Em tempo de confinamento e imobilidade, a Companhia Brasileira de Teatro planeja evocar no palco a sensação contrária. Em seu novo espetáculo, Sem Palavras, o grupo de Curitiba se põe a tratar de travessias e trânsitos. Flagra momentos de instabilidade que são motor para o movimento e o novo. Neste domingo, 25, às 19h, o público terá a chance de ver virtualmente uma parcela desse percurso criativo. Em transmissão ao vivo pelo YouTube, será possível acompanhar alguns dos caminhos trilhados pelos artistas, além de um debate com a transativista Helena Vieira.
m dos principais nomes dos estudos de gênero, o filósofo e escritor espanhol Paul B. Preciado fornece os alicerces para a peça. Curiosamente, porém, não é de um de seus livros de teoria queer que inspira o trabalho, mas uma coletânea de crônicas, Um Apartamento em Urano. Publicadas entre 2010 e 2018 no jornal francês Libération, as histórias de Preciado flagram a travessia do autor em seu próprio corpo: se os primeiros textos são assinados como Beatriz, o ciclo termina com um novo registro social, Paul. Esse percurso, porém, não se encerra sob uma perspectiva individual: a necropolítica, o ocaso das democracias ocidentais, a crise econômica na Grécia, tudo isso é grão para o seu moinho criativo.
“O fato de essas crônicas conviverem dentro da estrutura de um livro, com um prefácio e uma introdução, cria uma outra camada de interpretação, quase como uma dramaturgia, que une assuntos tão diversos”, considera o diretor Márcio Abreu, que assina a dramaturgia com Nadja Naira. “Nesses textos, ele consegue materializar uma série de transformações e urgências do nosso tempo. Mas, por serem crônicas, essa fala está deslocada de um contexto acadêmico intelectual para um território mais pop. E o seu pensamento ganha em potência.”
As histórias de Um Apartamento em Urano foram escritas entre viagens do escritor, em quartos de hotéis e moradias provisórias. Em Sem Palavras, oito intérpretes mostram seus deslocamentos no interior de um apartamento. Como em obras anteriores da companhia, a encenação não traz propriamente uma trama e sim um feixe de instalações sonoras, imagens, movimentações e ações de cunho performativo – episódios com e sem falas. As formas de fruição disponíveis aos espectadores é que são distintas agora: além da transmissão do processo criativo, também será possível visitar uma videoinstalação no Centro Cultural Oi Futuro, no Rio.
A estreia da peça, contudo, não deve ter versão digital. “Também cabe a nós, artistas, reivindicar determinadas condições. Eu preciso que a obra aconteça primeiro no teatro e com o público, antes de pensar em transmiti-la virtualmente”, diz Abreu. Resultado de uma coprodução internacional, o espetáculo passará pela França e Alemanha em setembro e outubro e deve chegar ao Brasil para sessões presenciais apenas em 2022.
Na ficha técnica da montagem, integrantes antigos do grupo estão ao lado de novos colaboradores, como o performer Fábio Osório, a dançarina Key Sawao e as irmãs Brasil, uma dupla de artistas travestis. Diante do cansaço da linguagem, que não mais dá conta de abarcar o horror e o espanto de nossos tempos, surge a potência dos corpos. “Nós estamos estupefatos, sem saber o que dizer. Mas para aqueles a quem sempre foi negada a voz, as palavras borbulham”, diz o diretor. “Essas pessoas que estão na peça refletem um pouco as questões que atravessam a dramaturgia. São corpos diferentes, que falam de lugares sociais diferentes.”
Ainda que parta de textos de um pensador estrangeiro, a nova criação pode ser encarada como desdobramento de uma trilogia “brasileira”. Nas recentes Projeto Brasil (2015) e Preto (2017), não se ambicionava traçar propriamente um retrato de país, mas uma reflexão afetada pela vivência de Brasil daqueles artistas. Em Projeto Brasil, mirava-se a própria impossibilidade de se fazer uma síntese dessa sociedade múltipla e fragmentada. Com Preto, a dinâmica era semelhante. O racismo não era um assunto, era um lugar a deixar evidente a falência de nossos discursos.
Gestada durante a pandemia, Sem Palavras mantém a contradição: não se lança a revolver os destroços de país resultantes da crise atual, tampouco escamoteia o estado de falência de onde parte. “É como se a transformação pudesse ser entendida como um lugar que a gente habita, um território. E não apenas como o deslocamento de um ponto a outro”, considera o diretor.