Em uma das tantas cenas simbólicas de A Idade da Peste, a Senhora C (representada por Cácia Goulart) degusta lentamente um prato de feijoada, com um tema de Mozart ao fundo, no conforto da sala de jantar. Um negro aparece e não demora a chegar a polícia. O rapaz, filho da empregada, é acossado e morto a poucos metros da patroa e ela nada faz, defendida pelas vistas grossas que uma mulher branca, de classe média alta, se permite fazer diante do que acontece ao seu redor.
O monólogo, escrito por Reni Adriano e dirigido pela própria protagonista, estreia nesta quinta, 9, no Auditório do Sesc Pinheiros, como uma tentativa de reflexão sobre os ataques enfrentados todos os dias pelas minorias, especialmente os negros. A feijoada, entre tantas outras leituras, segundo Cácia, remete a uma sociedade que sustenta uma mentalidade conservadora e deglute sem pudores os negros e sua identidade. “A personagem mostra a forma como os privilegiados se imaginam protegidos por não lidar com a violência no cotidiano e como todos nós, brancos, lidamos com esse silêncio”, define a intérprete.
Mesmo que a dramaturgia seja autoral, a inspiração para A Idade da Peste brotou do romance A Idade do Ferro, de J. M. Coetzee, ambientado em uma África do Sul devastada pelo preconceito, lido por Cácia e Adriano. Em uma passagem, o filho de uma doméstica morre dentro da residência da patroa e, baseado nesse ponto de partida, foi imaginada a trama de uma burguesa confiante em sua superioridade branca. “Sei que nem todo branco é racista, mas, de alguma forma, todos nós somos coniventes com o racismo estrutural no Brasil”, afirma a atriz.
Mineira de Belo Horizonte, Cácia, de 54 anos, nasceu em uma família de fazendeiros com um passado de tradição e fartura. O pai, no entanto, decretou falência quando ela tinha pouco mais de seis meses de vida e abandonou sua mãe com seis filhos homens e a caçula, única mulher. “Mesmo tendo minha mãe como uma mulher batalhadora, que nos criou sozinha, vejo contradições em seu comportamento, como a estranheza dela diante de um amigo meu, negro, que visitava nossa casa”, lembra. Cácia também cita uma menina negra, criada “como se fosse filha” por sua mãe, que trabalhava para a família sem qualquer direito legal. “Eu e meus irmãos somos muito próximos dela, que é nossa irmã adotiva, construímos uma forte relação de afeto e até de reparação por tudo o que ela enfrentou.”
Cácia Goulart, Atriz e diretora
Não à toa reflexões sociais pontuam o repertório da artista ao longo de quase três décadas. Em 2019, ela protagonizou Hilda, texto da francesa Marie NDiaye, sobre uma patroa que desenvolve uma relação obsessiva com a serviçal a ponto de impedi-la de ver o marido e os filhos. Também já montou Bartleby (2008), adaptação de José Sanchis Sinisterra para a obra de Herman Melville, em que um funcionário se revolta contra a rotina imposta pelo chefe, e Navalha na Carne (2004), o clássico de Plínio Marcos, em torno de oprimidos que se mostram também opressores. “Sou da contemplação, uma observadora, então a discussão social é importante para mim porque presto uma atenção constante na problemática das pessoas”, justifica.
Cácia é uma artista diferente. Ao contrário de grande parte dos colegas, não descobriu a vocação na juventude e entrou para o teatro à beira dos 30 anos. Trabalhou até os 28 como funcionária da Caixa Econômica Federal, em Belo Horizonte, e, cansada daquela vida, se mudou para São Paulo, onde morava um de seus irmãos, o ator e diretor Joaquim Goulart, em busca de renovação. “Eu frequentava, claro, espetáculos e shows, mas, às vezes, gostava tanto que saía até deprimida, imagino que era porque queria fazer algo parecido e não percebia”, conta.
Cácia Goulart, Atriz e diretora
Uma oficina de interpretação ministrada pelo ator Marco Antônio Pâmio, logo depois de sua chegada, em 1995, abriu os seus olhos para a arte e a possibilidade de carreira. “Eu sou muito tímida até hoje, com dificuldade para qualquer interação se não estou na pele de uma personagem” reconhece. “Por isso, nunca penso em um trabalho para o meu protagonismo, mas o quanto o discurso pode ser importante para o público e, quem sabe, para o mundo, como é essa questão da branquitude hoje.”
Serviço:
A Idade da Peste
Auditório do Sesc Pinheiros. Rua Paes Leme, 195. 5ª a sáb., às 20h. Estreia 5ª (9). R$ 30/R$ 15. Até 2/7