Na atual novela das seis, Elas Por Elas, entre uma cena e outra, toca Cheiro de Mato, na voz de Maria Bethânia, gravação de 1979. Em outro momento, se ouve Sangue Latino, clássico dos Secos & Molhados lançado em 1973. Uma ação de Aline, personagem de Bárbara Reis em Terra e Paixão pode ser embalada por Noturno, na voz de Fagner, que já foi tema de abertura de Coração Alado, lá em 1980. Nuvem de Lágrimas, com Fafá de Belém, também está no folhetim das nove.
Com tanta música de catálogo nas trilhas sonoras das novelas que estão no ar, alguém pode não resistir e soltar aquela brincadeira comum em redes sociais: que ano é hoje? Ou, em uma análise mais séria: será que as trilhas estão de costas para os cobiçados rankings das mais ouvidas nas plataformas digitais, que, teoricamente, indicam o que o público ouve atualmente?
O fato é que, além dessas canções de décadas passadas, as tramas têm trazido inúmeras regravações nas vozes de artistas atuais. Ana Castela, uma das cantoras mais ouvidas do momento, canta Sinônimos com Chitãozinho e Xororó - na gravação original, de 2004, a dupla convidou Zé Ramalho – na abertura de Terra e Paixão. Ou o jovem recifense Lucas Mamede que, ao lado do duo AnaVitória, recriou em Um Dia de Domingo, sucesso de Gal Costa e Tim Maia em 1985 para Fuzuê.
Para o pesquisador e escritor Vincent Villari, autor, ao lado de Guilherme Bryan, do livro Teletema: A História da Música Popular Brasileira Através da Teledramaturgia Brasileira, é um fenômeno parecido com a questão da onda de remakes: canções conhecidas despertam a memória afetiva do telespectador.
Isso se reverte em algo essencial na TV: audiência. É o que programas de auditório têm praticado atualmente em relação à música brasileira, com especiais que reverenciam artistas que não estão no topo das paradas – mas já estiveram outrora. A indústria da memória afetiva.
Um segundo motivo, segundo Villari, que foi coautor de novelas como Sangue Bom e A Lei do Amor, é que gêneros que estão no topo das paradas musicais atualmente no Brasil, como o funk, o trap e o sertanejo pop, são mais difíceis de serem encaixados nas trilhas, em geral, com um cenário urbano e contemporâneo romantizado.
A morte do refrão
O pesquisador também aponta mudanças na indústria musical, como o que chama de “a morte do refrão” nos estilos urbanos atuais. “Sem o refrão, característica essencial da música pop, a música não comove, não emociona - portanto, não serve mais, ou serve pouco, para a teledramaturgia. Então, voltamos para as músicas de épocas passadas, com seus refrões emocionantes que impactam a cena e vestem os personagens”, diz.
Villari, que conta ter dado sugestões nas músicas que entraram nas novelas que escreveu, exemplifica o que é uma trilha sonora ideal. “Quando vemos, por exemplo, uma mulher grosseira, chula e dura como a Porcina de Roque Santeiro (1985), e, então, ouvimos uma música tão melodiosa e que evoca uma grande força feminina interior como Dona, sentimos que estamos diante de uma personagem interessante, com múltiplas camadas. É isso o que torna uma música-tema indissociável de uma novela e de um personagem”, diz.
Faz parte do produto
Juliana Medeiros, coordenadora de Produção Musical da Globo, diz que as trilhas são pensadas para auxiliar o público a entender cada personagem, em conjunto com o cenário, a caracterização e o figurino, bem como dar nuances aos tipos criados pelo autor – um mocinho ou um vilão. Há, também, o tratamento comercial que viabiliza colocar uma produção tão cara como uma novela no ar.
“Um conteúdo audiovisual é um produto e envolve uma marca, então há uma construção de uma identidade, trazendo gêneros musicais e artistas, por exemplo, que construam uma ‘cara’ para aquele conteúdo e que o aproximem do seu público-alvo. Nosso papel é ajudar a criar essa aproximação com a audiência’, diz a executiva.
Juliana explica a opção de colocar uma regravação do samba As Rosas Não Falam, de Cartola, na abertura da novela das 11 Todas As Flores, de João Emmanuel Carneiro, um sucesso do momento na TV aberta. Segundo ela, era preciso juntar a tradição do samba carioca que estava na trama, um toque de modernidade de uma trama muito urbana e contemporânea - nas vozes das atrizes Sophie Charlotte e Letícia Colin.
