Leia trechos da biografia de Matthew Perry, que chega ao topo dos mais vendidos após morte do ator


Ator publicou autobiografia em 2022, com relatos transparentes sobre vício em drogas, relacionamentos e vida em ‘Friends’; veja primeiro capítulo e trechos marcantes

Por Redação
Atualização:

A morte de Matthew Perry, o Chandler de Friends, surpreendeu o mundo na noite do último sábado, 28. Com a notícia, a autobiografia do ator, Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível, voltou a ser visitada por fãs e se tornou o livro mais vendido na Amazon Brasil neste domingo, 29. A obra foi lançada em 2022 no exterior e, no Brasil, em janeiro de 2023, pela editora Best Seller.

Descrito como um relato transparente e sensível de Perry, que interpretou um dos protagonistas de uma das séries mais assistidas do mundo enquanto enfrentava o vício em drogas, o livro conta com vários relatos marcantes.

“Olá, meu nome é Matthew, embora você possa me conhecer por outro nome. Meus amigos me chamam de Matty. E eu deveria estar morto”, escreveu ele na biografia, que vendeu um milhão de cópias em 2022. Leia trechos e primeiro capítulo na íntegra:

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Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível, de Matthew Perry Foto: Reprodução/Editora Best Seller

Prefácio de Lisa Kudrow

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O prefácio da obra é assinado por Lisa Kudrow, que interpretou Phoebe.

“Como anda o Matthew Perry? Desde que começaram a me fazer essa pergunta, esse foi o principal questionamento que ouvi ao longo dos anos”, escreveu a amiga. “Mas a verdade é que eu não sabia muito bem como andava o Matthew.”

“Eu me concentrava em Matthew, que me fazia rir todo dia e que uma vez por semana me fazia rir tanto que eu não conseguia respirar. Lá estava ele, Matthew Perry, brilhante, charmoso, doce, sensível, muito sensato e racional”.

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Ela finaliza com uma mensagem direcionada ao amigo. “Ele sobreviveu ao impossível, mas até hoje eu não tinha a menor ideia de quanta vezes escapou por pouco. Estou feliz por você continuar aqui, Matty. Parabéns. Eu te amo”.

Vício e infelicidade

“Eu tinha todas as coisas exteriores possíveis. Julia Roberts é minha namorada. Não importa, você precisa beber. Acabei de comprar minha casa dos sonhos. Impossível ficar feliz com isso sem um traficante. Ganho um milhão de dólares por semana – venci na vida, certo? Quer uma bebida? Ah, lógico. Muitíssimo obrigado”.

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“Eu tinha tudo. Mas esse tudo era uma ilusão. Nada resolveria aquilo. (...) Sou um dos homens mais sortudos do planeta. E, nossa, como eu me diverti. Só que nada disso era a resposta”.

Papel em Friends

Perry estava escalado para outra sitcom quando as escalações para Friends, então chamada Friends Like Us, começaram. O papel de Chandler era cobiçado por muitos atores, mas ele sentia que o pertencia.

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“Quando li o roteiro, parecia que alguém tinha passado um ano me seguindo, roubando as minhas piadas, imitando meus trejeitos, fazendo uma cópia da minha visão pessimista, porém irônica, da vida. Um personagem específico me chamava a atenção: não era que eu achasse que era capaz de interpretar Chandler; eu era o Chandler”.

“Li o papel de Chandler para ela e quebrei todas as regras – para começo de conversa, não segurei o roteiro. É que eu já tinha decorado tudo. E logicamente fui bem (...). Arranquei risadas em momentos em que ninguém mais tinha arrancado. Era como se eu estivesse naqueles momentos em que fazia a minha mãe rir. E Chandler nasceu”.

Elenco de 'Friends' Foto: Reed Saxon / AP
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Auge da carreira e fundo do poço

No livro, Perry diz que a nona temporada da série foi a única temporada de Friends em que ele estava totalmente sóbrio, e a única que o rendeu indicação ao Emmy. Segundo o ator, ele achava que conseguia manter seu vício em segredo até que, um dia, Aniston disse que elenco e equipe percebiam o cheiro de álcool nele.

Então, ele começou a morar em um centro de reabilitação.

“Me casei com Monica e fui levado de volta ao centro de tratamento – no auge do meu ponto mais alto em Friends, o ponto mais alto da minha carreira, o momento icônico da série icônica – em uma caminhonete dirigida por um técnico sóbrio”.

Coma e sobriedade

Ele conta que, em 2019, teve uma experiência de quase morte depois de um rompimento do cólon, por uso excessivo de opióides. Segundo os médicos, ele tinha 2% de chance de sobreviver.

Depois de um coma de duas semanas e uma hospitalização de cinco meses, seu terapeuta o aconselhou a associar as drogas à possibilidade de ter que usar uma bolsa de colostomia para o resto da vida. “Desde então, não tenho mais interesse em consumir drogas”, escreveu.

Ao longo da obra, Matthew ressalta que, apesar do vício em aplacar a “Dor” que sentia – descrita assim, com a inicial em maiúscula –, ele diz que sempre quis continuar vivo.

“Eu me rendi, mas ao lado vencedor, não ao perdedor. Não estou mais atolado em uma batalha impossível contra as drogas e o álcool. Não sinto mais necessidade de acender automaticamente um cigarro para acompanhar meu café da manhã.”

“Eu nunca desisti, nunca levantei as mãos e disse: ‘Já chega, não aguento mais, você venceu”, escreve Perry. “E por causa disso, estou firme agora, pronto para o que vem a seguir”.

Matthew Perry Foto: Matt Sayles / AP

Leia o primeiro capítulo completo de Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível:

Oi, meu nome é Matthew, embora talvez você me conheça por outro nome. Meus amigos me chamam de Matty. E eu devia estar morto. Se quiser, pode considerar o que vai ler agora como uma mensagem do além, do meu além. É o Sétimo Dia da Dor. E, quando digo Dor, não estou falando de bater o dedão em uma quina nem do filme Meu Vizinho Mafioso 2. Escrevo Dor com letra maiúscula porque foi a pior Dor que já senti— era o Ideal Platônico da Dor, a Dor primordial. Já ouvi as pessoas dizerem que a pior dor é a do parto: bem, aquela era a pior dor imaginável, mas sem a felicidade de ter um recém-nascido nos braços no fim de tudo. E era o Sétimo Dia da Dor, mas também era o Décimo Dia Sem Movimentos. Se é que você me entende. Fazia dez dias que eu não cagava — pronto, explicado.

Havia alguma coisa muito, muito errada. Não era uma dor lânguida, latejante, como uma dor de cabeça; também não era uma dor aguda, penetrante, como a da pancreatite que tive aos 30 anos. Era uma Dor diferente. Parecia que meu corpo estava prestes a explodir. Que minhas entranhas tentavam escapar de mim. Era uma Dor séria pra caralho. E os sons. Meu Deus, os sons. Em geral, sou um cara bem quieto, tranquilo. Mas naquela noite eu berrava a plenos pulmões. Em certas noites, quando o vento sopra na direção certa e os carros já estão todos na garagem, é possível ouvir os sons horríveis de coiotes estraçalhando algo que uiva em Hollywood Hills. No começo, parece o barulho de crianças rindo, muito ao longe, até você perceber que não é bem isso — são os sinais da morte. Mas a pior parte, sem dúvida, é quando os uivos param, porque aí você sabe que a criatura que estava sendo atacada já morreu. É um inferno. E, sim, existe um inferno. Não acredite em ninguém que diga algo diferente disso. Eu já estive lá, ele existe e ponto final. Naquela noite, eu era o animal sob ataque. E ainda gritava, lutando com unhas e dentes para sobreviver. O silêncio significaria o fim. E mal sabia eu o quanto estava próximo disso.

Na época, eu morava em uma casa de reabilitação no sul da Califórnia. Isso não era surpresa — passei metade da minha vida em centros de tratamento ou casas de reabilitação. É uma situação aceitável quando você tem 24 anos, mas nem tanto aos 42. Naquele momento eu tinha 49 e continuava lutando para me livrar do fardo do vício. Àquela altura, eu já sabia mais sobre dependência química e alcoolismo do que todos os orientadores e a maioria dos médicos desses estabelecimentos. Infelizmente, esse autoconhecimento não serve de nada. Se o segredo para a sobriedade fosse esforço e informação, esse monstro não passaria de uma lembrança distante e desagradável para mim. Minha estratégia para continuar vivo tinha sido me transformar em um paciente profissional. Não vamos medir as palavras aqui. Aos 49, eu ainda tinha medo da solidão. Quando ficava sozinho, meu cérebro maluco (maluco apenas nesse sentido, aliás) encontrava qualquer desculpa para recorrer ao impensável: álcool e drogas. Depois de ter décadas da minha vida arruinadas por esse hábito, sinto pavor de retomá-lo. Não sinto medo algum de falar na frente de vinte mil pessoas, mas basta uma noite sentado no sofá, vendo TV, para ficar apavorado. Tenho medo da minha própria mente; medo dos meus pensamentos; medo de a minha cabeça me incentivar a recorrer às drogas, como já fez tantas vezes. A minha mente quer me matar, e eu sei disso. Sou constantemente tomado por uma solidão sorrateira, uma ânsia, e permaneço apegado à ideia de que algo exterior vai ser capaz de me consertar. Mas eu tinha todas as coisas exteriores possíveis!

Julia Roberts é minha namorada. Não importa, você precisa beber. Acabei de comprar minha casa dos sonhos — com vista para a cidade toda! Impossível ficar feliz com isso sem um traficante. Ganho um milhão de dólares por semana — venci na vida, certo? Quer uma bebida? Ah, lógico. Muitíssimo obrigado. Eu tinha tudo. Mas esse tudo era uma ilusão. Nada resolveria aquilo. Eu levaria anos para chegar perto de encontrar uma solução. Por favor, não me leve a mal. Todas essas conquistas — Julia, a casa dossonhos, um milhão por semana — eram maravilhosas, e vou ser eternamente grato por elas. Sou um dos homens mais sortudos do planeta. E, nossa, como eu me diverti. Só que nada disso era a resposta. Se tivesse que fazer tudo de novo, eu ainda participaria do teste para Friends? Sem dúvida alguma. Eu beberia de novo? Sem dúvida alguma. Se não fosse o álcool para acalmar meu nervosismo e me ajudar a me divertir, eu teria pulado do alto de um prédio aos vinte e poucos anos.

Meu avô, o maravilhoso Alton L. Perry, cresceu com um pai alcoólatra, e, por isso, nunca tocou em bebida durante todos os seus longos e maravilhosos 96 anos. Eu não sou o meu avô. Não estou escrevendo isto tudo porque quero que sintam pena de mim, mas porque é a verdade. Escrevo porque alguém pode estar se sentindo confuso por saber que deveria parar de beber — assim como eu, essa pessoa tem todas as informações e entende as consequências de suas ações —, mas não consegue parar. Vocês não estão sozinhos, meus irmãos e minhas irmãs. (No dicionário, a palavra “viciado” devia vir acompanhada de uma foto minha, olhando ao redor, muito atordoado.)

Na casa de reabilitação no sul da Califórnia, meu quarto tinha duas camas queen e vista para West Los Angeles. A segunda cama era ocupada pela minha assistente/melhor amiga, Erin, que é lésbica e cuja amizade aprecio por me oferecer a alegria do companheirismo feminino sem a tensão romântica que pareceu estragar minha amizade com mulheres heterossexuais (sem contar que podemos conversar sobre mulheres gostosas). Nós tínhamos nos conhecido dois anos antes, na clínica de reabilitação onde ela trabalhava. Não permaneci sóbrio naquela época, mas logo percebi que ela era maravilhosa em todos os sentidos e imediatamente a roubei de lá e a contratei como assistente, e ela se tornou minha melhor amiga. Ela também entendia a natureza da dependência química e compreendia as minhas dificuldades melhor do que qualquer médico que já encontrei. Mesmo que a presença de Erin melhorasse a situação, passei muitas noites naquele lugar sem conseguir dormir. O sono é um problema sério para mim, especialmente quando estou em lugares assim. E, para além desse fato, acho que nunca na vida dormi por mais de quatro horas seguidas.

E o meu hábito recém-adquirido de assistir a documentários sobre prisões não ajudava — eu estava me desintoxicando de tanto Frontal que meu cérebro fritou a ponto de me convencer de que eu era um prisioneiro, e aquela casa de reabilitação era um presídio de verdade. Meu psiquiatra diz que “a realidade é um gosto adquirido”. Bom, naquela altura eu já tinha perdido o gosto e o cheiro da realidade; eu estava com a Covid da mente, e estava completamente delirante. Mas a Dor não era um delírio; na verdade, doía tanto que eu tinha parado de fumar, e, se você soubesse o quanto eu fumava, saberia que esse era um sinal evidente de que havia alguma coisa muito errada. Um dos funcionários do lugar, cujo crachá poderia muito bem dizer Enfermeiro Cuzão, sugeriu que eu tomasse um banho com sulfato de magnésio para aliviar o “desconforto”. Não dá para tratar uma fratura exposta com um Band-Aid; não dá para colocar alguém sentindo tanta Dor em um banho com sais. Mas a realidade é um gosto adquirido, lembra?

