Era a primavera de 1970, e Yvonne Elliman, 18 anos, cantora e guitarrista do Havaí, tinha acabado de se apresentar numa boate de Londres quando um jovem sem fôlego entrou no palco.
“Você é minha Maria Madalena!”, sentenciou Andrew Lloyd Webber, 22 anos, de olhos arregalados.
“Achei que ele estivesse falando da mãe de Deus”, disse Elliman, agora com 69 anos, numa recente conversa por telefone, explicando que não estava familiarizada com a história bíblica. “Ele ficou tipo, ‘Não, não, não, não, não é a mãe, é a prostituta’”.
Eles deram umas boas risadas e ela assumiu o papel de Maria Madalena em Jesus Cristo Superstar, a seminal ópera-rock de Lloyd Webber e Tim Rice, no álbum conceitual, na primeira turnê em arena, na produção original da Broadway e no longa-metragem.
O musical, que estreou há cinquenta anos, em 12 de outubro de 1971, transformou o relato de uma das execuções mais notórias da história num espetáculo espalhafatoso. Ao fazer isso, juntou o rock ao teatro musical, dando início à invasão britânica da Broadway nas décadas de 1970 e 1980 e abrindo caminho para shows como Les Misérables e O Fantasma da Ópera.
Mas o álbum conceitual de quase noventa minutos veio primeiro, em 1970, porque, como Lloyd Webber lembrou recentemente ao The Telegraph, nenhum produtor queria colocar no palco “a pior ideia da história”.
“Nunca soubemos como encenar a coisa toda”, disse Lloyd Webber, 73 anos, numa recente conversa por telefone. “Então, não era uma coleção de faixas de rock ou algo assim. Tinha que ser lido para você e você tinha que entender – o contexto dramático de tudo tinha que ser a gravação”.
Embora o álbum tenha fracassado na Inglaterra, a ópera-rock com orquestra completa e coro gospel decolou na América, alcançando o primeiro lugar nas paradas da Billboard em fevereiro de 1971. Um ano depois do lançamento, o álbum já tinha vendido 2,5 milhões de cópias nos Estados Unidos.
“Ficamos pasmos com o sucesso”, disse Rice, 76 anos, o letrista do espetáculo, numa videochamada de sua casa em Buckinghamshire, na Inglaterra. “A MCA nos deixou fazer um single – dois caras desconhecidos – com uma orquestra enorme e uma banda de rock. E com um título bastante polêmico. Mas funcionou”.
Depois veio uma turnê nacional em 1971, e o público lotou os estádios para ouvir Elliman (Maria Madalena), Carl Anderson (Judas) e Jeff Fenholt (Jesus) cantando sucessos como I Don't Know How to Love Him, Heaven on Their Minds e Gethsemane (I Only Want to Say).
“Foi uma loucura”, disse Elliman. “Fui convidada a ir a um hospital e colocar minhas mãos numa garota que tinha sofrido um acidente de carro. Eu não sabia o que dizer – segurei sua mão e fiquei lá com ela. Mas, algumas semanas depois, seus pais me escreveram dizendo que ela tinha melhorado logo depois da minha visita”.
Estreia na Broadway
Por fim, eles receberam luz verde: Broadway.
Tom O’Horgan (‘Hair’) foi escalado para dirigir depois que Lloyd Webber perdeu um telegrama do diretor Hal Prince, que demonstrara interesse. “A única pessoa que eu adoraria ver na direção seria Hal Prince”, disse Lloyd Webber na entrevista. “Teria sido diferente? Teria sido bom? Eu não sei”.
O espetáculo, que narra os últimos sete dias da vida de Jesus pelos olhos de um de seus discípulos, Judas Iscariotes, estreou no Mark Hellinger Theatre, na 51st Street, para um público que incluía Lloyd Webber, 23 anos, e Rice, 26. Mas, numa entrevista conjunta para o The New York Times no final daquele mês, os dois praticamente renegaram seu diretor.