Juliana Medeiros, coordenadora de Produção Musical da Globo
A produtora, no entanto, nega que a emissora esteja desatenta ao que o grande público ouve nas plataformas, como o funk, por exemplo. “O conceito e a trama de cada produto pode levar a um peso maior a um ou outro tipo de sonoridade, gênero musical, mas esses gêneros estão presentes quase sempre nas nossas trilhas”, diz.
Juliana dá o exemplo de Vai Na Fé, antecessora de Fuzuê, que abriu espaço para o funk, mas os produzidos nas décadas de 1990 e 2000. Dá, ainda, exemplos de artistas contemporâneos nas trilhas de Fuzuê (Jão, Rashid e Emicida) e Todas as Flores (Konai e Agnes Nunes).
Em janeiro, está previsto para ir ao ar o remake da novela Renascer, na TV Globo. A trilha original foi emblemática, com músicas como Lua Soberana, com Sérgio Mendes, Confins, tema de abertura com Ivan Lins e o grupo Batacotô, e Mentiras, com Adriana Calcanhoto. Fica a curiosidade sobre quais músicas ilustram a história de amor com gosto de cacau criada por Benedito Ruy Barbosa e que agora será contada por seu neto Bruno Luperi.
Bernardo Portugal, Diretor de Talentos Artísticos da Globo, dá uma dica. “Estamos reunindo um repertório nacional, com muitos artistas baianos, seguindo o cenário principal da nossa trama. É uma história centrada na natureza e em conflitos geracionais, então temos trabalhado em uma trilha sonora com muita MPB, gravações acústicas e canções com pegada regional”, diz.
A hora e a vez da MPB
“Que ótimo que está tocando Fagner na novela”, comemora o músico Chico Adnet, que já produziu trilhas para novelas do SBT, principalmente as infantis. “É um redescobrir que se dá por parte de uma juventude. O grupo Bala Desejo, por exemplo, vai na fonte desses artistas. Quando isso dá certo, a indústria vai atrás”, diz.
De mercado, Adnet entende. Ele, que no passado fez parte do grupo Céu na Boca, também fez jingles para propagandas de TV, e acredita que a tendência de voltar a músicas do passado também está no mercado publicitário. “O cara pega o produto dele e faz um link qualquer com uma música famosa para vender seu peixe”, diz.
O produtor Clemente Magalhães, apresentador do podcast de música Papo com o Clê, define o movimento que Adnet citou como “coalização”, termo que vem do Coala Festival, um dos festivais mais relevantes do país, excluindo-se, obviamente os grandes e altamente comerciais Rock in Rio, The Town e Lollapalooza.
A curadoria do Coala sempre foi hábil em juntar artistas novos com grandes medalhões da MPB – neste ano, Simone fez sua estreia no festival, quando foi ovacionada por um público jovem. Daí o termo aplicado quando se fala em trilhas de novelas.
“Isso, de fato, está ocorrendo. Os grandes ídolos da música brasileira estão sendo reverenciados por uma juventude”, diz Magalhães.
Lucro no catálogo
Entretanto, há uma questão: os jovens assistem a novelas? Magalhães, carioca, de 50 anos, dá um exemplo para explicar essa aparente dualidade, partindo do que dominou as paradas no passado. “Eu vivi a geração do rock dos anos 1980. Hoje, penso: devia ser difícil um cara lá do interior se identificar com o Evandro Mesquita cantando. Fazia sentido para nós, perto da praia, assim como o rock paulista fazia para quem era da cidade”, diz.
Clemente Magalhães, produtor
“O top 100 (das plataformas) não faz sentido para mim. E não deve fazer para muita gente da minha geração. Muita coisa que está nessa lista não representa as histórias que a Globo está contando atualmente, por mais inclusiva que a emissora seja”, complementa.
Magalhães afirma que a Globo não está fechada para a nova música. Opinião compartilhada por Vincent Villari. “Há muitas métricas que indicam com quem a emissora quer falar ou quem ela perdeu (de audiência) e tenta recuperar”, diz.
Bernardo Portugal diz que a Globo está atenta ao movimento nas plataformas digitais e que elas indicam a procura pela chamada MPB. Soma-se a isso, o interesse financeiro de gravadoras e editoras em lucrar com um material que já está pronto e consagrado.
“São músicas e intérpretes que trazem muita potência para uma trama. E observamos um efeito muito positivo na audiência, que costuma celebrar resgates como esse nas redes sociais”, diz.