Não é difícil encontrar nas redes sociais vídeos que satirizam as novelas de Manoel Carlos. O calçadão do Leblon, bairro nobre do Rio de Janeiro, os papos à beira da piscina, as sacolas de compras, o adiamento do trabalho para resolver alguma questão emocional, entre outros tantos momentos criados por Maneco, como o autor é conhecido.
Entretanto, sempre que há uma reprise de alguma novela do autor - e essas brincadeiras terminam por contribuir - a audiência é garantida. Nesta segunda-feira, 29, é a vez de Mulheres Apaixonadas, de 2003, voltar ao ar no Vale a Pena Ver de Novo, da TV Globo, pela segunda vez - ela foi reprisada no canal Viva entre 2020 e 2021 e está disponível completa no Globoplay.
Mulheres Apaixonadas tem como eixo central a história de Helena, dessa vez, interpretada por Christiane Torloni que infeliz com seu casamento com o músico Téo (Tony Ramos) vai atrás de seu amor de juventude, o médico César (José Mayer).
“O mais delicado nessa personagem foi criar uma temperatura de uma mulher apaixonada, sem ser uma mulher exuberante. Ela era absolutamente comum”, diz Christiane Torloni ao Estadão.
A atriz defende o papel social das Helenas, muitas vezes citadas como símbolos de uma vida fácil na bolha do Leblon, desconectada do resto do Brasil. Ela afirma que a personagem combateria o feminicídio em 2023. E que Manoel Carlos apenas usa o bairro como cenário de questões humanas maiores.
Para além dos passeios no Leblon, tramas secundárias ganharam destaques na obra de 2003 com assuntos importantes, como a de Raquel (Helena Ranaldi), que era agredida pelo marido Marcos (Dan Stulbach); o alcoolismo da professora Santana (Vera Holtz); o etarismo praticado por Dóris (Regiane Alves) e o ciúme excessivo de Heloísa (Giulia Gam).
“O Maneco parte desse microcosmo para falar do macro. É como o (poeta) Fernando Pessoa, com Rio da Minha Aldeia”, defende Christiane, convidada pessoalmente pelo autor para viver a personagem.
Jô Penteado (A Gata Comeu), Diná (A Viagem), Tereza Cristina (Fina Estampa) e Helena (Mulheres Apaixonadas) são quatro personagens que você eternizou na dramaturgia brasileira. Qual é o sentimento de um ator quando isso ocorre, já que não são todos que podem desfrutar desse mérito?
Essas personagens são verdadeiros presentes. Todas são mulheres muito bem contextualizadas em um panorama humano tão atemporal que atravessaram décadas dentro da teledramaturgia - é preciso lembrar que Jô e Diná são personagens ainda da TV Tupi (Torloni fez os dois remakes na TV Globo). Falo delas com muita honra e fico imaginando uma próxima que tenha a mesma potência dessas quatro.
Você se lembra de como recebeu o convite para viver Helena?
Eu estava escalada para fazer outra novela, a Beijo do Vampiro. Já tinha o figurino e a prótese dentária prontos. Mas a novela que iria estrear no horário das nove, do Gilberto Braga, foi cancelada, e Manoel Carlos assumiu o posto. Eu estava em cartaz com a peça Blue Room, em São Paulo, e recebi uma ligação para ir conversar com o Manoel em Nova York. O convite foi feito no Central Park, cheio de charme (risos).
O Manoel Carlos te pediu algo específico para a personagem?
O Manoel é da mesma geração dos meus pais (os atores Monah Delacy e Geraldo Matheus, fundadores do Teatro de Arena). Estiveram juntos na primeira turma da Escola de Arte Dramática (EAD -USP), no final dos anos 1940. O Maneco conviveu com os meus pais. Me viu crescer como pessoa e como atriz. Tanto que fiz Baila Comigo (1981), no papel de filha da primeira Helena, que foi a Lilian Lemmertz. Então, essa saga com a Helena começou 30 anos antes.
O que Maneco me disse, no momento do convite, é que eu estava pronta para viver Helena, por tudo o que tinha ocorrido na minha vida nessas três décadas. Eu estava pronta para fazer a personagem Helena, com todas as contradições que ela carregava. Uma mulher íntegra e brasileira. Porque, em Mulheres Apaixonadas, Helena era uma educadora, uma professora de história. Nessa novela, o Maneco abraçou a causa da educação. Isso é muito bonito.
Naquela altura, já havia as Helenas da Lílian, da Maitê Proença, da Regina Duarte e da Vera Fischer. O que você foi buscar para a sua Helena?
Ela tinha uma desobediência social. Era uma professora. Do ponto de vista feminino, não era uma mulher exuberante. Não é a Tereza Cristina, por exemplo. O mais delicado nessa personagem foi criar uma temperatura de uma mulher apaixonada, sem ser uma mulher exuberante. Ela era absolutamente comum.
O Manoel tem uma identidade muito forte em suas tramas . É um microcosmo baseado na zona sul carioca, no bairro do Leblon. Às vezes, ele é criticado justamente por estar nesse cenário restrito, fora da grande realidade brasileira...
Ele parte desse microcosmo para falar do macro. É como o (poeta) Fernando Pessoa, com Rio da Minha Aldeia. O Maneco parte de sua aldeia para ir para o mar, encontrar os peixes, falar de grandes temas. Há outras novelas que não pegam e as deles sempre pegam. Por que? Justamente porque ele passa por essa humanidade, pelas dúvidas que são comuns a todos. Não é inteligência artificial. Nunca será a proposta dele. É uma inteligência totalmente natural, humana e orgânica. O primeiro capítulo de Mulheres Apaixonadas é espetacular. O Maneco não tem escrúpulos para falar do ciúme, da possessão, etarismo e outros tantos temas.
Você gosta de rever as novelas que fez?
Gosto! Em Mulheres Apaixonadas tem uma cena espetacular. A Helena conta para a Lorena (Susana Vieira) que teve um pesadelo horrível. Que no sonho ela estava chegando na sala de aula e da porta viu um professor muito mal encarado atrás da mesa, com uma arma na mão. Ele dizia aos alunos que eles não precisavam de livros, que a inteligência seria medida pelas armas. Vinte anos atrás! Um texto visionário do Maneco!
Helena era uma mulher infeliz no casamento e resolveu dar um fim nessa situação. Ela não era vítima de violência, mas faltava amor, havia uma mentira entre o casal. É um exemplo também para as mulheres que passam por isso?
É uma mensagem forte para todos os casais. Na história há muitos segredos, tanto da Helena quanto do Téo. E o Maneco faz o público ser testemunha de todos eles. Logo no primeiro capítulo ele declara: preparem-se, a minha Helena é uma anti-heroína. Não são personagens com filtros, arrumadinhos. Isso é de uma coragem absurda.
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Como seria a Helena de 2023?
Ao longo da vida, a gente vai soltando nossas amarras. Helena seria assim também. E graças a todas as anti-heroínas, que são totalmente libertadoras, revolucionárias. Tudo o que aconteceu depois dessa novela, como a Lei Maria da Penha (na trama, havia uma personagem que era agredida pelo marido), estaria no universo dela. E, infelizmente, o feminicídio, que cresceu de lá para cá. Atualmente, Helena estaria combatendo o feminicídio.
A telenovela brasileira diária vai chegar aos 60 anos em julho. E continua sendo um grande atrativo para uma boa parte do público, apesar das ofertas de conteúdos em diferentes plataformas e nas redes sociais. É um produto que não morre, não?
Só eu vou fazer quase 50 anos de carreira (risos). Com muito orgulho! Nossas telenovelas são universais, são exportadas para o mundo todo. É algo sólido. Uma categoria que representa o ser humano em uma especificidade que nenhuma outra mídia consegue. Podemos usar qualquer equipamento, qualquer inteligência artificial, mas um beijo será sempre um beijo. Ninguém substitui um beijo, um colo, um abraço, o fazer amor. Sem falar no caráter pedagógico que a telenovela tem. Já tentaram enterrar o teatro e a novela, mas não conseguiram.
Você tem planos de voltar para as novelas?
Estou aguardando, quem sabe no segundo semestre. No momento, trabalho na minha biografia (Christiane conta com a ajuda da escritora Lilian Fontes). Ainda não tem data de lançamento. Estou fazendo com calma, sem pressa. Minha pressa é salvar a Amazônia!