“Digamos que não achamos que esta produção seja a definitiva”, disse Lloyd Webber, que nos anos posteriores chamaria a encenação de O’Horgan, orçada em US $ 700 mil, de uma “interpretação imprudente e vulgar” e a noite de estreia “provavelmente a pior noite da minha vida”.
Gritos de 'Blasfêmia!'
A noite de estreia atraiu multidões de manifestantes cristãos e judeus com folhetos, que consideraram um sacrilégio teatral aquilo que o escritor do New York Times Guy Flatley chamou de ‘um Superstar que se pavoneia, se contorce, vibra e requebra”.
“Na entrada do teatro era só ‘Blasfêmia! Blasfêmia!’”, disse Ben Vereen, hoje com 75 anos, que interpretou Judas.
Lloyd Webber acrescentou: “Não estou convencido de que Robert Stigwood, nosso produtor, não tenha realmente orquestrado alguma coisa. Acho que seria muito mais difícil hoje do que naquela época”.
Rice e Lloyd Webber foram acusados de negar a divindade de Cristo e fazer de Judas um herói – ele que é o vilão inequívoco do Novo Testamento. Os líderes judeus ficaram alarmados com o fato de que o musical deixava entender que os judeus eram os responsáveis pela crucificação de Jesus e temeram que o espetáculo fomentasse o antissemitismo.
“Fomos criticados por omitir a Ressurreição”, disse Rice. “Mas isso não fazia parte da nossa história porque, a essa altura, Judas já estava morto. E sua história acabava”.
Jesus e Judas
Jesus Cristo, interpretado por Jeff Fenholt, perde a paciência, duvida de Deus e se deixa levar pela própria celebridade. Ele é simplesmente Jesus, o homem, com todos os problemas e defeitos inerentes.
“Ele sentia dor”, disse Rice. “Se ele fosse só um deus, então coisas como a crucificação, que é uma tortura horrível, e a própria morte não seriam problema. Se ele é um homem, seja deus ou não, ele tem que sofrer. Ele tem que ter dúvidas”.
Essas dúvidas estão mais à mostra no grito de Gethsemane, em que Jesus implora para que Deus afaste dele esse cálice.
“Queríamos um rock tenor que contrastasse com a voz de Judas”, disse Lloyd Webber.
Vereen foi indicado ao prêmio Tony por seu papel como Judas. Ele disse que o relato bíblico da relação entre Jesus e Judas deixava espaço para interpretação.
“Jesus nunca escreveu um livro e Judas nunca escreveu um livro”, disse ele. “Tudo o que ouvimos são rumores sobre esses homens dos discípulos que escreveram os Evangelhos”.
Inspirado na letra da canção de Bob Dylan With God on Our Side, de 1964, Rice começou a humanizar Judas.
“Eu pensei, bom, ‘Esse personagem é muito bom, posso expandir a partir do que está na Bíblia, porque não tem muita coisa na Bíblia’”, disse Rice. “Ele era um ser humano. Tinha pontos bons e pontos ruins. Tinha pontos fortes e fracos”.
No início, disse Vereen, ele se esforçou para entender a motivação de seu personagem. Então, depois de vasculhar a Bíblia, ele propôs uma teoria.
“Hipoteticamente falando, talvez Judas realmente amasse Jesus mais do que qualquer um dos outros discípulos e desejasse que ele fosse o herói que governaria o país”, disse Vereen. “E ele sentiu que, se o traísse, os israelitas se rebelariam e botariam Jesus no poder”.
O legado do espetáculo
Lloyd Webber, olhando para trás, disse: “Tudo o que eu estava fazendo era instinto”. Ele acrescentou: “Sim, tinha feito algumas produções amadoras, mas nunca nada no teatro profissional – e não sei se isso nos teria influenciado para o bem ou para o mal”.
Ele pensou por um segundo.
“Sem querer parecer imodesto” – ele deu uma risadinha – “é realmente muito bom”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU.