, você não entendeu nada”, reclama a Gioconda que, em seguida, se confessa apaixonada pelo criador. Perplexo diante da declaração feita pela personagem, o artista responde que não pode amá-la, que absurdo era aquele, afinal, ela está presa a uma tela emoldurada. “Por que não?”, limita-se a questionar a criatura, desestruturando o seu raciocínio matemático.
Carvalho avisa que a frase inicial do solo que estreia nesta quinta, dia 3, no Auditório do Sesc Pinheiros, entrega a intenção do texto escrito pelo italiano Michele Santaremo e dirigido por Márcio Medina: “Tudo o que é dito aqui é inventado”. O ator está em cena representando Leonardo da Vinci, fiel a uma caracterização e apoiado em uma pesquisa em torno de sua biografia. As situações vivenciadas pelo personagem, no entanto, são fictícias, frutos da imaginação de Santaremo, o mesmo dramaturgo que, em 2016, presenteou Carvalho com outra peça, A Próxima Estação – Um Espetáculo para Ler. “É como se fosse um sonho de Leonardo, de colocá-lo em um outro lugar do que aquele que conhecemos, o de imaginar uma outra possibilidade de realidade”, explica o intérprete.Leonardo da Vinci – A Obra Oculta segue o modelo de A Próxima Estação. Em um espaço minimalista, o Leonardo representado por Cacá pode ser visto pelos espectadores como um leitor, interagindo apenas com a projeção das ilustrações da artista plástica Cristina Gardumi. “A diferença é que agora busco uma humanização, quero o detalhe, porque preciso me convencer de que sou Leonardo para aproximar o personagem da plateia, criar uma credibilidade”, diz.
A dramaturgia mostra o inventor, depois de criar tantas máquinas, debruçado em cima de uma pesquisa capaz de mudar os rumos da humanidade. Trata-se de um experimento que propõe a suspensão do tempo e, por consequência, da morte, tornando o ser humano apto a superar as adversidades que poderiam lhe tirar a vida. “Eu acho que o autor colocou essa tarefa na mão de Leonardo, a de nos levar a refletir sobre como se faz para viver mais e de verdade e não como estamos hoje, sem perspectivas, dominados pelo medo”, aponta o ator. Uma série de adiamentos impediu o espetáculo de chegar antes ao palco. A primeira ideia era estreá-lo junto à exposição Leonardo da Vinci – 500 Anos de um Gênio, lançada no MIS Experience em novembro de 2019. Uma redução de orçamento para o evento impediu a inclusão da peça na programação. “Cacá, monte esse texto logo, antes que o coronavírus acabe com a gente”, pediu Santaremo, logo depois da deflagração da pandemia. O projeto, no entanto, ficou congelado até Carvalho e Medina se debruçarem em uma adaptação digital lançada em novembro passado. Poucos dias antes de o filme entrar no ar, o ator realizou aquilo que, por muitos meses, pensou ser impossível: três sessões presenciais no Sesc Belenzinho que funcionaram como aquecimento para essa temporada.
Em meio a essa discussão sobre a vida e a morte, o espetáculo parece talhado mesmo para entrar em cartaz neste momento em que o teatro, pisando em ovos, luta para ocupar o seu lugar. Carvalho confessa que, bastante receoso, tem dado suas escapadas para matar a saudade do trabalho dos colegas. Viu, entre outros, os espetáculos Sem Palavras, dirigido por Marcio Abreu, e Diana, protagonizado por Celso Frateschi, e incluiu na agenda O Náufrago, direção de William Pereira, e Conserto para Dois, o musical de Claudia Raia. Para ele, os protocolos pandêmicos estabeleceram novos rituais, como a apresentação da carteira de vacinação, o uso da máscara apropriada e a busca pelas melhores poltronas no mapa do distanciamento, que valorizam novamente a ida ao teatro. “Cada vez que assisto a alguma coisa experimento uma nova sensação, uma reação direta de estar lá e ver atores vitoriosos”, afirma. Por isso, Carvalho garante que vai aproveitar cada minuto de Leonardo da Vinci – A Obra Oculta, sessão após sessão, como se fosse a última, em nome de muitos colegas que não resistiram ao vírus ou ao sofrimento dos últimos dois anos. “Confesso que eu também achei que jamais pisaria em um palco novamente, mas estarei ali inteiro, feliz em meus 68 anos, porque já fomos paralisados demais.” l