E então eu fui tomar o tal banho com sulfato de magnésio. Fiquei sentado lá, pelado, sentindo Dor, uivando feito um cachorro sendo estraçalhado por coiotes. Erin me ouviu — meu Deus, as pessoas devem ter me ouvido até em San Diego. Ela apareceu na porta do banheiro e, olhando para o meu corpo triste e pelado, se contorcendo de Dor, perguntou simplesmente:

— Quer ir pro hospital?

Se Erin achava que estava ruim no nível de ir para o hospital, estava ruim no nível de ir para o hospital. Além do mais, ela percebeu que eu tinha parado de fumar.

— Acho uma ideia boa pra cacete — falei, entre um uivo e outro.

De algum jeito, Erin conseguiu me ajudar a sair da banheira e me secar. Eu estava colocando minha roupa quando uma conselheira — alertada pelo som de um cachorro sendo morto ali dentro — apareceu na porta.

— Vou levar o Matthew para o hospital — disse Erin.

Por acaso, Catherine, a conselheira, era uma moça loira e muito bonita que eu aparentemente havia pedido em casamento quando cheguei ali, então talvez ela não fosse minha maior fã. (É sério, eu estava tão alucinado quando chegamos que a pedi em casamento e imediatamente despenquei por um lance de escadas.)

— Tudo isso não passa de um plano para conseguir drogas — disse Catherine para Erin enquanto eu continuava a me vestir. — Quando ele chegar no hospital vai pedir remédios.

Bom, o casamento não vai rolar, pensei. A essa altura, os uivos haviam alertado outras pessoas de que o chão do banheiro devia estar coberto de entranhas caninas, ou que alguém estava sentindo Dor de verdade. O conselheiro-chefe, Charles — visualize: pai com cara de modelo, mãe em situação de rua —, se juntou a Catherine na porta, para ajudá-la a bloquear nossa iminente saída. Bloquear a saída? Como assim, nós tínhamos 11 anos?

— Ele é nosso paciente — disse Catherine. — Você não tem o di-reito de levá-lo embora.

— Eu conheço o Matty — insistiu Erin. — Ele não está tentando se drogar.

Então Erin se virou para mim.

— Você precisa ir para o hospital, Matty?

Concordei com a cabeça e berrei mais um pouco.

— Vou levá-lo — disse Erin. De algum modo, passamos por Catherine e Charles, saímos do prédio e chegamos ao estacionamento. Digo “de algum modo” não porque Catherine e Charles tenham tentado nos segurar, mas porque, sempre que meus pés tocavam o chão, a Dor piorava. No céu, olhando para mim com desdém, completamente alheia à minha agonia, havia uma bola amarela e brilhante. O que é aquilo?, pensei em meio aos surtos de sofrimento. Ah, o sol. Pois é... Eu não saía muito de casa nessa época.

— Um paciente famoso está chegando com dores abdominais fortes — disse Erin ao telefone enquanto abria a porta do carro. Carros são coisas idiotas, comuns, até você não poder mais dirigi-los, e então eles se tornam caixas mágicas de liberdade e sinais de uma vida anterior bem-sucedida. Erin me colocou no banco do passageiro e eu me deitei. Minha barriga se retorcia em agonia. Ela sentou no banco do motorista, olhou para mim e disse:

— Você quer chegar rápido ou prefere que eu evite as estradas mais esburacadas?— Só anda logo, mulher! — consegui dizer.

Naquele momento, Charles e Catherine tinham decidido se esforçar mais para nos impedir e pararam na frente do carro, bloqueando o caminho. As mãos de Charles estavam erguidas, exibindo as palmas para nós, tentando dizer “Não!”, como se um veículo motorizado de uma tonelada e meia pudesse ser impedido de se mover pela força daquelas mãozinhas. Para piorar a situação, Erin não conseguia dar a partida. O motor só funciona quando você diz para o carro ligar, porque, sabe como é, eu trabalhei em Friends. Catherine e as mãozinhas de Charles não desistiram. Quando Erin conseguiu entender como dar a partida naquela joça, só havia mais uma coisa a se fazer: ela ligou o motor, colocou o câmbio no modo “Drive” e virou o volante para subirmos na calçada — só o choque dessa ação, ricocheteando pelo meu corpo inteiro, quase me fez morrer bem ali. Com duas rodas sobre o meio-fio, passamos por Catherine e Charles e ganhamos a rua. Os dois ficaram olhando enquanto íamos embora, mas naquela situação eu a incentivaria a passar por cima deles — é muito assustador se encontrar em um estado em que você não consegue parar de gritar. Se eu estivesse fazendo aquilo só para conseguir drogas, merecia um Oscar.

— Você está mirando nos quebra-molas? Não sei se deu pra perceber, mas estou numa situação meio incômoda agora. Vai mais devagar — implorei a ela.

Lágrimas escorriam tanto pelas minhas bochechas quanto pelas dela.

— Preciso ir rápido — disse Erin, seus olhos castanhos, solidários, me encarando com preocupação e medo. — Não podemos perder tempo. Foi nesse exato momento que perdi a consciência. (Aliás, na escala da dor, perder a consciência é o nível máximo.)

[Um aviso: pelos próximos parágrafos, este livro será uma biografia, mas não com memórias minhas, porque eu deixei de estar presente naquele momento.]

O hospital mais próximo da casa de reabilitação era o Saint John’s. Como Erin teve a perspicácia de ligar antes e avisar que uma pessoa famosa estava a caminho, alguém foi nos encontrar na entrada da emergência. Sem ter noção da gravidade do meu estado ao fazer o telefonema, Erin se preocupou com a minha privacidade. Mas o pessoal do hospital logo viu que havia alguma coisa muito errada e eu fui levado para uma sala de tratamento. Lá, me ouviram dizer:

— Erin, por que tem bolas de pingue-pongue em cima do sofá? Não havia um sofá e muito menos bolas de pingue-pongue — eu só estava delirando completamente. (Nunca soube que era possível delirar de dor, mas é isso aí.)

Então a hidromorfina (minha droga favorita no mundo inteiro) chegou ao meu cérebro, e eu recuperei a consciência por um instante. Fui informado de que precisaria ser operado imediatamente e, do nada, todos os enfermeiros da Califórnia apareceram no quarto. Um deles se virou para Erin e disse: — Se prepara para correr! Erin estava preparada, e todos nós corremos — bom, eles correram, eu fui empurrado na minha cadeira de rodas em alta velocidade até chegar à sala de cirurgia. Mandaram Erin sair de lá poucos segundos depois de eu pedir a ela “Por favor, não vai embora”, então fechei os olhos; eles só voltariam a se abrir duas semanas depois. Sim, pois é: coma, senhoras e senhores! (E aqueles escrotos da casa de reabilitação tinham tentado bloquear a passagem do carro?)

A primeira coisa que aconteceu quando entrei em coma foi uma broncoaspiração, quando vomitei dez dias de substâncias tóxicas diretamente nos meus pulmões. Eles não gostaram muito disso — daí a pneu-monia instantânea —, e foi então que o meu cólon explodiu. Vou repetir para quem não prestou atenção: meu cólon explodiu! Já me acusaram de ser cheio de merda, mas naquela ocasião o caso era esse mesmo. Ainda bem que eu não estava lá para presenciar o momento. Naquele instante, minha morte era praticamente certa. Eu tive azar por meu cólon ter explodido? Ou tive sorte por isso ter acontecido na única sala no sul da Califórnia em que poderiam resolver o problema? De todo modo, agora eu encarava uma cirurgia de sete horas, que pelo menos deu tempo suficiente para que todos os meus entes queridos fossem correndo para o hospital. Conforme eles chegavam, recebiam a notícia: “Matthew tem dois por cento de chance de sobreviver a esta noite.”

Todo mundo ficou tão impactado que algumas pessoas desmoronaram bem ali, na recepção do hospital. Vou ter que passar o resto da vida sabendo que minha mãe e outras pessoas ouviram essas palavras. Enquanto eu passava pelo menos sete horas em cirurgia, e convencidos de que o hospital faria o melhor trabalho possível, minha família e meus amigos foram para casa dormir, enquanto meu subconsciente lutava pela vida entre bisturis, cânulas e sangue. Spoiler: eu sobrevivi àquela noite, mas ainda havia risco. Minha família e meus amigos foram informados de que, em curto prazo, eu precisaria de uma máquina de ecmo para continuar vivo (ecmo significa oxigenação por membrana extracorpórea, na sigla em inglês).

O aparelho geralmente é considerado um último recurso — só para exemplificar, quatro pacientes haviam recorrido à ecmo na UCLA naquela semana, e todos tinham morrido. Para dificultar ainda mais a situação, o Saint John’s não tinha a máquina. Ligaram para o Cedars-Sinai — pelo jeito eles deram uma olha-da na minha ficha e disseram: “Matthew Perry não vai vir morrer no nosso hospital.” Valeu, pessoal. A UCLA também não queria me aceitar — pelo mesmo motivo? Vai saber —, mas pelo menos mandou a ecmo e uma equipe. Passei várias horas conectado a ela, e pareceu dar certo! Então fui transferido para a UCLA de verdade, em uma ambulância cheia de médicos e enfermeiros. (Seria impossível sobreviver a uma viagem de quinze minutos de carro, ainda mais do jeito que Erin dirige). Na UCLA, fui levado para a UTI cardiológica e pulmonar; aquele seria o meu lar pelas seis semanas seguintes.

Eu continuava em coma, mas, para ser sincero, devia estar adorando. Estava deitado, todo aconchegado, sendo entupido de drogas — tem coisa melhor? Fui informado de que, durante o coma, nunca, em momento algum, fiquei sozinho — sempre havia um familiar ou amigo no quarto. Eles fizeram vigílias à luz de velas, fizeram círculos de oração. Eu estavacercado de amor. Com o tempo, meus olhos magicamente se abriram.

[De volta às minhas memórias.] A primeira pessoa que vi foi a minha mãe.

— O que houve? — consegui falar, rouco. — Onde diabos eu estou?

Minha última lembrança era de estar no carro com Erin.

— O seu cólon explodiu — respondeu ela. Com essa informação, fiz o que qualquer ator que atua em comédia faria: revirei os olhos e voltei a dormir.

Já me disseram que, quando alguém fica muito doente, acontece um tipo de desconexão — é uma coisa que segue as linhas do “Deus nos dá apenas o fardo que podemos suportar”. Quanto a mim, bom, nas semanas após sair do coma, não deixei que ninguém me contasse exatamente o que tinha acontecido. Eu tinha pavor de descobrir que a culpa era minha, que eu tinha feito aquilo comigo mesmo. Então, em vez de falar sobre o assunto, fiz a única coisa que me sentia capaz de fazer — durante os dias no hospital, me concentrei completamente na minha família, passando horas com minhas lindas irmãs, Emily, Maria e Madeline, que são engraçadas, carinhosas e presentes. À noite era a vez de Erin; eu nunca ficava sozinho. Um dia, quando algum tempo já havia passado, Maria — que faz parte da família Perry (minha mãe é do lado da família Morrison) — decidiu que era hora de me contar o que tinha acontecido. Lá estava eu, preso a cinquenta fios, feito um robô, de cama, enquanto Maria me informava sobre os acontecimentos. Meus medos eram válidos: eu tinha feito aquilo; a culpa era minha. Eu chorei — nossa, como eu chorei. Maria foi maravilhosa se esforçando para me consolar, mas não havia consolo possível. Eu praticamente tinha me matado.

Nunca fui de ir a festas — meu consumo excessivo de drogas (e eram muitas drogas) era apenas uma tentativa inútil de me sentir melhor. Só eu mesmo para tentar me sentir bem a ponto de quase causar minha morte. Ainda assim, lá estava eu, vivo. Por quê? Por que eu havia sido poupado? Mas as coisas ficariam ainda piores antes de melhorar. Parecia que toda manhã um médico entrava no meu quarto só para dar mais uma notícia ruim. Se algo pudesse dar errado, realmente dava. Eu já estava com uma bolsa de colostomia — pelo menos me informaram que isso seria reversível, graças a Deus —, mas agora havia sinais de uma fístula, um buraco no intestino. O problema era que não conseguiam encontrá-la. Para ajudar, recebi outra bolsa, que soltava um negócio verde nojento, e isso significava que eu não poderia comer nem beber nada até que encontrassem a tal fístula. Os médicos a buscavam todos os dias, enquanto eu sentia cada vez mais sede. Eu literalmente implorava por uma Coca Diet, sonhava que era perseguido por uma lata gigante de Sprite Diet.

Depois de um mês — um mês inteiro! —, finalmente encontraram a fístula em um segmento posterior do cólon. Eu pensei: Poxa, pessoal, se vocês estão procurando um buraco no meu intestino, não seria melhor começar olhando atrás do negócio que explodiu, porra? Agora que o furo havia sido encontrado, poderia ser consertado, e eu poderia aprender a andar de novo. Percebi que estava melhorando quando me dei conta de que sentia certa atração pela terapeuta. Sim, havia uma cicatriz imensa na minha barriga, mas nunca fui muito de tirar a camisa. Não sou nenhum Matthew McConaughey e, quando tomo banho, prefiro ficar de olhos fechados. Como eu disse, em toda a minha estadia nos hospitais, nunca fiquei sozinho — nunca mesmo.

Então, existe luz na escuridão. Ela está lá — você só precisa se esforçar para encontrá-la. Depois de cinco longos meses, recebi alta. Fui informado de que, dentro de um ano, tudo dentro de mim teria se curado o suficiente para que eu pudesse passar por outra cirurgia e remover a bolsa de colostomia. Por enquanto, pelo menos, fizemos minhas malas — de cinco meses de internação — e voltamos para casa. Ah, e a propósito, eu sou o Batman.

