Fãs de telenovelas é algo bem comum de se encontrar. Saudosistas, eles costumam valorizar tramas mais antigas – muitas, eles nem assistiram quando foram exibidas originalmente. Apegam-se à fama da história: se foi sucesso ou, se foi um fracasso, também gera curiosidade, aos atores, autores, trilha sonora, histórias de bastidores, etc. Entretanto, dentro dessa categoria, há os aficionados por uma novela específica, em um culto bem particular: A Gata Comeu. Criada por Ivani Ribeiro (1916-1995), levada ao ar pela primeira vez pela TV Globo em 1985, a trama – para alegria dos fãs – está disponível, em versão completa, desde o último dia 7 de junho, no catálogo do Globoplay.
Antes, ela já havia sido reprisada duas vezes no Vale a Pena Ver de Novo e, a mais recente, entre 2016 e 2017, no canal Viva. Todos com sucesso.
O jornalista pernambucano Anderson Maia, de 37 anos, é um desses ‘gatamaníacos’. Quando a novela foi exibida, ele tinha pouco mais de um ano de idade. Na primeira reprise, em 1989, ainda era criança. Porém, sempre ouviu a mãe falar da história e, sobretudo, da protagonista, a ricaça mimada Jô Penteado, interpretada pela atriz Christiane Torloni.
Em 2001, quando a Globo lançou mão da novela mais uma vez para se recuperar do fracasso que foi a exibição do programa Você Decide na faixa vespertina da programação, Maia pode, enfim, acompanhá-la. “Era apaixonado antes mesmo de assistir A Gata. Eu só confirmei o que eu achava sobre a novela, do que eu ouvia falar sobre ela: extraordinária, leve e divertida”, diz.
No ano de 2016, com a reprise do Viva, Maia e outros fãs se conectaram em um grupo no Facebook. A idolatria cresceu e eles resolveram se encontrar em um local bastante significativo para eles: o bairro da Urca, no Rio de Janeiro, onde cenas externas das novelas foram gravadas – em 1985, a Globo ainda não tinha sua cidade cenográfica e a rua era, muitas vezes usada, sobretudo a fachada de casas e prédios.
Era na Urca que ficavam as casas de personagens como o professor Fábio (Nuno Leal Maia), do casal Ceição (Dirce Migliaccio) e Oscar (Luís Carlos Arutin), a igreja onde Fábio e Jô se casaram – famosa também por ser frequentada pelo cantor Roberto Carlos - e o colégio onde as crianças do Clube do Curumins (do qual os admiradores tiraram o nome para batizar o fã-clube) estudavam. Por obra do destino, as locações conservam suas fachadas originais. Um dos fãs, Luciano Iribarry, fez um mapa para que os participantes pudessem localizar os locais das gravações.
Para participar do encontro, Maia viajou do Recife, onde mora, para o Rio de Janeiro. Com uma mochila pesada nas costas, passou dois dias na cidade. Dormiu em um hostel. Era primeira vez que ele visitava o Sudeste do Brasil. Quase nem conheceu o Rio, apenas as ruas nas quais sua novela predileta foi gravada. A aventura, segundo ele, valeu a pena.
“Não tinha nenhuma grana, mas fui. Segui meu coração e foi um dos melhores momentos da minha vida. Se não tivesse ido, teria me arrependido. Fiz muitas amizades” diz ele, que tem a novela toda gravada e, mesmo assim, se emocionou ao ver a trama na plataforma de conteúdo.
Uma das organizadoras do encontro foi a pedagoga Meiry Emídio Horta Nogueira, de 51 anos. Quando a novela foi ao ar originalmente, ela era uma adolescente e se reconheceu na rebeldia de Jô. Formou, na rua em que morava, um clubinho de crianças e adolescentes, a exemplo do que existia na novela.
A princípio, a excursão ao bairro da Urca seria limitada a um pequeno grupo que trocava mensagens por meio das redes sociais. Meiry conta que teve a ideia de convidar os atores e pediu que eles mandassem áudios convidando os fãs. Moradora da cidade de Itajubá, Minas Gerais, ela começou a procurar hotel no Rio e auxiliar pessoas de outras cidades.
“Esperávamos 100 pessoas. Foram 350. Tivemos que dividir a turma em três para que cada uma fosse visitar diferentes lugares e evitar o tumulto. Mesmo assim, uma moradora do prédio da Jô desceu para reclamar. Disse que toda semana aparecia gente lá na porta e que naquele dia estava aquele tumulto todo”, conta Meiry, que estava organizando um novo encontro para maio de 2020, cancelado por conta da pandemia.
O objetivo de Meiry agora é fazer um encontro virtual no dia 11 de julho, com a participação de fãs e atores. Mesmo com todos os capítulos da novela gravados, ela pretende assistir à trama pelo Globoplay. “É diferente você ver algo que é um arquivo seu do que acompanhar com todo mundo, comentar com quem também está vendo”, diz.
Christiane Torloni foi uma das atrizes que compareceu ao encontro. Foi de surpresa. “Os fãs quase caíram duros. Cada vez que essa novela é colocada no ar é uma loucura. Há várias gerações de A Gata. Eu já sou avó de várias gatinhas. Há muitas Jôs Penteados por aí”, diz a atriz, que guarda boas lembranças das gravações na Urca.
“Não havia essa estrutura de hoje, com ônibus-camarim. Então, as pessoas abriam suas casas para nós, atores. Havia muito afeto nessa novela, garra, e isso imprime para o público”, conta. Além de Torloni, outros nomes do elenco, como Nina de Pádua, Mayara Magri, Kátia Moura e Rafael Alvarez também apareceram no dia.
“Graças a Deus que fui! Foi emocionante. Inesquecível. Parou a Urca, não passava ônibus. Um acontecimento. Não tenho o Globoplay, não entendo muito bem como funciona, mas sei que os fãs ansiavam muito para que a novela entrasse no catálogo”, diz Nina, intérprete da Ivete, uma moça pobre que era apaixonada pelo primo, Edson, personagem de José Mayer. A reportagem do Estadão explica à atriz que, agora, os ‘gatamaníacos’ poderão maratonar a novela. “Vai ser sucesso”, acredita.
No Facebook, rede na qual os fãs costumam se reunir, há inúmeros grupos em homenagem à novela. O maior deles reúne 16 mil membros. Há outros com 12, 8 e 5 mil seguidores.
Jô e Fábio, entre tapas e beijos
Com direção geral de Herval Rossano, a trama girava em torno de Jô e Fábio, um improvável casal que vivia literalmente entre tapas e beijos em um aparente ódio que escondia, como todo bom folhetim, um grande amor.
A aproximação deles acontece no primeiro capítulo, quando Fábio pede a lancha do pai de Jô, o empresário Horácio Penteado (Mauro Mendonça), para levar alguns de seus alunos para uma excursão. Jô decide convidar seus amigos para o mesmo passeio. A embarcação sofre uma pane e todos vão parar em uma ilha deserta, onde passam meses até serem encontrados.
Nuno Leal Maia, que vinha de um êxito com o personagem Bertazzo em Vereda Tropical, no ano anterior, diz que não acreditava muito na trama por considerá-la muito “água com açúcar”. “O Herval me disse ‘deixa comigo, sei o que estou fazendo. Só me ajuda’. Fiquei de boca aberta com o sucesso”, diz o ator.
Maia diz que o diretor sobre escolher muito bem o elenco e isso, além do conflito do casal principal que prendia o público, contribuiu para que a trama conquistasse a audiência. Ele cita Luís Carlos Arutin como um dos exemplos. “Ele só botava a gente para cima”, diz.
Christiane Torloni concorda com Maia. “Não era um elenco grande, mas havia muitas tramas paralelas, todas muito boas, lineares. Todos atores muito bons, disciplinados.”, diz. A atriz também chama a atenção para o momento pelo qual o Brasil passava, de abertura política, depois de anos de ditadura. “Nunca separo a teledramaturgia com o que está acontecendo no país. E, em 1985, havia um clima solar, um Brasil que abria a porta para a democracia. Havia uma vitalidade no ar. E a novela traz isso”, diz.
Linguagem moderna que lançou moda
A Gata Comeu tinha um elemento pop inédito para o horário. A abertura, embalada pela música Comeu, de Caetano Veloso, em gravação da banda Magazine, era inspirada em quadrinhos. As roupas dos personagens eram coloridas e o cabelo assimétrico da personagem Jô era moderno.
“Nos anos 1980, eu fiz três ensaios fotográficos com o Luiz Tripolli, em São Paulo. Ele tinha uma equipe maravilhosa e o cabeleireiro Marco Beauty que fez esse corte triangular, dificílimo de se fazer. Lançou moda. Era um cabelo muito bem cortado. Todo mundo queria igual”, diz.
Novela é remake de 'A Barba Azul'
A Gata Comeu é, na verdade, uma remake da novela A Barba Azul, exibida pela TV Tupi entre 1974 e 1975, também escrita por Ivani Ribeiro e que fez igual sucesso. Para a versão da TV Globo, a autora teve como colaboradora Marilu Saldanha.
Em A Barba Azul, Jô foi interpretada pela atriz Eva Wilma e Fábio por Carlos Zara. Eva, que morreu recentemente, era uma das atrizes preferidas de Ivani, como conta a jornalista Carolline Rodrigues, autora da biografia Ivani Ribeiro: A Dama das Emoções (Editora Novo Século). Além de Jô, a atriz interpretou as gêmeas Ruth e Raquel, na primeira versão de Mulheres de Areia, e Diná, na primeira exibição de A Viagem, ambas na Tupi.
A biógrafa afirma que Ivani, à época de A Gata Comeu, já havia reduzido, por problemas de saúde, a carga de trabalho – ela costumava escrever suas novelas sozinhas. Porém, continuava atenta à sua obra. A autora paulista, nascida Cleyde de Freitas Alves Ferreira, começou a carreira como rádio atriz, locutora e escritora de radionovela na década de 1930.
“Ela já estava adoentada. Mas era ativa e muito exigente. Não gostava que mexessem no original. Queria ver no ar aquilo que ela tinha orientado. Dava palpites sobre os atores. Sempre foi uma autora muito detalhista”, diz.
Carolline espera que as outras novelas de Ivani, além de A Viagem, Mulheres de Areia e A Gata Comeu, que sempre são apostas da Globo (as duas primeiras chegaram a marcar 60 pontos de audiência) também ganhem reprise. Na emissora Ivani também assinou, entre outras, Final Feliz (1982), Amor Com Amor Se Paga (1984) e Hipertensão (1986). O Cravo e a Rosa, sucesso de Walcyr Carrasco de 200o, teve como uma das inspirações A Indomável, escrita por Ivani em 1965.
“O legado da Ivani é mal aproveitado. Era uma autora que não subestimava o telespectador. Ela tinha preocupação de entreter e informar o público, de forma agradável e não impositiva. As obras dela trazem reflexão e são atemporais. A Viagem foi escrita na década de 1970. Estamos em 2021 e ainda é um sucesso (a novela está sendo reapresentada no canal Viva atualmente)”, diz.