Serviço

Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível: As memórias do astro de Friends

Editora: Best Seller

Preço: R$ 36

A morte de Matthew Perry, o Chandler de Friends, surpreendeu o mundo na noite do último sábado, 28. Com a notícia, a autobiografia do ator, Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível, voltou a ser visitada por fãs e se tornou o livro mais vendido na Amazon Brasil neste domingo, 29. A obra foi lançada em 2022 no exterior e, no Brasil, em janeiro de 2023, pela editora Best Seller.

Descrito como um relato transparente e sensível de Perry, que interpretou um dos protagonistas de uma das séries mais assistidas do mundo enquanto enfrentava o vício em drogas, o livro conta com vários relatos marcantes.

“Olá, meu nome é Matthew, embora você possa me conhecer por outro nome. Meus amigos me chamam de Matty. E eu deveria estar morto”, escreveu ele na biografia, que vendeu um milhão de cópias em 2022. Leia trechos e primeiro capítulo na íntegra:

Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível, de Matthew Perry Foto: Reprodução/Editora Best Seller

Prefácio de Lisa Kudrow

O prefácio da obra é assinado por Lisa Kudrow, que interpretou Phoebe.

“Como anda o Matthew Perry? Desde que começaram a me fazer essa pergunta, esse foi o principal questionamento que ouvi ao longo dos anos”, escreveu a amiga. “Mas a verdade é que eu não sabia muito bem como andava o Matthew.”

“Eu me concentrava em Matthew, que me fazia rir todo dia e que uma vez por semana me fazia rir tanto que eu não conseguia respirar. Lá estava ele, Matthew Perry, brilhante, charmoso, doce, sensível, muito sensato e racional”.

Ela finaliza com uma mensagem direcionada ao amigo. “Ele sobreviveu ao impossível, mas até hoje eu não tinha a menor ideia de quanta vezes escapou por pouco. Estou feliz por você continuar aqui, Matty. Parabéns. Eu te amo”.

Vício e infelicidade

“Eu tinha todas as coisas exteriores possíveis. Julia Roberts é minha namorada. Não importa, você precisa beber. Acabei de comprar minha casa dos sonhos. Impossível ficar feliz com isso sem um traficante. Ganho um milhão de dólares por semana – venci na vida, certo? Quer uma bebida? Ah, lógico. Muitíssimo obrigado”.

“Eu tinha tudo. Mas esse tudo era uma ilusão. Nada resolveria aquilo. (...) Sou um dos homens mais sortudos do planeta. E, nossa, como eu me diverti. Só que nada disso era a resposta”.

Papel em Friends

Perry estava escalado para outra sitcom quando as escalações para Friends, então chamada Friends Like Us, começaram. O papel de Chandler era cobiçado por muitos atores, mas ele sentia que o pertencia.

“Quando li o roteiro, parecia que alguém tinha passado um ano me seguindo, roubando as minhas piadas, imitando meus trejeitos, fazendo uma cópia da minha visão pessimista, porém irônica, da vida. Um personagem específico me chamava a atenção: não era que eu achasse que era capaz de interpretar Chandler; eu era o Chandler”.

“Li o papel de Chandler para ela e quebrei todas as regras – para começo de conversa, não segurei o roteiro. É que eu já tinha decorado tudo. E logicamente fui bem (...). Arranquei risadas em momentos em que ninguém mais tinha arrancado. Era como se eu estivesse naqueles momentos em que fazia a minha mãe rir. E Chandler nasceu”.

Elenco de 'Friends' Foto: Reed Saxon / AP

Auge da carreira e fundo do poço

No livro, Perry diz que a nona temporada da série foi a única temporada de Friends em que ele estava totalmente sóbrio, e a única que o rendeu indicação ao Emmy. Segundo o ator, ele achava que conseguia manter seu vício em segredo até que, um dia, Aniston disse que elenco e equipe percebiam o cheiro de álcool nele.

Então, ele começou a morar em um centro de reabilitação.

“Me casei com Monica e fui levado de volta ao centro de tratamento – no auge do meu ponto mais alto em Friends, o ponto mais alto da minha carreira, o momento icônico da série icônica – em uma caminhonete dirigida por um técnico sóbrio”.

Coma e sobriedade

Ele conta que, em 2019, teve uma experiência de quase morte depois de um rompimento do cólon, por uso excessivo de opióides. Segundo os médicos, ele tinha 2% de chance de sobreviver.

Depois de um coma de duas semanas e uma hospitalização de cinco meses, seu terapeuta o aconselhou a associar as drogas à possibilidade de ter que usar uma bolsa de colostomia para o resto da vida. “Desde então, não tenho mais interesse em consumir drogas”, escreveu.

Ao longo da obra, Matthew ressalta que, apesar do vício em aplacar a “Dor” que sentia – descrita assim, com a inicial em maiúscula –, ele diz que sempre quis continuar vivo.

“Eu me rendi, mas ao lado vencedor, não ao perdedor. Não estou mais atolado em uma batalha impossível contra as drogas e o álcool. Não sinto mais necessidade de acender automaticamente um cigarro para acompanhar meu café da manhã.”

“Eu nunca desisti, nunca levantei as mãos e disse: ‘Já chega, não aguento mais, você venceu”, escreve Perry. “E por causa disso, estou firme agora, pronto para o que vem a seguir”.

Matthew Perry Foto: Matt Sayles / AP

Leia o primeiro capítulo completo de Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível:

Oi, meu nome é Matthew, embora talvez você me conheça por outro nome. Meus amigos me chamam de Matty. E eu devia estar morto. Se quiser, pode considerar o que vai ler agora como uma mensagem do além, do meu além. É o Sétimo Dia da Dor. E, quando digo Dor, não estou falando de bater o dedão em uma quina nem do filme Meu Vizinho Mafioso 2. Escrevo Dor com letra maiúscula porque foi a pior Dor que já senti— era o Ideal Platônico da Dor, a Dor primordial. Já ouvi as pessoas dizerem que a pior dor é a do parto: bem, aquela era a pior dor imaginável, mas sem a felicidade de ter um recém-nascido nos braços no fim de tudo. E era o Sétimo Dia da Dor, mas também era o Décimo Dia Sem Movimentos. Se é que você me entende. Fazia dez dias que eu não cagava — pronto, explicado.

Havia alguma coisa muito, muito errada. Não era uma dor lânguida, latejante, como uma dor de cabeça; também não era uma dor aguda, penetrante, como a da pancreatite que tive aos 30 anos. Era uma Dor diferente. Parecia que meu corpo estava prestes a explodir. Que minhas entranhas tentavam escapar de mim. Era uma Dor séria pra caralho. E os sons. Meu Deus, os sons. Em geral, sou um cara bem quieto, tranquilo. Mas naquela noite eu berrava a plenos pulmões. Em certas noites, quando o vento sopra na direção certa e os carros já estão todos na garagem, é possível ouvir os sons horríveis de coiotes estraçalhando algo que uiva em Hollywood Hills. No começo, parece o barulho de crianças rindo, muito ao longe, até você perceber que não é bem isso — são os sinais da morte. Mas a pior parte, sem dúvida, é quando os uivos param, porque aí você sabe que a criatura que estava sendo atacada já morreu. É um inferno. E, sim, existe um inferno. Não acredite em ninguém que diga algo diferente disso. Eu já estive lá, ele existe e ponto final. Naquela noite, eu era o animal sob ataque. E ainda gritava, lutando com unhas e dentes para sobreviver. O silêncio significaria o fim. E mal sabia eu o quanto estava próximo disso.

Na época, eu morava em uma casa de reabilitação no sul da Califórnia. Isso não era surpresa — passei metade da minha vida em centros de tratamento ou casas de reabilitação. É uma situação aceitável quando você tem 24 anos, mas nem tanto aos 42. Naquele momento eu tinha 49 e continuava lutando para me livrar do fardo do vício. Àquela altura, eu já sabia mais sobre dependência química e alcoolismo do que todos os orientadores e a maioria dos médicos desses estabelecimentos. Infelizmente, esse autoconhecimento não serve de nada. Se o segredo para a sobriedade fosse esforço e informação, esse monstro não passaria de uma lembrança distante e desagradável para mim. Minha estratégia para continuar vivo tinha sido me transformar em um paciente profissional. Não vamos medir as palavras aqui. Aos 49, eu ainda tinha medo da solidão. Quando ficava sozinho, meu cérebro maluco (maluco apenas nesse sentido, aliás) encontrava qualquer desculpa para recorrer ao impensável: álcool e drogas. Depois de ter décadas da minha vida arruinadas por esse hábito, sinto pavor de retomá-lo. Não sinto medo algum de falar na frente de vinte mil pessoas, mas basta uma noite sentado no sofá, vendo TV, para ficar apavorado. Tenho medo da minha própria mente; medo dos meus pensamentos; medo de a minha cabeça me incentivar a recorrer às drogas, como já fez tantas vezes. A minha mente quer me matar, e eu sei disso. Sou constantemente tomado por uma solidão sorrateira, uma ânsia, e permaneço apegado à ideia de que algo exterior vai ser capaz de me consertar. Mas eu tinha todas as coisas exteriores possíveis!

Julia Roberts é minha namorada. Não importa, você precisa beber. Acabei de comprar minha casa dos sonhos — com vista para a cidade toda! Impossível ficar feliz com isso sem um traficante. Ganho um milhão de dólares por semana — venci na vida, certo? Quer uma bebida? Ah, lógico. Muitíssimo obrigado. Eu tinha tudo. Mas esse tudo era uma ilusão. Nada resolveria aquilo. Eu levaria anos para chegar perto de encontrar uma solução. Por favor, não me leve a mal. Todas essas conquistas — Julia, a casa dossonhos, um milhão por semana — eram maravilhosas, e vou ser eternamente grato por elas. Sou um dos homens mais sortudos do planeta. E, nossa, como eu me diverti. Só que nada disso era a resposta. Se tivesse que fazer tudo de novo, eu ainda participaria do teste para Friends? Sem dúvida alguma. Eu beberia de novo? Sem dúvida alguma. Se não fosse o álcool para acalmar meu nervosismo e me ajudar a me divertir, eu teria pulado do alto de um prédio aos vinte e poucos anos.

Meu avô, o maravilhoso Alton L. Perry, cresceu com um pai alcoólatra, e, por isso, nunca tocou em bebida durante todos os seus longos e maravilhosos 96 anos. Eu não sou o meu avô. Não estou escrevendo isto tudo porque quero que sintam pena de mim, mas porque é a verdade. Escrevo porque alguém pode estar se sentindo confuso por saber que deveria parar de beber — assim como eu, essa pessoa tem todas as informações e entende as consequências de suas ações —, mas não consegue parar. Vocês não estão sozinhos, meus irmãos e minhas irmãs. (No dicionário, a palavra “viciado” devia vir acompanhada de uma foto minha, olhando ao redor, muito atordoado.)

Na casa de reabilitação no sul da Califórnia, meu quarto tinha duas camas queen e vista para West Los Angeles. A segunda cama era ocupada pela minha assistente/melhor amiga, Erin, que é lésbica e cuja amizade aprecio por me oferecer a alegria do companheirismo feminino sem a tensão romântica que pareceu estragar minha amizade com mulheres heterossexuais (sem contar que podemos conversar sobre mulheres gostosas). Nós tínhamos nos conhecido dois anos antes, na clínica de reabilitação onde ela trabalhava. Não permaneci sóbrio naquela época, mas logo percebi que ela era maravilhosa em todos os sentidos e imediatamente a roubei de lá e a contratei como assistente, e ela se tornou minha melhor amiga. Ela também entendia a natureza da dependência química e compreendia as minhas dificuldades melhor do que qualquer médico que já encontrei. Mesmo que a presença de Erin melhorasse a situação, passei muitas noites naquele lugar sem conseguir dormir. O sono é um problema sério para mim, especialmente quando estou em lugares assim. E, para além desse fato, acho que nunca na vida dormi por mais de quatro horas seguidas.

E o meu hábito recém-adquirido de assistir a documentários sobre prisões não ajudava — eu estava me desintoxicando de tanto Frontal que meu cérebro fritou a ponto de me convencer de que eu era um prisioneiro, e aquela casa de reabilitação era um presídio de verdade. Meu psiquiatra diz que “a realidade é um gosto adquirido”. Bom, naquela altura eu já tinha perdido o gosto e o cheiro da realidade; eu estava com a Covid da mente, e estava completamente delirante. Mas a Dor não era um delírio; na verdade, doía tanto que eu tinha parado de fumar, e, se você soubesse o quanto eu fumava, saberia que esse era um sinal evidente de que havia alguma coisa muito errada. Um dos funcionários do lugar, cujo crachá poderia muito bem dizer Enfermeiro Cuzão, sugeriu que eu tomasse um banho com sulfato de magnésio para aliviar o “desconforto”. Não dá para tratar uma fratura exposta com um Band-Aid; não dá para colocar alguém sentindo tanta Dor em um banho com sais. Mas a realidade é um gosto adquirido, lembra?

E então eu fui tomar o tal banho com sulfato de magnésio. Fiquei sentado lá, pelado, sentindo Dor, uivando feito um cachorro sendo estraçalhado por coiotes. Erin me ouviu — meu Deus, as pessoas devem ter me ouvido até em San Diego. Ela apareceu na porta do banheiro e, olhando para o meu corpo triste e pelado, se contorcendo de Dor, perguntou simplesmente:

— Quer ir pro hospital?

Se Erin achava que estava ruim no nível de ir para o hospital, estava ruim no nível de ir para o hospital. Além do mais, ela percebeu que eu tinha parado de fumar.

— Acho uma ideia boa pra cacete — falei, entre um uivo e outro.

De algum jeito, Erin conseguiu me ajudar a sair da banheira e me secar. Eu estava colocando minha roupa quando uma conselheira — alertada pelo som de um cachorro sendo morto ali dentro — apareceu na porta.

— Vou levar o Matthew para o hospital — disse Erin.

Por acaso, Catherine, a conselheira, era uma moça loira e muito bonita que eu aparentemente havia pedido em casamento quando cheguei ali, então talvez ela não fosse minha maior fã. (É sério, eu estava tão alucinado quando chegamos que a pedi em casamento e imediatamente despenquei por um lance de escadas.)

— Tudo isso não passa de um plano para conseguir drogas — disse Catherine para Erin enquanto eu continuava a me vestir. — Quando ele chegar no hospital vai pedir remédios.

Bom, o casamento não vai rolar, pensei. A essa altura, os uivos haviam alertado outras pessoas de que o chão do banheiro devia estar coberto de entranhas caninas, ou que alguém estava sentindo Dor de verdade. O conselheiro-chefe, Charles — visualize: pai com cara de modelo, mãe em situação de rua —, se juntou a Catherine na porta, para ajudá-la a bloquear nossa iminente saída. Bloquear a saída? Como assim, nós tínhamos 11 anos?

— Ele é nosso paciente — disse Catherine. — Você não tem o di-reito de levá-lo embora.

— Eu conheço o Matty — insistiu Erin. — Ele não está tentando se drogar.

Então Erin se virou para mim.

— Você precisa ir para o hospital, Matty?

Concordei com a cabeça e berrei mais um pouco.

— Vou levá-lo — disse Erin. De algum modo, passamos por Catherine e Charles, saímos do prédio e chegamos ao estacionamento. Digo “de algum modo” não porque Catherine e Charles tenham tentado nos segurar, mas porque, sempre que meus pés tocavam o chão, a Dor piorava. No céu, olhando para mim com desdém, completamente alheia à minha agonia, havia uma bola amarela e brilhante. O que é aquilo?, pensei em meio aos surtos de sofrimento. Ah, o sol. Pois é... Eu não saía muito de casa nessa época.

— Um paciente famoso está chegando com dores abdominais fortes — disse Erin ao telefone enquanto abria a porta do carro. Carros são coisas idiotas, comuns, até você não poder mais dirigi-los, e então eles se tornam caixas mágicas de liberdade e sinais de uma vida anterior bem-sucedida. Erin me colocou no banco do passageiro e eu me deitei. Minha barriga se retorcia em agonia. Ela sentou no banco do motorista, olhou para mim e disse:

— Você quer chegar rápido ou prefere que eu evite as estradas mais esburacadas?— Só anda logo, mulher! — consegui dizer.

Naquele momento, Charles e Catherine tinham decidido se esforçar mais para nos impedir e pararam na frente do carro, bloqueando o caminho. As mãos de Charles estavam erguidas, exibindo as palmas para nós, tentando dizer “Não!”, como se um veículo motorizado de uma tonelada e meia pudesse ser impedido de se mover pela força daquelas mãozinhas. Para piorar a situação, Erin não conseguia dar a partida. O motor só funciona quando você diz para o carro ligar, porque, sabe como é, eu trabalhei em Friends. Catherine e as mãozinhas de Charles não desistiram. Quando Erin conseguiu entender como dar a partida naquela joça, só havia mais uma coisa a se fazer: ela ligou o motor, colocou o câmbio no modo “Drive” e virou o volante para subirmos na calçada — só o choque dessa ação, ricocheteando pelo meu corpo inteiro, quase me fez morrer bem ali. Com duas rodas sobre o meio-fio, passamos por Catherine e Charles e ganhamos a rua. Os dois ficaram olhando enquanto íamos embora, mas naquela situação eu a incentivaria a passar por cima deles — é muito assustador se encontrar em um estado em que você não consegue parar de gritar. Se eu estivesse fazendo aquilo só para conseguir drogas, merecia um Oscar.

— Você está mirando nos quebra-molas? Não sei se deu pra perceber, mas estou numa situação meio incômoda agora. Vai mais devagar — implorei a ela.

Lágrimas escorriam tanto pelas minhas bochechas quanto pelas dela.

— Preciso ir rápido — disse Erin, seus olhos castanhos, solidários, me encarando com preocupação e medo. — Não podemos perder tempo. Foi nesse exato momento que perdi a consciência. (Aliás, na escala da dor, perder a consciência é o nível máximo.)

[Um aviso: pelos próximos parágrafos, este livro será uma biografia, mas não com memórias minhas, porque eu deixei de estar presente naquele momento.]

O hospital mais próximo da casa de reabilitação era o Saint John’s. Como Erin teve a perspicácia de ligar antes e avisar que uma pessoa famosa estava a caminho, alguém foi nos encontrar na entrada da emergência. Sem ter noção da gravidade do meu estado ao fazer o telefonema, Erin se preocupou com a minha privacidade. Mas o pessoal do hospital logo viu que havia alguma coisa muito errada e eu fui levado para uma sala de tratamento. Lá, me ouviram dizer:

— Erin, por que tem bolas de pingue-pongue em cima do sofá? Não havia um sofá e muito menos bolas de pingue-pongue — eu só estava delirando completamente. (Nunca soube que era possível delirar de dor, mas é isso aí.)

Então a hidromorfina (minha droga favorita no mundo inteiro) chegou ao meu cérebro, e eu recuperei a consciência por um instante. Fui informado de que precisaria ser operado imediatamente e, do nada, todos os enfermeiros da Califórnia apareceram no quarto. Um deles se virou para Erin e disse: — Se prepara para correr! Erin estava preparada, e todos nós corremos — bom, eles correram, eu fui empurrado na minha cadeira de rodas em alta velocidade até chegar à sala de cirurgia. Mandaram Erin sair de lá poucos segundos depois de eu pedir a ela “Por favor, não vai embora”, então fechei os olhos; eles só voltariam a se abrir duas semanas depois. Sim, pois é: coma, senhoras e senhores! (E aqueles escrotos da casa de reabilitação tinham tentado bloquear a passagem do carro?)

A primeira coisa que aconteceu quando entrei em coma foi uma broncoaspiração, quando vomitei dez dias de substâncias tóxicas diretamente nos meus pulmões. Eles não gostaram muito disso — daí a pneu-monia instantânea —, e foi então que o meu cólon explodiu. Vou repetir para quem não prestou atenção: meu cólon explodiu! Já me acusaram de ser cheio de merda, mas naquela ocasião o caso era esse mesmo. Ainda bem que eu não estava lá para presenciar o momento. Naquele instante, minha morte era praticamente certa. Eu tive azar por meu cólon ter explodido? Ou tive sorte por isso ter acontecido na única sala no sul da Califórnia em que poderiam resolver o problema? De todo modo, agora eu encarava uma cirurgia de sete horas, que pelo menos deu tempo suficiente para que todos os meus entes queridos fossem correndo para o hospital. Conforme eles chegavam, recebiam a notícia: “Matthew tem dois por cento de chance de sobreviver a esta noite.”

Todo mundo ficou tão impactado que algumas pessoas desmoronaram bem ali, na recepção do hospital. Vou ter que passar o resto da vida sabendo que minha mãe e outras pessoas ouviram essas palavras. Enquanto eu passava pelo menos sete horas em cirurgia, e convencidos de que o hospital faria o melhor trabalho possível, minha família e meus amigos foram para casa dormir, enquanto meu subconsciente lutava pela vida entre bisturis, cânulas e sangue. Spoiler: eu sobrevivi àquela noite, mas ainda havia risco. Minha família e meus amigos foram informados de que, em curto prazo, eu precisaria de uma máquina de ecmo para continuar vivo (ecmo significa oxigenação por membrana extracorpórea, na sigla em inglês).

O aparelho geralmente é considerado um último recurso — só para exemplificar, quatro pacientes haviam recorrido à ecmo na UCLA naquela semana, e todos tinham morrido. Para dificultar ainda mais a situação, o Saint John’s não tinha a máquina. Ligaram para o Cedars-Sinai — pelo jeito eles deram uma olha-da na minha ficha e disseram: “Matthew Perry não vai vir morrer no nosso hospital.” Valeu, pessoal. A UCLA também não queria me aceitar — pelo mesmo motivo? Vai saber —, mas pelo menos mandou a ecmo e uma equipe. Passei várias horas conectado a ela, e pareceu dar certo! Então fui transferido para a UCLA de verdade, em uma ambulância cheia de médicos e enfermeiros. (Seria impossível sobreviver a uma viagem de quinze minutos de carro, ainda mais do jeito que Erin dirige). Na UCLA, fui levado para a UTI cardiológica e pulmonar; aquele seria o meu lar pelas seis semanas seguintes.

Eu continuava em coma, mas, para ser sincero, devia estar adorando. Estava deitado, todo aconchegado, sendo entupido de drogas — tem coisa melhor? Fui informado de que, durante o coma, nunca, em momento algum, fiquei sozinho — sempre havia um familiar ou amigo no quarto. Eles fizeram vigílias à luz de velas, fizeram círculos de oração. Eu estavacercado de amor. Com o tempo, meus olhos magicamente se abriram.

[De volta às minhas memórias.] A primeira pessoa que vi foi a minha mãe.

— O que houve? — consegui falar, rouco. — Onde diabos eu estou?

Minha última lembrança era de estar no carro com Erin.

— O seu cólon explodiu — respondeu ela. Com essa informação, fiz o que qualquer ator que atua em comédia faria: revirei os olhos e voltei a dormir.

Já me disseram que, quando alguém fica muito doente, acontece um tipo de desconexão — é uma coisa que segue as linhas do “Deus nos dá apenas o fardo que podemos suportar”. Quanto a mim, bom, nas semanas após sair do coma, não deixei que ninguém me contasse exatamente o que tinha acontecido. Eu tinha pavor de descobrir que a culpa era minha, que eu tinha feito aquilo comigo mesmo. Então, em vez de falar sobre o assunto, fiz a única coisa que me sentia capaz de fazer — durante os dias no hospital, me concentrei completamente na minha família, passando horas com minhas lindas irmãs, Emily, Maria e Madeline, que são engraçadas, carinhosas e presentes. À noite era a vez de Erin; eu nunca ficava sozinho. Um dia, quando algum tempo já havia passado, Maria — que faz parte da família Perry (minha mãe é do lado da família Morrison) — decidiu que era hora de me contar o que tinha acontecido. Lá estava eu, preso a cinquenta fios, feito um robô, de cama, enquanto Maria me informava sobre os acontecimentos. Meus medos eram válidos: eu tinha feito aquilo; a culpa era minha. Eu chorei — nossa, como eu chorei. Maria foi maravilhosa se esforçando para me consolar, mas não havia consolo possível. Eu praticamente tinha me matado.

Nunca fui de ir a festas — meu consumo excessivo de drogas (e eram muitas drogas) era apenas uma tentativa inútil de me sentir melhor. Só eu mesmo para tentar me sentir bem a ponto de quase causar minha morte. Ainda assim, lá estava eu, vivo. Por quê? Por que eu havia sido poupado? Mas as coisas ficariam ainda piores antes de melhorar. Parecia que toda manhã um médico entrava no meu quarto só para dar mais uma notícia ruim. Se algo pudesse dar errado, realmente dava. Eu já estava com uma bolsa de colostomia — pelo menos me informaram que isso seria reversível, graças a Deus —, mas agora havia sinais de uma fístula, um buraco no intestino. O problema era que não conseguiam encontrá-la. Para ajudar, recebi outra bolsa, que soltava um negócio verde nojento, e isso significava que eu não poderia comer nem beber nada até que encontrassem a tal fístula. Os médicos a buscavam todos os dias, enquanto eu sentia cada vez mais sede. Eu literalmente implorava por uma Coca Diet, sonhava que era perseguido por uma lata gigante de Sprite Diet.

Depois de um mês — um mês inteiro! —, finalmente encontraram a fístula em um segmento posterior do cólon. Eu pensei: Poxa, pessoal, se vocês estão procurando um buraco no meu intestino, não seria melhor começar olhando atrás do negócio que explodiu, porra? Agora que o furo havia sido encontrado, poderia ser consertado, e eu poderia aprender a andar de novo. Percebi que estava melhorando quando me dei conta de que sentia certa atração pela terapeuta. Sim, havia uma cicatriz imensa na minha barriga, mas nunca fui muito de tirar a camisa. Não sou nenhum Matthew McConaughey e, quando tomo banho, prefiro ficar de olhos fechados. Como eu disse, em toda a minha estadia nos hospitais, nunca fiquei sozinho — nunca mesmo.

Então, existe luz na escuridão. Ela está lá — você só precisa se esforçar para encontrá-la. Depois de cinco longos meses, recebi alta. Fui informado de que, dentro de um ano, tudo dentro de mim teria se curado o suficiente para que eu pudesse passar por outra cirurgia e remover a bolsa de colostomia. Por enquanto, pelo menos, fizemos minhas malas — de cinco meses de internação — e voltamos para casa. Ah, e a propósito, eu sou o Batman.

Serviço

Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível: As memórias do astro de Friends

Editora: Best Seller

Preço: R$ 36

A morte de Matthew Perry, o Chandler de Friends, surpreendeu o mundo na noite do último sábado, 28. Com a notícia, a autobiografia do ator, Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível, voltou a ser visitada por fãs e se tornou o livro mais vendido na Amazon Brasil neste domingo, 29. A obra foi lançada em 2022 no exterior e, no Brasil, em janeiro de 2023, pela editora Best Seller.

Descrito como um relato transparente e sensível de Perry, que interpretou um dos protagonistas de uma das séries mais assistidas do mundo enquanto enfrentava o vício em drogas, o livro conta com vários relatos marcantes.

“Olá, meu nome é Matthew, embora você possa me conhecer por outro nome. Meus amigos me chamam de Matty. E eu deveria estar morto”, escreveu ele na biografia, que vendeu um milhão de cópias em 2022. Leia trechos e primeiro capítulo na íntegra:

Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível, de Matthew Perry Foto: Reprodução/Editora Best Seller

Prefácio de Lisa Kudrow

O prefácio da obra é assinado por Lisa Kudrow, que interpretou Phoebe.

“Como anda o Matthew Perry? Desde que começaram a me fazer essa pergunta, esse foi o principal questionamento que ouvi ao longo dos anos”, escreveu a amiga. “Mas a verdade é que eu não sabia muito bem como andava o Matthew.”

“Eu me concentrava em Matthew, que me fazia rir todo dia e que uma vez por semana me fazia rir tanto que eu não conseguia respirar. Lá estava ele, Matthew Perry, brilhante, charmoso, doce, sensível, muito sensato e racional”.

Ela finaliza com uma mensagem direcionada ao amigo. “Ele sobreviveu ao impossível, mas até hoje eu não tinha a menor ideia de quanta vezes escapou por pouco. Estou feliz por você continuar aqui, Matty. Parabéns. Eu te amo”.

Vício e infelicidade

“Eu tinha todas as coisas exteriores possíveis. Julia Roberts é minha namorada. Não importa, você precisa beber. Acabei de comprar minha casa dos sonhos. Impossível ficar feliz com isso sem um traficante. Ganho um milhão de dólares por semana – venci na vida, certo? Quer uma bebida? Ah, lógico. Muitíssimo obrigado”.

“Eu tinha tudo. Mas esse tudo era uma ilusão. Nada resolveria aquilo. (...) Sou um dos homens mais sortudos do planeta. E, nossa, como eu me diverti. Só que nada disso era a resposta”.

Papel em Friends

Perry estava escalado para outra sitcom quando as escalações para Friends, então chamada Friends Like Us, começaram. O papel de Chandler era cobiçado por muitos atores, mas ele sentia que o pertencia.

“Quando li o roteiro, parecia que alguém tinha passado um ano me seguindo, roubando as minhas piadas, imitando meus trejeitos, fazendo uma cópia da minha visão pessimista, porém irônica, da vida. Um personagem específico me chamava a atenção: não era que eu achasse que era capaz de interpretar Chandler; eu era o Chandler”.

“Li o papel de Chandler para ela e quebrei todas as regras – para começo de conversa, não segurei o roteiro. É que eu já tinha decorado tudo. E logicamente fui bem (...). Arranquei risadas em momentos em que ninguém mais tinha arrancado. Era como se eu estivesse naqueles momentos em que fazia a minha mãe rir. E Chandler nasceu”.

Elenco de 'Friends' Foto: Reed Saxon / AP

Auge da carreira e fundo do poço

No livro, Perry diz que a nona temporada da série foi a única temporada de Friends em que ele estava totalmente sóbrio, e a única que o rendeu indicação ao Emmy. Segundo o ator, ele achava que conseguia manter seu vício em segredo até que, um dia, Aniston disse que elenco e equipe percebiam o cheiro de álcool nele.

Então, ele começou a morar em um centro de reabilitação.

“Me casei com Monica e fui levado de volta ao centro de tratamento – no auge do meu ponto mais alto em Friends, o ponto mais alto da minha carreira, o momento icônico da série icônica – em uma caminhonete dirigida por um técnico sóbrio”.

Coma e sobriedade

Ele conta que, em 2019, teve uma experiência de quase morte depois de um rompimento do cólon, por uso excessivo de opióides. Segundo os médicos, ele tinha 2% de chance de sobreviver.

Depois de um coma de duas semanas e uma hospitalização de cinco meses, seu terapeuta o aconselhou a associar as drogas à possibilidade de ter que usar uma bolsa de colostomia para o resto da vida. “Desde então, não tenho mais interesse em consumir drogas”, escreveu.

Ao longo da obra, Matthew ressalta que, apesar do vício em aplacar a “Dor” que sentia – descrita assim, com a inicial em maiúscula –, ele diz que sempre quis continuar vivo.

“Eu me rendi, mas ao lado vencedor, não ao perdedor. Não estou mais atolado em uma batalha impossível contra as drogas e o álcool. Não sinto mais necessidade de acender automaticamente um cigarro para acompanhar meu café da manhã.”

“Eu nunca desisti, nunca levantei as mãos e disse: ‘Já chega, não aguento mais, você venceu”, escreve Perry. “E por causa disso, estou firme agora, pronto para o que vem a seguir”.

Matthew Perry Foto: Matt Sayles / AP

Leia o primeiro capítulo completo de Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível:

Oi, meu nome é Matthew, embora talvez você me conheça por outro nome. Meus amigos me chamam de Matty. E eu devia estar morto. Se quiser, pode considerar o que vai ler agora como uma mensagem do além, do meu além. É o Sétimo Dia da Dor. E, quando digo Dor, não estou falando de bater o dedão em uma quina nem do filme Meu Vizinho Mafioso 2. Escrevo Dor com letra maiúscula porque foi a pior Dor que já senti— era o Ideal Platônico da Dor, a Dor primordial. Já ouvi as pessoas dizerem que a pior dor é a do parto: bem, aquela era a pior dor imaginável, mas sem a felicidade de ter um recém-nascido nos braços no fim de tudo. E era o Sétimo Dia da Dor, mas também era o Décimo Dia Sem Movimentos. Se é que você me entende. Fazia dez dias que eu não cagava — pronto, explicado.

Havia alguma coisa muito, muito errada. Não era uma dor lânguida, latejante, como uma dor de cabeça; também não era uma dor aguda, penetrante, como a da pancreatite que tive aos 30 anos. Era uma Dor diferente. Parecia que meu corpo estava prestes a explodir. Que minhas entranhas tentavam escapar de mim. Era uma Dor séria pra caralho. E os sons. Meu Deus, os sons. Em geral, sou um cara bem quieto, tranquilo. Mas naquela noite eu berrava a plenos pulmões. Em certas noites, quando o vento sopra na direção certa e os carros já estão todos na garagem, é possível ouvir os sons horríveis de coiotes estraçalhando algo que uiva em Hollywood Hills. No começo, parece o barulho de crianças rindo, muito ao longe, até você perceber que não é bem isso — são os sinais da morte. Mas a pior parte, sem dúvida, é quando os uivos param, porque aí você sabe que a criatura que estava sendo atacada já morreu. É um inferno. E, sim, existe um inferno. Não acredite em ninguém que diga algo diferente disso. Eu já estive lá, ele existe e ponto final. Naquela noite, eu era o animal sob ataque. E ainda gritava, lutando com unhas e dentes para sobreviver. O silêncio significaria o fim. E mal sabia eu o quanto estava próximo disso.

Na época, eu morava em uma casa de reabilitação no sul da Califórnia. Isso não era surpresa — passei metade da minha vida em centros de tratamento ou casas de reabilitação. É uma situação aceitável quando você tem 24 anos, mas nem tanto aos 42. Naquele momento eu tinha 49 e continuava lutando para me livrar do fardo do vício. Àquela altura, eu já sabia mais sobre dependência química e alcoolismo do que todos os orientadores e a maioria dos médicos desses estabelecimentos. Infelizmente, esse autoconhecimento não serve de nada. Se o segredo para a sobriedade fosse esforço e informação, esse monstro não passaria de uma lembrança distante e desagradável para mim. Minha estratégia para continuar vivo tinha sido me transformar em um paciente profissional. Não vamos medir as palavras aqui. Aos 49, eu ainda tinha medo da solidão. Quando ficava sozinho, meu cérebro maluco (maluco apenas nesse sentido, aliás) encontrava qualquer desculpa para recorrer ao impensável: álcool e drogas. Depois de ter décadas da minha vida arruinadas por esse hábito, sinto pavor de retomá-lo. Não sinto medo algum de falar na frente de vinte mil pessoas, mas basta uma noite sentado no sofá, vendo TV, para ficar apavorado. Tenho medo da minha própria mente; medo dos meus pensamentos; medo de a minha cabeça me incentivar a recorrer às drogas, como já fez tantas vezes. A minha mente quer me matar, e eu sei disso. Sou constantemente tomado por uma solidão sorrateira, uma ânsia, e permaneço apegado à ideia de que algo exterior vai ser capaz de me consertar. Mas eu tinha todas as coisas exteriores possíveis!

Julia Roberts é minha namorada. Não importa, você precisa beber. Acabei de comprar minha casa dos sonhos — com vista para a cidade toda! Impossível ficar feliz com isso sem um traficante. Ganho um milhão de dólares por semana — venci na vida, certo? Quer uma bebida? Ah, lógico. Muitíssimo obrigado. Eu tinha tudo. Mas esse tudo era uma ilusão. Nada resolveria aquilo. Eu levaria anos para chegar perto de encontrar uma solução. Por favor, não me leve a mal. Todas essas conquistas — Julia, a casa dossonhos, um milhão por semana — eram maravilhosas, e vou ser eternamente grato por elas. Sou um dos homens mais sortudos do planeta. E, nossa, como eu me diverti. Só que nada disso era a resposta. Se tivesse que fazer tudo de novo, eu ainda participaria do teste para Friends? Sem dúvida alguma. Eu beberia de novo? Sem dúvida alguma. Se não fosse o álcool para acalmar meu nervosismo e me ajudar a me divertir, eu teria pulado do alto de um prédio aos vinte e poucos anos.

Meu avô, o maravilhoso Alton L. Perry, cresceu com um pai alcoólatra, e, por isso, nunca tocou em bebida durante todos os seus longos e maravilhosos 96 anos. Eu não sou o meu avô. Não estou escrevendo isto tudo porque quero que sintam pena de mim, mas porque é a verdade. Escrevo porque alguém pode estar se sentindo confuso por saber que deveria parar de beber — assim como eu, essa pessoa tem todas as informações e entende as consequências de suas ações —, mas não consegue parar. Vocês não estão sozinhos, meus irmãos e minhas irmãs. (No dicionário, a palavra “viciado” devia vir acompanhada de uma foto minha, olhando ao redor, muito atordoado.)

Na casa de reabilitação no sul da Califórnia, meu quarto tinha duas camas queen e vista para West Los Angeles. A segunda cama era ocupada pela minha assistente/melhor amiga, Erin, que é lésbica e cuja amizade aprecio por me oferecer a alegria do companheirismo feminino sem a tensão romântica que pareceu estragar minha amizade com mulheres heterossexuais (sem contar que podemos conversar sobre mulheres gostosas). Nós tínhamos nos conhecido dois anos antes, na clínica de reabilitação onde ela trabalhava. Não permaneci sóbrio naquela época, mas logo percebi que ela era maravilhosa em todos os sentidos e imediatamente a roubei de lá e a contratei como assistente, e ela se tornou minha melhor amiga. Ela também entendia a natureza da dependência química e compreendia as minhas dificuldades melhor do que qualquer médico que já encontrei. Mesmo que a presença de Erin melhorasse a situação, passei muitas noites naquele lugar sem conseguir dormir. O sono é um problema sério para mim, especialmente quando estou em lugares assim. E, para além desse fato, acho que nunca na vida dormi por mais de quatro horas seguidas.

E o meu hábito recém-adquirido de assistir a documentários sobre prisões não ajudava — eu estava me desintoxicando de tanto Frontal que meu cérebro fritou a ponto de me convencer de que eu era um prisioneiro, e aquela casa de reabilitação era um presídio de verdade. Meu psiquiatra diz que “a realidade é um gosto adquirido”. Bom, naquela altura eu já tinha perdido o gosto e o cheiro da realidade; eu estava com a Covid da mente, e estava completamente delirante. Mas a Dor não era um delírio; na verdade, doía tanto que eu tinha parado de fumar, e, se você soubesse o quanto eu fumava, saberia que esse era um sinal evidente de que havia alguma coisa muito errada. Um dos funcionários do lugar, cujo crachá poderia muito bem dizer Enfermeiro Cuzão, sugeriu que eu tomasse um banho com sulfato de magnésio para aliviar o “desconforto”. Não dá para tratar uma fratura exposta com um Band-Aid; não dá para colocar alguém sentindo tanta Dor em um banho com sais. Mas a realidade é um gosto adquirido, lembra?

E então eu fui tomar o tal banho com sulfato de magnésio. Fiquei sentado lá, pelado, sentindo Dor, uivando feito um cachorro sendo estraçalhado por coiotes. Erin me ouviu — meu Deus, as pessoas devem ter me ouvido até em San Diego. Ela apareceu na porta do banheiro e, olhando para o meu corpo triste e pelado, se contorcendo de Dor, perguntou simplesmente:

— Quer ir pro hospital?

Se Erin achava que estava ruim no nível de ir para o hospital, estava ruim no nível de ir para o hospital. Além do mais, ela percebeu que eu tinha parado de fumar.

— Acho uma ideia boa pra cacete — falei, entre um uivo e outro.

De algum jeito, Erin conseguiu me ajudar a sair da banheira e me secar. Eu estava colocando minha roupa quando uma conselheira — alertada pelo som de um cachorro sendo morto ali dentro — apareceu na porta.

— Vou levar o Matthew para o hospital — disse Erin.

Por acaso, Catherine, a conselheira, era uma moça loira e muito bonita que eu aparentemente havia pedido em casamento quando cheguei ali, então talvez ela não fosse minha maior fã. (É sério, eu estava tão alucinado quando chegamos que a pedi em casamento e imediatamente despenquei por um lance de escadas.)

— Tudo isso não passa de um plano para conseguir drogas — disse Catherine para Erin enquanto eu continuava a me vestir. — Quando ele chegar no hospital vai pedir remédios.

Bom, o casamento não vai rolar, pensei. A essa altura, os uivos haviam alertado outras pessoas de que o chão do banheiro devia estar coberto de entranhas caninas, ou que alguém estava sentindo Dor de verdade. O conselheiro-chefe, Charles — visualize: pai com cara de modelo, mãe em situação de rua —, se juntou a Catherine na porta, para ajudá-la a bloquear nossa iminente saída. Bloquear a saída? Como assim, nós tínhamos 11 anos?

— Ele é nosso paciente — disse Catherine. — Você não tem o di-reito de levá-lo embora.

— Eu conheço o Matty — insistiu Erin. — Ele não está tentando se drogar.

Então Erin se virou para mim.

— Você precisa ir para o hospital, Matty?

Concordei com a cabeça e berrei mais um pouco.

— Vou levá-lo — disse Erin. De algum modo, passamos por Catherine e Charles, saímos do prédio e chegamos ao estacionamento. Digo “de algum modo” não porque Catherine e Charles tenham tentado nos segurar, mas porque, sempre que meus pés tocavam o chão, a Dor piorava. No céu, olhando para mim com desdém, completamente alheia à minha agonia, havia uma bola amarela e brilhante. O que é aquilo?, pensei em meio aos surtos de sofrimento. Ah, o sol. Pois é... Eu não saía muito de casa nessa época.

— Um paciente famoso está chegando com dores abdominais fortes — disse Erin ao telefone enquanto abria a porta do carro. Carros são coisas idiotas, comuns, até você não poder mais dirigi-los, e então eles se tornam caixas mágicas de liberdade e sinais de uma vida anterior bem-sucedida. Erin me colocou no banco do passageiro e eu me deitei. Minha barriga se retorcia em agonia. Ela sentou no banco do motorista, olhou para mim e disse:

— Você quer chegar rápido ou prefere que eu evite as estradas mais esburacadas?— Só anda logo, mulher! — consegui dizer.

Naquele momento, Charles e Catherine tinham decidido se esforçar mais para nos impedir e pararam na frente do carro, bloqueando o caminho. As mãos de Charles estavam erguidas, exibindo as palmas para nós, tentando dizer “Não!”, como se um veículo motorizado de uma tonelada e meia pudesse ser impedido de se mover pela força daquelas mãozinhas. Para piorar a situação, Erin não conseguia dar a partida. O motor só funciona quando você diz para o carro ligar, porque, sabe como é, eu trabalhei em Friends. Catherine e as mãozinhas de Charles não desistiram. Quando Erin conseguiu entender como dar a partida naquela joça, só havia mais uma coisa a se fazer: ela ligou o motor, colocou o câmbio no modo “Drive” e virou o volante para subirmos na calçada — só o choque dessa ação, ricocheteando pelo meu corpo inteiro, quase me fez morrer bem ali. Com duas rodas sobre o meio-fio, passamos por Catherine e Charles e ganhamos a rua. Os dois ficaram olhando enquanto íamos embora, mas naquela situação eu a incentivaria a passar por cima deles — é muito assustador se encontrar em um estado em que você não consegue parar de gritar. Se eu estivesse fazendo aquilo só para conseguir drogas, merecia um Oscar.

— Você está mirando nos quebra-molas? Não sei se deu pra perceber, mas estou numa situação meio incômoda agora. Vai mais devagar — implorei a ela.

Lágrimas escorriam tanto pelas minhas bochechas quanto pelas dela.

— Preciso ir rápido — disse Erin, seus olhos castanhos, solidários, me encarando com preocupação e medo. — Não podemos perder tempo. Foi nesse exato momento que perdi a consciência. (Aliás, na escala da dor, perder a consciência é o nível máximo.)

[Um aviso: pelos próximos parágrafos, este livro será uma biografia, mas não com memórias minhas, porque eu deixei de estar presente naquele momento.]

O hospital mais próximo da casa de reabilitação era o Saint John’s. Como Erin teve a perspicácia de ligar antes e avisar que uma pessoa famosa estava a caminho, alguém foi nos encontrar na entrada da emergência. Sem ter noção da gravidade do meu estado ao fazer o telefonema, Erin se preocupou com a minha privacidade. Mas o pessoal do hospital logo viu que havia alguma coisa muito errada e eu fui levado para uma sala de tratamento. Lá, me ouviram dizer:

— Erin, por que tem bolas de pingue-pongue em cima do sofá? Não havia um sofá e muito menos bolas de pingue-pongue — eu só estava delirando completamente. (Nunca soube que era possível delirar de dor, mas é isso aí.)

Então a hidromorfina (minha droga favorita no mundo inteiro) chegou ao meu cérebro, e eu recuperei a consciência por um instante. Fui informado de que precisaria ser operado imediatamente e, do nada, todos os enfermeiros da Califórnia apareceram no quarto. Um deles se virou para Erin e disse: — Se prepara para correr! Erin estava preparada, e todos nós corremos — bom, eles correram, eu fui empurrado na minha cadeira de rodas em alta velocidade até chegar à sala de cirurgia. Mandaram Erin sair de lá poucos segundos depois de eu pedir a ela “Por favor, não vai embora”, então fechei os olhos; eles só voltariam a se abrir duas semanas depois. Sim, pois é: coma, senhoras e senhores! (E aqueles escrotos da casa de reabilitação tinham tentado bloquear a passagem do carro?)

A primeira coisa que aconteceu quando entrei em coma foi uma broncoaspiração, quando vomitei dez dias de substâncias tóxicas diretamente nos meus pulmões. Eles não gostaram muito disso — daí a pneu-monia instantânea —, e foi então que o meu cólon explodiu. Vou repetir para quem não prestou atenção: meu cólon explodiu! Já me acusaram de ser cheio de merda, mas naquela ocasião o caso era esse mesmo. Ainda bem que eu não estava lá para presenciar o momento. Naquele instante, minha morte era praticamente certa. Eu tive azar por meu cólon ter explodido? Ou tive sorte por isso ter acontecido na única sala no sul da Califórnia em que poderiam resolver o problema? De todo modo, agora eu encarava uma cirurgia de sete horas, que pelo menos deu tempo suficiente para que todos os meus entes queridos fossem correndo para o hospital. Conforme eles chegavam, recebiam a notícia: “Matthew tem dois por cento de chance de sobreviver a esta noite.”

Todo mundo ficou tão impactado que algumas pessoas desmoronaram bem ali, na recepção do hospital. Vou ter que passar o resto da vida sabendo que minha mãe e outras pessoas ouviram essas palavras. Enquanto eu passava pelo menos sete horas em cirurgia, e convencidos de que o hospital faria o melhor trabalho possível, minha família e meus amigos foram para casa dormir, enquanto meu subconsciente lutava pela vida entre bisturis, cânulas e sangue. Spoiler: eu sobrevivi àquela noite, mas ainda havia risco. Minha família e meus amigos foram informados de que, em curto prazo, eu precisaria de uma máquina de ecmo para continuar vivo (ecmo significa oxigenação por membrana extracorpórea, na sigla em inglês).

O aparelho geralmente é considerado um último recurso — só para exemplificar, quatro pacientes haviam recorrido à ecmo na UCLA naquela semana, e todos tinham morrido. Para dificultar ainda mais a situação, o Saint John’s não tinha a máquina. Ligaram para o Cedars-Sinai — pelo jeito eles deram uma olha-da na minha ficha e disseram: “Matthew Perry não vai vir morrer no nosso hospital.” Valeu, pessoal. A UCLA também não queria me aceitar — pelo mesmo motivo? Vai saber —, mas pelo menos mandou a ecmo e uma equipe. Passei várias horas conectado a ela, e pareceu dar certo! Então fui transferido para a UCLA de verdade, em uma ambulância cheia de médicos e enfermeiros. (Seria impossível sobreviver a uma viagem de quinze minutos de carro, ainda mais do jeito que Erin dirige). Na UCLA, fui levado para a UTI cardiológica e pulmonar; aquele seria o meu lar pelas seis semanas seguintes.

Eu continuava em coma, mas, para ser sincero, devia estar adorando. Estava deitado, todo aconchegado, sendo entupido de drogas — tem coisa melhor? Fui informado de que, durante o coma, nunca, em momento algum, fiquei sozinho — sempre havia um familiar ou amigo no quarto. Eles fizeram vigílias à luz de velas, fizeram círculos de oração. Eu estavacercado de amor. Com o tempo, meus olhos magicamente se abriram.

[De volta às minhas memórias.] A primeira pessoa que vi foi a minha mãe.

— O que houve? — consegui falar, rouco. — Onde diabos eu estou?

Minha última lembrança era de estar no carro com Erin.

— O seu cólon explodiu — respondeu ela. Com essa informação, fiz o que qualquer ator que atua em comédia faria: revirei os olhos e voltei a dormir.

Já me disseram que, quando alguém fica muito doente, acontece um tipo de desconexão — é uma coisa que segue as linhas do “Deus nos dá apenas o fardo que podemos suportar”. Quanto a mim, bom, nas semanas após sair do coma, não deixei que ninguém me contasse exatamente o que tinha acontecido. Eu tinha pavor de descobrir que a culpa era minha, que eu tinha feito aquilo comigo mesmo. Então, em vez de falar sobre o assunto, fiz a única coisa que me sentia capaz de fazer — durante os dias no hospital, me concentrei completamente na minha família, passando horas com minhas lindas irmãs, Emily, Maria e Madeline, que são engraçadas, carinhosas e presentes. À noite era a vez de Erin; eu nunca ficava sozinho. Um dia, quando algum tempo já havia passado, Maria — que faz parte da família Perry (minha mãe é do lado da família Morrison) — decidiu que era hora de me contar o que tinha acontecido. Lá estava eu, preso a cinquenta fios, feito um robô, de cama, enquanto Maria me informava sobre os acontecimentos. Meus medos eram válidos: eu tinha feito aquilo; a culpa era minha. Eu chorei — nossa, como eu chorei. Maria foi maravilhosa se esforçando para me consolar, mas não havia consolo possível. Eu praticamente tinha me matado.

Nunca fui de ir a festas — meu consumo excessivo de drogas (e eram muitas drogas) era apenas uma tentativa inútil de me sentir melhor. Só eu mesmo para tentar me sentir bem a ponto de quase causar minha morte. Ainda assim, lá estava eu, vivo. Por quê? Por que eu havia sido poupado? Mas as coisas ficariam ainda piores antes de melhorar. Parecia que toda manhã um médico entrava no meu quarto só para dar mais uma notícia ruim. Se algo pudesse dar errado, realmente dava. Eu já estava com uma bolsa de colostomia — pelo menos me informaram que isso seria reversível, graças a Deus —, mas agora havia sinais de uma fístula, um buraco no intestino. O problema era que não conseguiam encontrá-la. Para ajudar, recebi outra bolsa, que soltava um negócio verde nojento, e isso significava que eu não poderia comer nem beber nada até que encontrassem a tal fístula. Os médicos a buscavam todos os dias, enquanto eu sentia cada vez mais sede. Eu literalmente implorava por uma Coca Diet, sonhava que era perseguido por uma lata gigante de Sprite Diet.

Depois de um mês — um mês inteiro! —, finalmente encontraram a fístula em um segmento posterior do cólon. Eu pensei: Poxa, pessoal, se vocês estão procurando um buraco no meu intestino, não seria melhor começar olhando atrás do negócio que explodiu, porra? Agora que o furo havia sido encontrado, poderia ser consertado, e eu poderia aprender a andar de novo. Percebi que estava melhorando quando me dei conta de que sentia certa atração pela terapeuta. Sim, havia uma cicatriz imensa na minha barriga, mas nunca fui muito de tirar a camisa. Não sou nenhum Matthew McConaughey e, quando tomo banho, prefiro ficar de olhos fechados. Como eu disse, em toda a minha estadia nos hospitais, nunca fiquei sozinho — nunca mesmo.

Então, existe luz na escuridão. Ela está lá — você só precisa se esforçar para encontrá-la. Depois de cinco longos meses, recebi alta. Fui informado de que, dentro de um ano, tudo dentro de mim teria se curado o suficiente para que eu pudesse passar por outra cirurgia e remover a bolsa de colostomia. Por enquanto, pelo menos, fizemos minhas malas — de cinco meses de internação — e voltamos para casa. Ah, e a propósito, eu sou o Batman.

Serviço

Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível: As memórias do astro de Friends

Editora: Best Seller

Preço: R$ 36

A morte de Matthew Perry, o Chandler de Friends, surpreendeu o mundo na noite do último sábado, 28. Com a notícia, a autobiografia do ator, Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível, voltou a ser visitada por fãs e se tornou o livro mais vendido na Amazon Brasil neste domingo, 29. A obra foi lançada em 2022 no exterior e, no Brasil, em janeiro de 2023, pela editora Best Seller.

Descrito como um relato transparente e sensível de Perry, que interpretou um dos protagonistas de uma das séries mais assistidas do mundo enquanto enfrentava o vício em drogas, o livro conta com vários relatos marcantes.

“Olá, meu nome é Matthew, embora você possa me conhecer por outro nome. Meus amigos me chamam de Matty. E eu deveria estar morto”, escreveu ele na biografia, que vendeu um milhão de cópias em 2022. Leia trechos e primeiro capítulo na íntegra:

Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível, de Matthew Perry Foto: Reprodução/Editora Best Seller

Prefácio de Lisa Kudrow

O prefácio da obra é assinado por Lisa Kudrow, que interpretou Phoebe.

“Como anda o Matthew Perry? Desde que começaram a me fazer essa pergunta, esse foi o principal questionamento que ouvi ao longo dos anos”, escreveu a amiga. “Mas a verdade é que eu não sabia muito bem como andava o Matthew.”

“Eu me concentrava em Matthew, que me fazia rir todo dia e que uma vez por semana me fazia rir tanto que eu não conseguia respirar. Lá estava ele, Matthew Perry, brilhante, charmoso, doce, sensível, muito sensato e racional”.

Ela finaliza com uma mensagem direcionada ao amigo. “Ele sobreviveu ao impossível, mas até hoje eu não tinha a menor ideia de quanta vezes escapou por pouco. Estou feliz por você continuar aqui, Matty. Parabéns. Eu te amo”.

Vício e infelicidade

“Eu tinha todas as coisas exteriores possíveis. Julia Roberts é minha namorada. Não importa, você precisa beber. Acabei de comprar minha casa dos sonhos. Impossível ficar feliz com isso sem um traficante. Ganho um milhão de dólares por semana – venci na vida, certo? Quer uma bebida? Ah, lógico. Muitíssimo obrigado”.

“Eu tinha tudo. Mas esse tudo era uma ilusão. Nada resolveria aquilo. (...) Sou um dos homens mais sortudos do planeta. E, nossa, como eu me diverti. Só que nada disso era a resposta”.

Papel em Friends

Perry estava escalado para outra sitcom quando as escalações para Friends, então chamada Friends Like Us, começaram. O papel de Chandler era cobiçado por muitos atores, mas ele sentia que o pertencia.

“Quando li o roteiro, parecia que alguém tinha passado um ano me seguindo, roubando as minhas piadas, imitando meus trejeitos, fazendo uma cópia da minha visão pessimista, porém irônica, da vida. Um personagem específico me chamava a atenção: não era que eu achasse que era capaz de interpretar Chandler; eu era o Chandler”.

“Li o papel de Chandler para ela e quebrei todas as regras – para começo de conversa, não segurei o roteiro. É que eu já tinha decorado tudo. E logicamente fui bem (...). Arranquei risadas em momentos em que ninguém mais tinha arrancado. Era como se eu estivesse naqueles momentos em que fazia a minha mãe rir. E Chandler nasceu”.

Elenco de 'Friends' Foto: Reed Saxon / AP

Auge da carreira e fundo do poço

No livro, Perry diz que a nona temporada da série foi a única temporada de Friends em que ele estava totalmente sóbrio, e a única que o rendeu indicação ao Emmy. Segundo o ator, ele achava que conseguia manter seu vício em segredo até que, um dia, Aniston disse que elenco e equipe percebiam o cheiro de álcool nele.

Então, ele começou a morar em um centro de reabilitação.

“Me casei com Monica e fui levado de volta ao centro de tratamento – no auge do meu ponto mais alto em Friends, o ponto mais alto da minha carreira, o momento icônico da série icônica – em uma caminhonete dirigida por um técnico sóbrio”.

Coma e sobriedade

Ele conta que, em 2019, teve uma experiência de quase morte depois de um rompimento do cólon, por uso excessivo de opióides. Segundo os médicos, ele tinha 2% de chance de sobreviver.

Depois de um coma de duas semanas e uma hospitalização de cinco meses, seu terapeuta o aconselhou a associar as drogas à possibilidade de ter que usar uma bolsa de colostomia para o resto da vida. “Desde então, não tenho mais interesse em consumir drogas”, escreveu.

Ao longo da obra, Matthew ressalta que, apesar do vício em aplacar a “Dor” que sentia – descrita assim, com a inicial em maiúscula –, ele diz que sempre quis continuar vivo.

“Eu me rendi, mas ao lado vencedor, não ao perdedor. Não estou mais atolado em uma batalha impossível contra as drogas e o álcool. Não sinto mais necessidade de acender automaticamente um cigarro para acompanhar meu café da manhã.”

“Eu nunca desisti, nunca levantei as mãos e disse: ‘Já chega, não aguento mais, você venceu”, escreve Perry. “E por causa disso, estou firme agora, pronto para o que vem a seguir”.

Matthew Perry Foto: Matt Sayles / AP

Leia o primeiro capítulo completo de Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível:

Oi, meu nome é Matthew, embora talvez você me conheça por outro nome. Meus amigos me chamam de Matty. E eu devia estar morto. Se quiser, pode considerar o que vai ler agora como uma mensagem do além, do meu além. É o Sétimo Dia da Dor. E, quando digo Dor, não estou falando de bater o dedão em uma quina nem do filme Meu Vizinho Mafioso 2. Escrevo Dor com letra maiúscula porque foi a pior Dor que já senti— era o Ideal Platônico da Dor, a Dor primordial. Já ouvi as pessoas dizerem que a pior dor é a do parto: bem, aquela era a pior dor imaginável, mas sem a felicidade de ter um recém-nascido nos braços no fim de tudo. E era o Sétimo Dia da Dor, mas também era o Décimo Dia Sem Movimentos. Se é que você me entende. Fazia dez dias que eu não cagava — pronto, explicado.

Havia alguma coisa muito, muito errada. Não era uma dor lânguida, latejante, como uma dor de cabeça; também não era uma dor aguda, penetrante, como a da pancreatite que tive aos 30 anos. Era uma Dor diferente. Parecia que meu corpo estava prestes a explodir. Que minhas entranhas tentavam escapar de mim. Era uma Dor séria pra caralho. E os sons. Meu Deus, os sons. Em geral, sou um cara bem quieto, tranquilo. Mas naquela noite eu berrava a plenos pulmões. Em certas noites, quando o vento sopra na direção certa e os carros já estão todos na garagem, é possível ouvir os sons horríveis de coiotes estraçalhando algo que uiva em Hollywood Hills. No começo, parece o barulho de crianças rindo, muito ao longe, até você perceber que não é bem isso — são os sinais da morte. Mas a pior parte, sem dúvida, é quando os uivos param, porque aí você sabe que a criatura que estava sendo atacada já morreu. É um inferno. E, sim, existe um inferno. Não acredite em ninguém que diga algo diferente disso. Eu já estive lá, ele existe e ponto final. Naquela noite, eu era o animal sob ataque. E ainda gritava, lutando com unhas e dentes para sobreviver. O silêncio significaria o fim. E mal sabia eu o quanto estava próximo disso.

Na época, eu morava em uma casa de reabilitação no sul da Califórnia. Isso não era surpresa — passei metade da minha vida em centros de tratamento ou casas de reabilitação. É uma situação aceitável quando você tem 24 anos, mas nem tanto aos 42. Naquele momento eu tinha 49 e continuava lutando para me livrar do fardo do vício. Àquela altura, eu já sabia mais sobre dependência química e alcoolismo do que todos os orientadores e a maioria dos médicos desses estabelecimentos. Infelizmente, esse autoconhecimento não serve de nada. Se o segredo para a sobriedade fosse esforço e informação, esse monstro não passaria de uma lembrança distante e desagradável para mim. Minha estratégia para continuar vivo tinha sido me transformar em um paciente profissional. Não vamos medir as palavras aqui. Aos 49, eu ainda tinha medo da solidão. Quando ficava sozinho, meu cérebro maluco (maluco apenas nesse sentido, aliás) encontrava qualquer desculpa para recorrer ao impensável: álcool e drogas. Depois de ter décadas da minha vida arruinadas por esse hábito, sinto pavor de retomá-lo. Não sinto medo algum de falar na frente de vinte mil pessoas, mas basta uma noite sentado no sofá, vendo TV, para ficar apavorado. Tenho medo da minha própria mente; medo dos meus pensamentos; medo de a minha cabeça me incentivar a recorrer às drogas, como já fez tantas vezes. A minha mente quer me matar, e eu sei disso. Sou constantemente tomado por uma solidão sorrateira, uma ânsia, e permaneço apegado à ideia de que algo exterior vai ser capaz de me consertar. Mas eu tinha todas as coisas exteriores possíveis!

Julia Roberts é minha namorada. Não importa, você precisa beber. Acabei de comprar minha casa dos sonhos — com vista para a cidade toda! Impossível ficar feliz com isso sem um traficante. Ganho um milhão de dólares por semana — venci na vida, certo? Quer uma bebida? Ah, lógico. Muitíssimo obrigado. Eu tinha tudo. Mas esse tudo era uma ilusão. Nada resolveria aquilo. Eu levaria anos para chegar perto de encontrar uma solução. Por favor, não me leve a mal. Todas essas conquistas — Julia, a casa dossonhos, um milhão por semana — eram maravilhosas, e vou ser eternamente grato por elas. Sou um dos homens mais sortudos do planeta. E, nossa, como eu me diverti. Só que nada disso era a resposta. Se tivesse que fazer tudo de novo, eu ainda participaria do teste para Friends? Sem dúvida alguma. Eu beberia de novo? Sem dúvida alguma. Se não fosse o álcool para acalmar meu nervosismo e me ajudar a me divertir, eu teria pulado do alto de um prédio aos vinte e poucos anos.

Meu avô, o maravilhoso Alton L. Perry, cresceu com um pai alcoólatra, e, por isso, nunca tocou em bebida durante todos os seus longos e maravilhosos 96 anos. Eu não sou o meu avô. Não estou escrevendo isto tudo porque quero que sintam pena de mim, mas porque é a verdade. Escrevo porque alguém pode estar se sentindo confuso por saber que deveria parar de beber — assim como eu, essa pessoa tem todas as informações e entende as consequências de suas ações —, mas não consegue parar. Vocês não estão sozinhos, meus irmãos e minhas irmãs. (No dicionário, a palavra “viciado” devia vir acompanhada de uma foto minha, olhando ao redor, muito atordoado.)

Na casa de reabilitação no sul da Califórnia, meu quarto tinha duas camas queen e vista para West Los Angeles. A segunda cama era ocupada pela minha assistente/melhor amiga, Erin, que é lésbica e cuja amizade aprecio por me oferecer a alegria do companheirismo feminino sem a tensão romântica que pareceu estragar minha amizade com mulheres heterossexuais (sem contar que podemos conversar sobre mulheres gostosas). Nós tínhamos nos conhecido dois anos antes, na clínica de reabilitação onde ela trabalhava. Não permaneci sóbrio naquela época, mas logo percebi que ela era maravilhosa em todos os sentidos e imediatamente a roubei de lá e a contratei como assistente, e ela se tornou minha melhor amiga. Ela também entendia a natureza da dependência química e compreendia as minhas dificuldades melhor do que qualquer médico que já encontrei. Mesmo que a presença de Erin melhorasse a situação, passei muitas noites naquele lugar sem conseguir dormir. O sono é um problema sério para mim, especialmente quando estou em lugares assim. E, para além desse fato, acho que nunca na vida dormi por mais de quatro horas seguidas.

E o meu hábito recém-adquirido de assistir a documentários sobre prisões não ajudava — eu estava me desintoxicando de tanto Frontal que meu cérebro fritou a ponto de me convencer de que eu era um prisioneiro, e aquela casa de reabilitação era um presídio de verdade. Meu psiquiatra diz que “a realidade é um gosto adquirido”. Bom, naquela altura eu já tinha perdido o gosto e o cheiro da realidade; eu estava com a Covid da mente, e estava completamente delirante. Mas a Dor não era um delírio; na verdade, doía tanto que eu tinha parado de fumar, e, se você soubesse o quanto eu fumava, saberia que esse era um sinal evidente de que havia alguma coisa muito errada. Um dos funcionários do lugar, cujo crachá poderia muito bem dizer Enfermeiro Cuzão, sugeriu que eu tomasse um banho com sulfato de magnésio para aliviar o “desconforto”. Não dá para tratar uma fratura exposta com um Band-Aid; não dá para colocar alguém sentindo tanta Dor em um banho com sais. Mas a realidade é um gosto adquirido, lembra?

E então eu fui tomar o tal banho com sulfato de magnésio. Fiquei sentado lá, pelado, sentindo Dor, uivando feito um cachorro sendo estraçalhado por coiotes. Erin me ouviu — meu Deus, as pessoas devem ter me ouvido até em San Diego. Ela apareceu na porta do banheiro e, olhando para o meu corpo triste e pelado, se contorcendo de Dor, perguntou simplesmente:

— Quer ir pro hospital?

Se Erin achava que estava ruim no nível de ir para o hospital, estava ruim no nível de ir para o hospital. Além do mais, ela percebeu que eu tinha parado de fumar.

— Acho uma ideia boa pra cacete — falei, entre um uivo e outro.

De algum jeito, Erin conseguiu me ajudar a sair da banheira e me secar. Eu estava colocando minha roupa quando uma conselheira — alertada pelo som de um cachorro sendo morto ali dentro — apareceu na porta.

— Vou levar o Matthew para o hospital — disse Erin.

Por acaso, Catherine, a conselheira, era uma moça loira e muito bonita que eu aparentemente havia pedido em casamento quando cheguei ali, então talvez ela não fosse minha maior fã. (É sério, eu estava tão alucinado quando chegamos que a pedi em casamento e imediatamente despenquei por um lance de escadas.)

— Tudo isso não passa de um plano para conseguir drogas — disse Catherine para Erin enquanto eu continuava a me vestir. — Quando ele chegar no hospital vai pedir remédios.

Bom, o casamento não vai rolar, pensei. A essa altura, os uivos haviam alertado outras pessoas de que o chão do banheiro devia estar coberto de entranhas caninas, ou que alguém estava sentindo Dor de verdade. O conselheiro-chefe, Charles — visualize: pai com cara de modelo, mãe em situação de rua —, se juntou a Catherine na porta, para ajudá-la a bloquear nossa iminente saída. Bloquear a saída? Como assim, nós tínhamos 11 anos?

— Ele é nosso paciente — disse Catherine. — Você não tem o di-reito de levá-lo embora.

— Eu conheço o Matty — insistiu Erin. — Ele não está tentando se drogar.

Então Erin se virou para mim.

— Você precisa ir para o hospital, Matty?

Concordei com a cabeça e berrei mais um pouco.

— Vou levá-lo — disse Erin. De algum modo, passamos por Catherine e Charles, saímos do prédio e chegamos ao estacionamento. Digo “de algum modo” não porque Catherine e Charles tenham tentado nos segurar, mas porque, sempre que meus pés tocavam o chão, a Dor piorava. No céu, olhando para mim com desdém, completamente alheia à minha agonia, havia uma bola amarela e brilhante. O que é aquilo?, pensei em meio aos surtos de sofrimento. Ah, o sol. Pois é... Eu não saía muito de casa nessa época.

— Um paciente famoso está chegando com dores abdominais fortes — disse Erin ao telefone enquanto abria a porta do carro. Carros são coisas idiotas, comuns, até você não poder mais dirigi-los, e então eles se tornam caixas mágicas de liberdade e sinais de uma vida anterior bem-sucedida. Erin me colocou no banco do passageiro e eu me deitei. Minha barriga se retorcia em agonia. Ela sentou no banco do motorista, olhou para mim e disse:

— Você quer chegar rápido ou prefere que eu evite as estradas mais esburacadas?— Só anda logo, mulher! — consegui dizer.

Naquele momento, Charles e Catherine tinham decidido se esforçar mais para nos impedir e pararam na frente do carro, bloqueando o caminho. As mãos de Charles estavam erguidas, exibindo as palmas para nós, tentando dizer “Não!”, como se um veículo motorizado de uma tonelada e meia pudesse ser impedido de se mover pela força daquelas mãozinhas. Para piorar a situação, Erin não conseguia dar a partida. O motor só funciona quando você diz para o carro ligar, porque, sabe como é, eu trabalhei em Friends. Catherine e as mãozinhas de Charles não desistiram. Quando Erin conseguiu entender como dar a partida naquela joça, só havia mais uma coisa a se fazer: ela ligou o motor, colocou o câmbio no modo “Drive” e virou o volante para subirmos na calçada — só o choque dessa ação, ricocheteando pelo meu corpo inteiro, quase me fez morrer bem ali. Com duas rodas sobre o meio-fio, passamos por Catherine e Charles e ganhamos a rua. Os dois ficaram olhando enquanto íamos embora, mas naquela situação eu a incentivaria a passar por cima deles — é muito assustador se encontrar em um estado em que você não consegue parar de gritar. Se eu estivesse fazendo aquilo só para conseguir drogas, merecia um Oscar.

— Você está mirando nos quebra-molas? Não sei se deu pra perceber, mas estou numa situação meio incômoda agora. Vai mais devagar — implorei a ela.

Lágrimas escorriam tanto pelas minhas bochechas quanto pelas dela.

— Preciso ir rápido — disse Erin, seus olhos castanhos, solidários, me encarando com preocupação e medo. — Não podemos perder tempo. Foi nesse exato momento que perdi a consciência. (Aliás, na escala da dor, perder a consciência é o nível máximo.)

[Um aviso: pelos próximos parágrafos, este livro será uma biografia, mas não com memórias minhas, porque eu deixei de estar presente naquele momento.]

O hospital mais próximo da casa de reabilitação era o Saint John’s. Como Erin teve a perspicácia de ligar antes e avisar que uma pessoa famosa estava a caminho, alguém foi nos encontrar na entrada da emergência. Sem ter noção da gravidade do meu estado ao fazer o telefonema, Erin se preocupou com a minha privacidade. Mas o pessoal do hospital logo viu que havia alguma coisa muito errada e eu fui levado para uma sala de tratamento. Lá, me ouviram dizer:

— Erin, por que tem bolas de pingue-pongue em cima do sofá? Não havia um sofá e muito menos bolas de pingue-pongue — eu só estava delirando completamente. (Nunca soube que era possível delirar de dor, mas é isso aí.)

Então a hidromorfina (minha droga favorita no mundo inteiro) chegou ao meu cérebro, e eu recuperei a consciência por um instante. Fui informado de que precisaria ser operado imediatamente e, do nada, todos os enfermeiros da Califórnia apareceram no quarto. Um deles se virou para Erin e disse: — Se prepara para correr! Erin estava preparada, e todos nós corremos — bom, eles correram, eu fui empurrado na minha cadeira de rodas em alta velocidade até chegar à sala de cirurgia. Mandaram Erin sair de lá poucos segundos depois de eu pedir a ela “Por favor, não vai embora”, então fechei os olhos; eles só voltariam a se abrir duas semanas depois. Sim, pois é: coma, senhoras e senhores! (E aqueles escrotos da casa de reabilitação tinham tentado bloquear a passagem do carro?)

A primeira coisa que aconteceu quando entrei em coma foi uma broncoaspiração, quando vomitei dez dias de substâncias tóxicas diretamente nos meus pulmões. Eles não gostaram muito disso — daí a pneu-monia instantânea —, e foi então que o meu cólon explodiu. Vou repetir para quem não prestou atenção: meu cólon explodiu! Já me acusaram de ser cheio de merda, mas naquela ocasião o caso era esse mesmo. Ainda bem que eu não estava lá para presenciar o momento. Naquele instante, minha morte era praticamente certa. Eu tive azar por meu cólon ter explodido? Ou tive sorte por isso ter acontecido na única sala no sul da Califórnia em que poderiam resolver o problema? De todo modo, agora eu encarava uma cirurgia de sete horas, que pelo menos deu tempo suficiente para que todos os meus entes queridos fossem correndo para o hospital. Conforme eles chegavam, recebiam a notícia: “Matthew tem dois por cento de chance de sobreviver a esta noite.”

Todo mundo ficou tão impactado que algumas pessoas desmoronaram bem ali, na recepção do hospital. Vou ter que passar o resto da vida sabendo que minha mãe e outras pessoas ouviram essas palavras. Enquanto eu passava pelo menos sete horas em cirurgia, e convencidos de que o hospital faria o melhor trabalho possível, minha família e meus amigos foram para casa dormir, enquanto meu subconsciente lutava pela vida entre bisturis, cânulas e sangue. Spoiler: eu sobrevivi àquela noite, mas ainda havia risco. Minha família e meus amigos foram informados de que, em curto prazo, eu precisaria de uma máquina de ecmo para continuar vivo (ecmo significa oxigenação por membrana extracorpórea, na sigla em inglês).

O aparelho geralmente é considerado um último recurso — só para exemplificar, quatro pacientes haviam recorrido à ecmo na UCLA naquela semana, e todos tinham morrido. Para dificultar ainda mais a situação, o Saint John’s não tinha a máquina. Ligaram para o Cedars-Sinai — pelo jeito eles deram uma olha-da na minha ficha e disseram: “Matthew Perry não vai vir morrer no nosso hospital.” Valeu, pessoal. A UCLA também não queria me aceitar — pelo mesmo motivo? Vai saber —, mas pelo menos mandou a ecmo e uma equipe. Passei várias horas conectado a ela, e pareceu dar certo! Então fui transferido para a UCLA de verdade, em uma ambulância cheia de médicos e enfermeiros. (Seria impossível sobreviver a uma viagem de quinze minutos de carro, ainda mais do jeito que Erin dirige). Na UCLA, fui levado para a UTI cardiológica e pulmonar; aquele seria o meu lar pelas seis semanas seguintes.

Eu continuava em coma, mas, para ser sincero, devia estar adorando. Estava deitado, todo aconchegado, sendo entupido de drogas — tem coisa melhor? Fui informado de que, durante o coma, nunca, em momento algum, fiquei sozinho — sempre havia um familiar ou amigo no quarto. Eles fizeram vigílias à luz de velas, fizeram círculos de oração. Eu estavacercado de amor. Com o tempo, meus olhos magicamente se abriram.

[De volta às minhas memórias.] A primeira pessoa que vi foi a minha mãe.

— O que houve? — consegui falar, rouco. — Onde diabos eu estou?

Minha última lembrança era de estar no carro com Erin.

— O seu cólon explodiu — respondeu ela. Com essa informação, fiz o que qualquer ator que atua em comédia faria: revirei os olhos e voltei a dormir.

Já me disseram que, quando alguém fica muito doente, acontece um tipo de desconexão — é uma coisa que segue as linhas do “Deus nos dá apenas o fardo que podemos suportar”. Quanto a mim, bom, nas semanas após sair do coma, não deixei que ninguém me contasse exatamente o que tinha acontecido. Eu tinha pavor de descobrir que a culpa era minha, que eu tinha feito aquilo comigo mesmo. Então, em vez de falar sobre o assunto, fiz a única coisa que me sentia capaz de fazer — durante os dias no hospital, me concentrei completamente na minha família, passando horas com minhas lindas irmãs, Emily, Maria e Madeline, que são engraçadas, carinhosas e presentes. À noite era a vez de Erin; eu nunca ficava sozinho. Um dia, quando algum tempo já havia passado, Maria — que faz parte da família Perry (minha mãe é do lado da família Morrison) — decidiu que era hora de me contar o que tinha acontecido. Lá estava eu, preso a cinquenta fios, feito um robô, de cama, enquanto Maria me informava sobre os acontecimentos. Meus medos eram válidos: eu tinha feito aquilo; a culpa era minha. Eu chorei — nossa, como eu chorei. Maria foi maravilhosa se esforçando para me consolar, mas não havia consolo possível. Eu praticamente tinha me matado.

Nunca fui de ir a festas — meu consumo excessivo de drogas (e eram muitas drogas) era apenas uma tentativa inútil de me sentir melhor. Só eu mesmo para tentar me sentir bem a ponto de quase causar minha morte. Ainda assim, lá estava eu, vivo. Por quê? Por que eu havia sido poupado? Mas as coisas ficariam ainda piores antes de melhorar. Parecia que toda manhã um médico entrava no meu quarto só para dar mais uma notícia ruim. Se algo pudesse dar errado, realmente dava. Eu já estava com uma bolsa de colostomia — pelo menos me informaram que isso seria reversível, graças a Deus —, mas agora havia sinais de uma fístula, um buraco no intestino. O problema era que não conseguiam encontrá-la. Para ajudar, recebi outra bolsa, que soltava um negócio verde nojento, e isso significava que eu não poderia comer nem beber nada até que encontrassem a tal fístula. Os médicos a buscavam todos os dias, enquanto eu sentia cada vez mais sede. Eu literalmente implorava por uma Coca Diet, sonhava que era perseguido por uma lata gigante de Sprite Diet.

Depois de um mês — um mês inteiro! —, finalmente encontraram a fístula em um segmento posterior do cólon. Eu pensei: Poxa, pessoal, se vocês estão procurando um buraco no meu intestino, não seria melhor começar olhando atrás do negócio que explodiu, porra? Agora que o furo havia sido encontrado, poderia ser consertado, e eu poderia aprender a andar de novo. Percebi que estava melhorando quando me dei conta de que sentia certa atração pela terapeuta. Sim, havia uma cicatriz imensa na minha barriga, mas nunca fui muito de tirar a camisa. Não sou nenhum Matthew McConaughey e, quando tomo banho, prefiro ficar de olhos fechados. Como eu disse, em toda a minha estadia nos hospitais, nunca fiquei sozinho — nunca mesmo.

Então, existe luz na escuridão. Ela está lá — você só precisa se esforçar para encontrá-la. Depois de cinco longos meses, recebi alta. Fui informado de que, dentro de um ano, tudo dentro de mim teria se curado o suficiente para que eu pudesse passar por outra cirurgia e remover a bolsa de colostomia. Por enquanto, pelo menos, fizemos minhas malas — de cinco meses de internação — e voltamos para casa. Ah, e a propósito, eu sou o Batman.

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